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terça-feira, dezembro 12, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (25)


Por Jefferson Peres

A cidade possuía, naturalmente, seus monstros sagrados. Aliás, chamados pelo povo simplesmente de “monstros”, termo que, na gíria de então, representava o máximo de elogio. Era aplicado a todos aqueles que tinham uma atuação considerada genial em qualquer atividade, fosse um jogador de futebol ou um cantor. Mas a admiração maior, embevecida e respeitosa, ia para os homens de letras. Cultuados como monumentos vivos, eram saudados nas ruas, com reverência, e apontados como celebridades.

O anúncio de uma conferência, a ser proferida por um deles, era garantia de sala cheia, e no dia seguinte o pronunciamento era o assunto da cidade. O mesmo acontecia com seus artigos e poemas, publicados na imprensa, que rendiam aos seus autores momentos de glória, ao receberem uma chuva de cumprimentos, partidos até de desconhecidos.

Todos eles pertenciam à Academia Amazonense de Letras, o grande templo do saber, no qual entrávamos como se estivéssemos indo participar de um culto religioso. Desde criança me habituei ao contato direto ou indireto com aqueles monstros sagrados. De perto ou de longe, conheci-os todos e deles guardo as mais diferentes impressões.

Como a Grécia, o Amazonas também teve a sua Era de Péricles. Durante cerca de três décadas, até a sua morte, em meados dos anos 50, o grand-seigner da literatura amazonense foi Péricles Moraes. Sua casa modesta, na Rua Henrique Martins, era um local de romaria dos acadêmicos e dos que aspiravam às galas da imortalidade. Uma recomendação sua era um passaporte seguro para os ingressos no Silogeu. Seu veto, ao contrário, erguia uma barreira intransponível às pretensões de qualquer candidato. E um simples elogio seu já constituía uma consagração para qualquer jovem intelectual.

Dono de vasta erudição literária, era fascinado pela França, cujo idioma dominava perfeitamente, como, aliás, todo intelectual de sua geração. Dizem que quase metade da sua opulenta biblioteca era constituída de livros escritos em francês. Encontrei-o algumas vezes em casa do meu tio Leopoldo Péres, de quem era amigo íntimo e que seria por ele biografado numa obra repassada de emoção. Alto, gordo, óculos de aros finos, nariz rubicundo, lembrava a figura de um bispo ou de um avô bonachão. Um perfeccionista, tinha o que ele chamou, certa vez, de martírio flaubertiano da construção do período.


Quando presidia as sessões de recepção de novos acadêmicos, muitas vezes seus discursos de abertura eram mais trabalhados do que as peças oratórias dos principais personagens da noite. Muito apegado aos amigos, comenta-se que sabia ser, igualmente, implacável como inimigo. Ficou famosa a sua inimizade com Raimundo Morais, de quem não era parente, e a quem nunca perdoou, não permitindo que entrasse na Academia e excluindo seu nome no livro que escreveu intitulado Os Intérpretes da Amazônia. Era também muito cioso do próprio valor e infenso a intimidade.

Certa vez, um cidadão bem mais novo do que ele e que frequentava sua casa fazia algum tempo, de repente resolveu tratá-lo por “você”. A reação de Péricles foi imediata: “Dobre a língua! O único jovem a quem eu permito que me trate por você é Leopoldo Péres, e mais ninguém!” O visitante saiu arrasado, com o pito e com a morte das pretensões acadêmicas que certamente alimentava. Como aconteceu, aliás, com muitos outros.

Morreu sem concluir o livro de memórias, do qual, curiosamente, só escreveu o último capítulo. É dedicado à esposa, mas de passagem menciona os momentos angustiosos que viveu durante o assédio a Paris, onde se encontrava em 1914. Ao final, dirige um comovente apelo a Deus para que não o deixasse morrer depois da esposa, pois não gostaria de sobreviver a ela. Deus foi ao encontro de sua vontade e levou-o, em 1956, deixando viúva D. Andrômaca, que sobreviveu a ele por muitos anos, morrendo em idade avançada. Não há dúvida de que, com o desaparecimento de Péricles, se encerrou uma era da história literária do Amazonas.

A liderança de Péricles só era disputada, talvez por Adriano Augusto de Araújo Jorge, fundador e segundo presidente da Academia, posto que manteve até morrer. Mas, ao contrário do seu colega, Adriano era, reconhecidamente, um dispersivo, que deixou pouca coisa escrita e não chegou a publicar um livro sequer. Brilhou, sobretudo, como orador.

O anúncio de que falaria, em qualquer evento, era garantia de público certo, para lhe ouvir a palavra cintilante. Nisso era ajudado por seu físico apolíneo. De estatura mediana, cabelo penteado em topete, olhos mortiços, olhar de cabra morta, como se dizia, impressionava principalmente as mulheres. Mantendo-se solteiro até muito perto de morrer, teve uma vida amorosa marcada por aventuras picantes, que prefiro omitir. Doublé de médico e humanista, sua atividade intelectual não o impedia de exercer a profissão com rara competência.


Clínico geral, com numerosa clientela, seu consultório, na Eduardo Ribeiro, vivia cheio, sendo muito solicitado, ainda, para atender pacientes em casa. Famoso, também, pela generosidade, não costumava cobrar de seus clientes, que pagavam como e quando queriam. Conta minha mãe que durante a epidemia de gripe espanhola, em 1918, que tirou a vida de centenas de pessoas, Adriano era um dos pouquíssimos médicos que não se recusavam a atender chamados. Apesar disso, às vezes não resistia à tentação de fazer humor mesmo que fosse humor negro.

Um dia, chamado por um vizinho nosso para atender seu velho pai, Adriano, ao deparar com um ancião arfante sobre a cama, parou na porta da alcova e disse em voz baixa: “Eu trato de doentes, não de moribundos...” Mas era apenas um blague, pois logo a seguir medicou o paciente, embora sem resultado, porque o caso era mesmo sem jeito.

Como político não foi muito feliz. Candidato ao Senado, em 1945, foi derrotado. Tentou em seguida a deputação estadual, também sem êxito. Conseguiu finalmente, numa terceira tentativa, eleger-se vereador à Câmara Municipal de Manaus. Em seu primeiro discurso como vereador não ocultou uma ponta de mágoa, ao salientar que, dos três cargos eletivos que disputara, havia conquistado exatamente o mais modesto.

Em seus últimos meses de vida, alquebrado, andava claudicante, talvez devido a alguma artrose ou reumatismo. Sem perder o bom humor, aos que perguntavam o que tinha na perna, respondia que era o peso de muitos pecados. Avesso a cemitérios, recusava-se a visitá-los desde que pronunciara a oração fúnebre em homenagem a Heliodoro Balbi, cujos restos foram transladados do Acre para Manaus. Sempre que era convidado, respondia que para lá só iria morto.

Surpreendentemente, no dia de finados de 1948, mudou de idéia e acompanhou a esposa ao São João Batista. À noite, sentiu-se mal e morreu, de madrugada, em sua velha casa da Rua Fortaleza, pobre como sempre vivera. Em sua homenagem, deram ao bairro o nome de Adrianópolis, que o povo, ao peso da tradição, teima em chamar de Vila Municipal.

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