Por Jefferson Peres
A cidade possuía, naturalmente, seus monstros sagrados.
Aliás, chamados pelo povo simplesmente de “monstros”, termo que, na gíria de
então, representava o máximo de elogio. Era aplicado a todos aqueles que tinham
uma atuação considerada genial em qualquer atividade, fosse um jogador de
futebol ou um cantor. Mas a admiração maior, embevecida e respeitosa, ia para
os homens de letras. Cultuados como monumentos vivos, eram saudados nas ruas,
com reverência, e apontados como celebridades.
O anúncio de uma conferência, a ser proferida por um deles,
era garantia de sala cheia, e no dia seguinte o pronunciamento era o assunto da
cidade. O mesmo acontecia com seus artigos e poemas, publicados na imprensa,
que rendiam aos seus autores momentos de glória, ao receberem uma chuva de
cumprimentos, partidos até de desconhecidos.
Todos eles pertenciam à Academia Amazonense de Letras, o
grande templo do saber, no qual entrávamos como se estivéssemos indo participar
de um culto religioso. Desde criança me habituei ao contato direto ou indireto
com aqueles monstros sagrados. De perto ou de longe, conheci-os todos e deles
guardo as mais diferentes impressões.
Como a Grécia, o Amazonas também teve a sua Era de Péricles.
Durante cerca de três décadas, até a sua morte, em meados dos anos 50, o grand-seigner da literatura amazonense
foi Péricles Moraes. Sua casa modesta, na Rua Henrique Martins, era um local de
romaria dos acadêmicos e dos que aspiravam às galas da imortalidade. Uma
recomendação sua era um passaporte seguro para os ingressos no Silogeu. Seu veto,
ao contrário, erguia uma barreira intransponível às pretensões de qualquer
candidato. E um simples elogio seu já constituía uma consagração para qualquer
jovem intelectual.
Dono de vasta erudição literária, era fascinado pela França,
cujo idioma dominava perfeitamente, como, aliás, todo intelectual de sua
geração. Dizem que quase metade da sua opulenta biblioteca era constituída de
livros escritos em francês. Encontrei-o algumas vezes em casa do meu tio
Leopoldo Péres, de quem era amigo íntimo e que seria por ele biografado numa
obra repassada de emoção. Alto, gordo, óculos de aros finos, nariz rubicundo,
lembrava a figura de um bispo ou de um avô bonachão. Um perfeccionista, tinha o
que ele chamou, certa vez, de martírio
flaubertiano da construção do período.
Quando presidia as sessões de recepção de novos acadêmicos,
muitas vezes seus discursos de abertura eram mais trabalhados do que as peças
oratórias dos principais personagens da noite. Muito apegado aos amigos,
comenta-se que sabia ser, igualmente, implacável como inimigo. Ficou famosa a
sua inimizade com Raimundo Morais, de quem não era parente, e a quem nunca
perdoou, não permitindo que entrasse na Academia e excluindo seu nome no livro
que escreveu intitulado Os Intérpretes da
Amazônia. Era também muito cioso do próprio valor e infenso a intimidade.
Certa vez, um cidadão bem mais novo do que ele e que
frequentava sua casa fazia algum tempo, de repente resolveu tratá-lo por “você”.
A reação de Péricles foi imediata: “Dobre a língua! O único jovem a quem eu
permito que me trate por você é Leopoldo Péres, e mais ninguém!” O visitante
saiu arrasado, com o pito e com a morte das pretensões acadêmicas que
certamente alimentava. Como aconteceu, aliás, com muitos outros.
Morreu sem concluir o livro de memórias, do qual,
curiosamente, só escreveu o último capítulo. É dedicado à esposa, mas de
passagem menciona os momentos angustiosos que viveu durante o assédio a Paris,
onde se encontrava em 1914. Ao final, dirige um comovente apelo a Deus para que
não o deixasse morrer depois da esposa, pois não gostaria de sobreviver a ela.
Deus foi ao encontro de sua vontade e levou-o, em 1956, deixando viúva D.
Andrômaca, que sobreviveu a ele por muitos anos, morrendo em idade avançada.
Não há dúvida de que, com o desaparecimento de Péricles, se encerrou uma era da
história literária do Amazonas.
A liderança de Péricles só era disputada, talvez por Adriano
Augusto de Araújo Jorge, fundador e segundo presidente da Academia, posto que
manteve até morrer. Mas, ao contrário do seu colega, Adriano era,
reconhecidamente, um dispersivo, que deixou pouca coisa escrita e não chegou a
publicar um livro sequer. Brilhou, sobretudo, como orador.
O anúncio de que falaria, em qualquer evento, era garantia
de público certo, para lhe ouvir a palavra cintilante. Nisso era ajudado por
seu físico apolíneo. De estatura mediana, cabelo penteado em topete, olhos
mortiços, olhar de cabra morta, como
se dizia, impressionava principalmente as mulheres. Mantendo-se solteiro até
muito perto de morrer, teve uma vida amorosa marcada por aventuras picantes,
que prefiro omitir. Doublé de médico
e humanista, sua atividade intelectual não o impedia de exercer a profissão com
rara competência.
Clínico geral, com numerosa clientela, seu consultório, na Eduardo
Ribeiro, vivia cheio, sendo muito solicitado, ainda, para atender pacientes em
casa. Famoso, também, pela generosidade, não costumava cobrar de seus clientes,
que pagavam como e quando queriam. Conta minha mãe que durante a epidemia de
gripe espanhola, em 1918, que tirou a vida de centenas de pessoas, Adriano era
um dos pouquíssimos médicos que não se recusavam a atender chamados. Apesar
disso, às vezes não resistia à tentação de fazer humor mesmo que fosse humor
negro.
Um dia, chamado por um vizinho nosso para atender seu velho
pai, Adriano, ao deparar com um ancião arfante sobre a cama, parou na porta da
alcova e disse em voz baixa: “Eu trato de doentes, não de moribundos...” Mas
era apenas um blague, pois logo a seguir medicou o paciente, embora sem
resultado, porque o caso era mesmo sem jeito.
Como político não foi muito feliz. Candidato ao Senado, em
1945, foi derrotado. Tentou em seguida a deputação estadual, também sem êxito.
Conseguiu finalmente, numa terceira tentativa, eleger-se vereador à Câmara
Municipal de Manaus. Em seu primeiro discurso como vereador não ocultou uma
ponta de mágoa, ao salientar que, dos três cargos eletivos que disputara, havia
conquistado exatamente o mais modesto.
Em seus últimos meses de vida, alquebrado, andava
claudicante, talvez devido a alguma artrose ou reumatismo. Sem perder o bom
humor, aos que perguntavam o que tinha na perna, respondia que era o peso de
muitos pecados. Avesso a cemitérios, recusava-se a visitá-los desde que pronunciara
a oração fúnebre em homenagem a Heliodoro Balbi, cujos restos foram
transladados do Acre para Manaus. Sempre que era convidado, respondia que para
lá só iria morto.
Surpreendentemente, no dia de finados de 1948, mudou de
idéia e acompanhou a esposa ao São João Batista. À noite, sentiu-se mal e
morreu, de madrugada, em sua velha casa da Rua Fortaleza, pobre como sempre
vivera. Em sua homenagem, deram ao bairro o nome de Adrianópolis, que o povo,
ao peso da tradição, teima em chamar de Vila Municipal.
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