Por Jefferson Peres
No final dos anos quarenta surgiria um novo matutino, A
Crítica, modestíssimo e com todos os indícios de que teria vida curta. Seu
fundador, Umberto Calderaro Filho, era meu velho conhecido do Colégio Dom
Bosco, onde fomos contemporâneos, sendo ele de turma mais adiantada.
Lembrava-me perfeitamente dele pela sua intensa participação na política
estudantil como candidato a presidência da União Estadual de Estudantes, que
não chegou a conquistar.
Impossível esquecê-lo, de qualquer modo, pelo seu tipo
físico. Alto, magro, a pele branca coberta de sardas, chamava a atenção de
pronto. Agitado e atuante, parecia destinado a cumprir a trajetória de tantos
jovens da nossa época, ou seja, fazer o curso de Direito, como aconteceu, e
ingressar na política. Mas, de repente, Calderaro largou tudo para se lançar à
aventura do jornal. Foi instalar-se bem ao lado dos grandes, no térreo de um
edifício contíguo ao da empresa Archer Pinto.
Para fingir que não pretendia concorrer com os maiores, fez
A Crítica circular a partir das onze horas, o que levou Áureo Mello, sempre
criativo, a cunhar o neologismo onzeorino, para designá-lo. As instalações eram
precárias, com uma velha linotipo e um prelo manual. Quando, algum tempo
depois, ele adquiriu uma rotoplana, ao tempo já ultrapassada, houve uma festa
na redação. Como não havia recursos para a compra dos serviços das agências
telegráficas, dizem que Calderaro tinha um funcionário designado para
acompanhar atentamente o noticiário das emissoras nacionais e estrangeiras, bem
como para recortar notícias de jornais do sul do país. Como gozação, dizia-que
A Crítica trabalhava com duas grandes agências: a Rádio Press e a Tesoura
Press.
O jornal era tocado por toda família Calderaro. Além de
Umberto, lá trabalhavam sua mãe, D. Maria, que cuidava das finanças internas e,
nas horas vagas, o velho Umberto, pai, que formava, com o sêo Miguel, a dupla
de simpáticos italianos que atendia a clientela da sapataria Arone. Talvez esse
mutirão familiar explique, em grande parte, por que, ao contrário de tantos
periódicos da época, A Crítica pôde sobreviver e ganhar as dimensões que tem
hoje. Confesso que me enfileirei entre os falsos profetas que vaticinaram seis
meses de vida para o pobre boletim paroquial. E teria achado muita graça se
alguém me dissesse que aquele magricela sardento se transformaria, algum dia,
num magnata da imprensa local.
Em 1949, o cenário jornalístico de Manaus se enriquecia com
o surgimento de A Gazeta, um vespertino de grande circulação, fundado por um
grupo de políticos ligados ao Partido Social Democrático, à frente Avelino
Pereira e, em segundo plano, Álvaro Bandeira de Mello, Flávio de Castro e Jatyr
Pucu de Aguiar. Doublé de médico e jornalista, Avelino, nascido no Rio Grande
do Norte, há muitos anos trocara o Potengi pelo Rio Negro, aqui se
estabelecendo como oftalmologista de grande clientela e largo prestígio social.
Mas tinha experiência do “batente”, desde garoto, quando trabalhava no jornal
de um tio, em Natal, com passagem, mais tarde, quando estudante, na redação de
O Estado da Bahia, então um dos maiores órgãos da capital baiana. Depois, veio
a trabalhar como repórter de O Jornal, do Rio de Janeiro, e em Manaus fora o
primeiro diretor do Jornal do Comércio, quando de sua incorporação à cadeia dos
Diários e Rádios Associados.
Há anos afastado das redações, sua vocação política e
jornalística falou mais alto e ele voltou à lide, como dono de um jornal que
logo alcançou o grande público, graças a sua linha politicamente engajada.
Contribuiu para o êxito, também, a qualidade do jornal, bem impresso,
amplamente noticioso e redigido por uma equipe de primeira, na qual se
distinguiam Herculano de Castro Costa, como secretário, Ulysses Paes de Azevedo
Filho e Arthur Virgílio Filho, como principais redatores. Apesar do engajamento
político, Avelino soube evitar o caráter panfletário, imprimindo ao jornal um
tom de equilíbrio e seriedade, que lhe deu ampla penetração na classe média e
nas elites, em acirrada disputa com o Diário da Tarde. Sóbrio, fugindo aos
ataques pessoais, podia, no entanto, alcançar extrema agressividade.
Alguns poucos que ousaram investir contra A Gazeta ou seu
dono, certamente se arrependeram, tamanha a virulência da resposta, redigida
por Herculano ou pelo próprio Avelino. Mas, chegou o tempo em que o velho
combatente, cansado da política e do jornalismo, e decidido a se voltar
exclusivamente para a medicina, vendeu o jornal para Arthur Virgílio. Este mudou
a linha política do jornal, que passou a dar cobertura ao governo trabalhista
de Plínio Coelho, além de lhe imprimir um tom ainda mais agressivo, bem de
acordo com o temperamento do novo proprietário. Algum tempo depois essa
agressividade quase provocou uma tragédia.
Aldo Moraes, filho do escritor Raimundo Moraes, de quem
herdou o talento e a combatividade, por motivo que já não recordo, envolveu-se
numa polêmica com Arthur. Como geralmente acontecia naquela época, dos
argumentos passaram à troca de desaforos. Um dia, Aldo telefonou para Arthur
intimando-o a descer para um acerto de contas. Arthur, sem vacilar, aceitou o
desafio e foi postar-se na calçada, defronte à redação. Logo depois surgiu
Aldo, no lado oposto, caminhando da Rua Joaquim Sarmento para a Av. Eduardo
Ribeiro.
Quando se viram frente a frente, sacaram os revólveres e
dispararam, felizmente sem se atingirem. E, ao que parece, não correram grande
perigo, pois nenhum dos dois era propriamente um exímio atirador. Tanto que a
perícia nem sequer encontrou as balas, que provavelmente se alojaram a muitos
metros de distância dos respectivos alvos. Alguns anos depois, Arthur Virgílio,
eleito deputado federal, passou adiante A Gazeta, que se transformou em órgão
oficioso do segundo governo trabalhista. A partir daí foi perdendo a qualidade
e leitores, até cerrar as portas em meados nos anos sessenta.
Dentre os pequenos jornais daquela época, que não lograram
vida longa, merece uma referência especial O Momento. Dirigido pelo então
acadêmico de Direito, mais tarde advogado, Geraldo Costa, nasceu politicamente
engajado, em virtude da vinculação do seu proprietário e diretor ao Partido
Social Democrático. Começou a circular na fase agônica do Estado Novo, em
setembro de 45, dando apoio à candidatura do Marechal Dutra à presidência da
República e, no ano seguinte, à de Ruy Araújo ao governo do Estado.
Vitorioso Leopoldo Neves, O Momento passou à oposição, não
poupando críticas ao governo. Convidado por emissários oficiosos a aderir a
situação, Geraldo recusou. Começaram, então, as pressões. Primeiro, foi-lhe
retirada toda a publicidade oficial. Como o jornal sobrevivesse, vieram as
ameaças verbais de elementos ligados ao governo.
Certo dia, a pretexto de uma notícia referente a um assalto
à joalheria La Ville de Paris, Geraldo foi chamado à Polícia. Por interferência
de Aristóphano Antony, presidente da Associação Amazonense de Imprensa, a
intimação foi retirada. Mas as ameaças continuaram, cada vez mais frequentes.
Em junho de 48, Geraldo recebeu informação segura de que o jornal seria
atacado. Por prevenção, convocou os poucos funcionários e montou acampamento na
sede, localizada na esquina das ruas Itamaracá e Frei José dos Inocentes.
Após uma vigília de 48 horas, decidiram regressar às suas
casas, deixando apenas dois empregados de prontidão. Logo depois, um grupo de
beleguins, armados de revólveres e cassetetes, invadia o prédio e empastelava
redação e oficina. O prejuízo foi total, não sobrou praticamente nada e nunca
mais O Momento voltou a circular. A violência matou, ali, as ambições de um
jovem e, quem sabe, o embrião de um futuro grande jornal.
Eram tempos heróicos do jornalismo. De jornais acanhados e
provincianos, pobres e desequipados, mas de jornalistas forjados no batente,
que sabiam tocar a imprensa com esforço, entusiasmo e, sobretudo, com um imenso
amor à profissão.
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