Por Jefferson Peres
Depois, os torpedeamentos, ao virarem rotina, deixaram
causar emoção. Mas passaram a incomodar a todos, na medida em que a interrupção
do suprimento regular privava a população, com frequência, de gêneros
essenciais. Toda vez que era afundado um navio com grande carregamento de
determinado produto, o mesmo escasseava ou desaparecia totalmente durante semanas.
Estabelecia-se o racionamento, com a distribuição de cupons, e formavam-se
filas imensas para a aquisição da mercadoria. Ou então apelava-se para o
mercado negro, pagando preço muito mais elevado.
Às vezes o desaparecimento era total e tínhamos de recorrer
aos sucedâneos. Perdi a conta das ocasiões em que, à falta de café, tomamos
chá-mate ou preto; em lugar de pão, comemos batata-doce, cará ou macaxeira; e
não raro, adoçamos o café ou o chá com sacarina, pela absoluta impossibilidade
de encontrar açúcar.
Suplício maior era o dos fumantes, privados durante meses
dos cigarros da Souza Cruz, como o Elmo, o Astória, o Continental e o
Hollywood, substituídos pelo mata-ratos de fabricação local, especialmente o
Princesa e o Duquesa, que nada tinham de aristocráticos, com o seu tabaco
escuro e de gosto intragável.
Ao desconforto da falta de gêneros somava-se o temor
fantasioso de possíveis ataques aéreos alemães. Foi levado tão a sério por
alguns, que se organizou uma Liga de Defesa Passiva Anti-aérea, com voluntários
de capacetes e braçadeiras, que instruíam a população sobre o que fazer em caso
de bombardeio. Distribuíam-se os folhetos recomendando abrigar-se em porões ou
atirar-se ao chão, se surpreendidos na rua, e ensinando a prática dos primeiros
socorros.
Realizaram-se também exercícios de blackouts, com a cidade
completamente às escuras, porque nos cômodos em que as luzes permaneciam acesas
as janelas eram veladas por grossos panos improvisados de cortinas. Ainda hoje
me pergunto, ao recordar esses fatos, como alguém poderia acreditar que os
Heinkels e Junkers da Luftwaffe, com sua pequena autonomia de voo, um dia
atravessariam o Atlântico para despejar bombas sobre Manaus.
De parte das autoridades talvez visasse ao efeito
psicológico, a fim de manter mobilizada a população. Que, aliás, sempre
demonstrou um grande fervor patriótico, como ocorreu na campanha do
ferro-velho, à qual se engajaram milhares de crianças, jovens e adultos, em
resposta ao apelo para que se ajudasse o esforço de guerra dos Aliados.
Andávamos aos bandos, vasculhando quintais, terrenos baldios
e covões, em busca de pedaços de ferro usados. Reuniram-se quantidades imensas,
acumuladas em diferentes lugares, como a rampa de acesso à Catedral e a Rua
Barcelos, ao lado do Cine Popular, depois removidos não sei para onde. Até hoje
ignoro se toda aquela sucata foi parar realmente nas siderúrgicas de Pittsburgh
ou se foi atirada em algum depósito, inútil, até que a ferrugem a consumisse.
Nesse mesmo ano ocorreu a ruidosa invasão ianque. Com a
ocupação dos seringais da Malásia e da Indonésia pelos japoneses, os Aliados se
viram privados de suas principais fontes de borracha natural. Embora a produção
de borracha sintética já fosse expressiva, o produto vegetal ainda era
indispensável para a produção de artigos como pneumáticos de aviões. Tornava-se
imperiosa, assim, a reabertura dos seringais da Amazônia.
Veio em seguida a assinatura dos famosos Acordos de
Washington, que davam à borracha e outras matérias-primas garantia de preço
fixo e compra de toda a produção pelo governo americano que se comprometia,
ainda, a dispensar amplo apoio técnico e financeiro para aumentar a oferta
desses produtos.
Em consequência, foi mobilizado um enorme aparato de
agências americanas e brasileiras, que logo se instalaram em Manaus e Belém.
Entre elas, o Banco da Borracha (atual BASA), o Serviço Especial de Saúde
Pública e a Rubber Reserve (depois, Rubber Development Corporation). O
primeiro, obviamente, para assegurar o indispensável suprimento de crédito; o
segundo, para promover o saneamento da região; e a última, como dizem os
economistas, para emprestar apoio logístico aos seringais.
Com isso, a economia do Estado venceu a inércia, ganhando
novo impulso, e quebrou-se a rotina da cidade. Estava iniciada a Batalha da
Borracha, que não pretendo, aqui, avaliar, porque tal avaliação fugiria
inteiramente aos propósitos deste livro.
A primeira novidade foi a presença dos Catalinas, os
primeiros aviões anfíbios que conhecíamos, ideais para as condições da região.
Os cargueiros aquatizavam na ilha de Monte Cristo, onde a RDC instalou um
grande terminal de carga. Lá, eram guinchados para a terra, recebiam o
carregamento de borracha, depois manobravam para a água, de onde decolavam rumo
a Miami.
Os aviões de passageiros e militares utilizavam o aeroporto
de Ponta Pelada, pioneiro no Estado, construído em semanas pelos americanos,
com sua costumeira eficiência. Dotado de uma estação de passageiros de madeira,
modesta, mas confortável, passou a ser visitado como uma curiosidade pela
população, habituada, até então, aos velhos hidroaviões da Panair, que
atracavam no cais de cimento baixo, à esquerda do roadway.
Depois da guerra, a Panair incorporou os Catalinas, que
serviram à região durante muitos anos, em suas linhas comerciais. Tal como
aconteceria com a pequena frota de navios flutuantes trazida igualmente pelos
americanos. Lembro-me bem de três grandes, o Cambridge, o Vírginia Lee e o
State of Delaware, e outro de menor porte, o Cel. James Moss, empregados no
transporte de cargas e passageiros, também incorporados, no pós-guerra, com
outros nomes, ao acervo da SNAAPP. Foi um reforço à navegação regional, servida
em grande parte por uma frota envelhecida de vaticanos, gaiolas e chatas.
Com eles vieram, também, transportadas por navio, creio, as
pesadas máquinas de construção rodoviária, usadas inicialmente na abertura da
pista do aeroporto e, mais tarde, cedidas à prefeitura para obras de
terraplanagem em vários pontos da cidade, como a Avenida Getúlio Vargas, que
teve finalmente aterrado o covão usado como lixeira. Ficávamos durante horas
contemplando as evoluções de tratores e bulldozers que, manejados habilmente
pelos tratoristas, movimentavam enormes volumes de terra e avançavam como
monstros rugidores em direção ao abismo, onde nunca despencavam.
Mais curiosidade, porém, despertavam os próprios americanos.
Acompanhávamos fascinados aqueles grupos de gringos altos, brancos, corados, de
olhos azuis, falando uma língua completamente desconhecida para nós, meninos, e
para quase toda a população. Porque só a partir daí começou entre nós a mania
de falar inglês. Quando nada, aprendíamos logo a dizer give me a cigarrete, na esperança de ganharmos um Lucky Strike, um
Camel, um Chesterfield ou um Philip Morris, disputadíssimos pelo seu gosto
suave e cheiro agradável e que se tornavam especialmente preciosos nos períodos
de falta de produto nacional.
Os amazonenses que trabalhavam na RDC chegavam a dominar tão
bem o inglês que alguns, por esnobação, passavam a falar o português com
sotaque. Dizem mesmo que certo cidadão bastante conhecido na cidade, vestindo
roupa cáqui, capacete de explorador na cabeça, à semelhança de muitos americanos,
pegou um bonde e dirigiu-se ao motorneiro, perguntando: Ó seo condutor, o
senhorr sabe me dizerr onde ficarr avenida Joaquim Nabuco? Ao que o motorneiro,
medindo a figura de alto a baixo, fuzilou: Ora, fulano, vai à merda!
Mas conquanto nem todos manifestassem esse fanatismo,
pode-se dizer que os americanos foram acolhidos com simpatia pela população.
Geralmente bem-humorados e extrovertidos, chocavam apenas os mais velhos pela
sua irreverência, como, por exemplo, ao se refestelarem nas cadeiras dos bares
com os pés apoiados sobre as mesas.
Em compensação, graças ao seu alto nível de renda, podiam
dar-se ao luxo da generosidade. Não apenas os garotos os cercavam na busca de
cigarros e barras de chocolate. Também os garçons disputavam o privilégio de
atendê-los, de olho nas elevadas gorjetas, que davam espontaneamente, num tempo
em que ainda não se instituíra a obrigatoriedade dos 10%.
Outras que se encarniçavam para serem contratadas pelos
gringos eram empregadas domésticas, atraídas por ofertas de salários
irresistíveis, especialmente se considerarmos que a grande maioria não recebia
salário algum nas casas em que trabalhavam. Da mesma forma, as lavadeiras
tiveram seus serviços muito valorizados. Assim como os proprietários de imóveis
se lançaram numa corrida para alugá-los aos ianques por preços duas a três
vezes superior aos praticados no mercado local. Felizmente para a classe média,
o número de americanos era relativamente pequeno, e sua permanência não
ultrapassou três anos. Do contrário, a mini-inflação que provocaram teria
desestabilizado seriamente seus limitados orçamentos.
Sucesso também causaram algumas de suas mulheres. Pois nem
todas eram coroas vermelhonas e sardentas, campeãs de deselegância com seus
vestidos de cores berrantes e seus sapatões de solas de borracha. Havia umas
poucas que entusiasmavam não apenas pela beleza, mas também pela indiferença
com que exibiam seus encantos. Nas ruas andavam apenas com o vestido sobre o
corpo nu, em casa ficavam inteiramente peladas, sem ter sequer a preocupação de
fechar as janelas.
Lembro que um grupo delas, residente numa casa de sótão,
ainda hoje existente, na Rua 10 de Julho, entre a Epaminondas e a Ferreira
Pena, desfilava tranquilamente sua nudez, no alto do mirante. E quando
rapaziadas, ansiosa, se atropelava nos telhados vizinhos, para observá-las,
ainda ganhavam das ladies godivas adeusinhos de gozação.
Segundo versões correntes, que não pude confirmar, essas
moças figuravam nas folhas de pagamento da RDV como secretárias, mas seriam na
verdade profissionais do sexo, contratadas para amenizar a vida dos executivos
e técnicos, em seu exílio numa distante região tropical. Faria parte de uma
política destinada a reduzir, quando possível, o envolvimento com as nativas,
evitando problemas com a comunidade.
A partir de 1945, ao término da guerra, a RDC foi
desativando seus serviços paulatinamente e a presença dos americanos se fez
cada vez menos ostensivas, até cessar completamente.
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