Por Jefferson Peres
O conservadorismo da sociedade se revelava, também, na
maneira de trajar, que tinha suas normas até dentro de casa. Um vizinho nosso,
o velho Nogueira, respeitável tabelião, vestia paletó para receber as visitas.
Outros, mais requintados, usavam robes de chambre.
Mesmo na ausência de estranhos, não se andava à vontade. Meu
pai jamais sentou à mesa sem camisa, nem permitiu que os filhos o fizessem. E
ele não era uma exceção, apenas seguia a norma geral. Da mesma forma, um homem
adulto não aparecia à janela de peito nu. Para dormir, o traje usual, para os
homens, era pijama, de calças e mangas compridas e, para as mulheres, camisão,
até os calcanhares.
Fora de casa, a roupa dos homens adultos era uniformizada em
paletó e gravata. Nas festas, na missa, em batizados, casamentos ou
aniversários, no trabalho ou no cinema, sempre traje passeio completo.
Apenas em piqueniques e jogos esportivos muitos se permitiam
mangas de camisa, mas sempre de calças compridas, por que um homem de respeito
não mostrava as pernas, a não ser em roupa de banho.
As mulheres, moças ou senhoras, sempre de vestido, uma peça
hoje em desuso, a combinação, e às vezes uma anágua, para que a transparência
do vestido, contra a luz, não deixasse entrever a sombra da calcinha e do
sutiã.
Calça comprida não era para mulheres. Quem se atrevia a usá-la
era chamada de mulher-macho e ficava sob suspeita.
As senhoras casadas, mesmo no cotidiano, usavam também meias
de seda, presas por ligas no meio das coxas.
Um acessório indispensável, também, era o leque, que algumas
sabiam abanar com graça e elegância. Aliás, usado igualmente por alguns homens.
Lembro particularmente de dois, Adriano Queiroz e Moacir Rosas, que não se
constrangiam nem um pouco em puxá-lo do bolso interno do paletó numa sala de
cinema lotada.
O chapéu, chile ou de massa, ainda fazia parte da
indumentária de alguns, embora já estivessem algo fora de moda.
Quanto aos tecidos, o brim predominava entre os pobres. Os
mais abonados usavam casimira inglesa ou linho irlandês, de preferência
acetinado, em ternos, ou fatos, como
se dizia, feitos nas melhores alfaiatarias, como 100.000 Paletós, Demasi e
Ramalho.
Durante algum tempo fez muito sucesso um tecido chamado tubarão, brilhante, flexível e que não
amassava, novidade numa época em que ainda não haviam inventado o poliéster.
Nos balneários, os homens usavam calções não muito curtos, e
as mulheres, maiôs inteiros. Só depois foi lançado o maiô de duas peças, que
causou sensação, embora parecesse austero se comparando com o biquíni, que
viria em seguida, e com as tangas de hoje.
Mas nem mesmo o maiô inteiro era admitido em piqueniques de
colégios de freiras, nos quais as alunas eram obrigadas a mergulhar no igarapé
de vestido. Também obrigatório, para as internas, no próprio banho diário de
chuveiro.
Essa sociedade quase puritana demonstrava um temor
reverencial pelos mortos e um respeitoso culto por sua memória. As crianças e
muitos adultos tinham verdadeiro pavor de almas do outro mundo.
Desde muito pequenos ouvíamos falar de casos arrepiantes de visagens nas quais acreditávamos sem vacilações.
Daí por que muitos tinham medo de dormir sozinhos num quarto escuro e outros se
recusavam até a atravessar o corredor, à noite, para tomar um copo d’água.
Havia até mesmo casas consideradas mal-assombradas, onde à
noite vagavam espíritos e se ouviam choros e ruídos de móveis arrastados. A tal
ponto se dava crédito a essas histórias que as casas ficavam marcadas e seus
proprietários tinham dificuldade em alugá-las.
Uma dessas casas ainda existe, na Rua Saldanha Marinho, com
um portão encimado por dois bonitos leões de louça, e na qual seguramente seus
atuais moradores dormem sem nenhuma perturbação.
Mas, além do medo, os mortos legavam aos vivos algo levado
muito a sério, que era o luto. Como já mencionei antes, ocorrida a morte, as
portas e janelas da casa eram cerradas e os parentes lá se fechavam, até a
missa do 7º dia, saindo apenas para cuidar do indispensável.
A casa permanecia em silêncio e nem sequer o rádio era
ligado. A partir da missa, os parentes mais próximos do morto, viúvos, filhos e
pais, guardavam luto fechado por seis
meses, durante os quais os adultos se vestiam rigorosamente de preto e se
abstinham de comparecer a cinemas e a qualquer reunião festiva.
Após esse período, durante outros seis meses se usava luto aliviado, com as mulheres de
vestido preto e branco, e os homens de braçadeira negra ou fumo na lapela ou no
bolso da camisa. Nesse segundo semestre permitia-se a ida ao cinema, mas não a
festas. Quem o fizesse, era reprovado como pessoa insensível e ganhava mesmo a
inimizade de outros parentes.
Conheci um caso, pelo menos, de pessoa de grande projeção
social, que, por ocasião da morte do pai, rompeu relações com o primo, ao saber
que o mesmo não apenas não colocou luto pela morte do tio, como ainda ousou
comparecer à missa de 7ª dia usando uma reluzente gravata vermelha.
Considerou-se afrontado, porque naquela época nem mesmo um estranho se permitia
participar de um serviço fúnebre usando roupa ou acessório de cor berrante. Em
se tratando de um primo, então, era simplesmente imperdoável.
A religião era um valor levado extremamente a sério. A
população católica não o era apenas formalmente, por hábito ou tradição. Em sua
grande maioria eram praticantes que frequentavam a igreja não para cumprir um
dever social, mas por força de uma crença nas coisas sagradas que beirava a
superstição.
Em quase todas as casas, nas alcovas, havia oratórios,
cheios de imagens de santos, com genuflexórios que não tinham caráter meramente
ornamental, pois eram usados diariamente para as orações noturnas e matinais.
A educação religiosa começava desde cedo, com as crianças
aprendendo o Padre-Nosso (ainda não se dizia Pai-Nosso), a Ave-Maria e a Salve
Rainha, que nunca deixavam de rezar antes de dormir. Tão logo aprendiam a ler,
eram encaminhadas às aulas de catecismo e, após a 1ª comunhão, passavam a se
confessar e comungar regularmente.
A frequência à missa, então, era obrigatória aos domingos,
às vezes em horários bastantes impróprios. Lembro-me como ia dormir aborrecido
nas noites de sábado, por saber que no dia seguinte seria despertado às 4:30 da
madrugada, para estar na missa das 5 da Beneficente Portuguesa.
As procissões eram acontecimentos que levavam gigantescas
multidões às ruas, principalmente nos grandes feriados religiosos como os do
Senhor Morto, Corpus Christi e N. S. da Conceição.
Compareciam as mais altas autoridades, a começar pelo
Governador, além de pessoa de grande expressão social, muitos integrantes de
irmandades, os homens com os trajes vermelhos de Irmão do Santíssimo, e as
mulheres com as fitas azuis das Filhas de Maria.
Um número considerável de populares, e até de pessoas
conhecidas, compareciam para pagar promessas, vestida de Cristo, com cruzes aos
ombros, andando de joelhos ou com pedras na cabeça. Como ainda hoje acontece,
mas seguramente em quantidade muito menor.
Naquele tempo a massa era tão grande que a frente do cortejo
já dobrava a Joaquim Nabuco, no Canto do Quintela, e ainda havia gente saindo
da Catedral. Era realmente um impressionante movimento de massa.
Mas o fervor religioso do povo se manifestava mesmo na
Semana Santa. A cidade parava e só se mantinham as atividades essenciais.
Muitos não trabalhavam nem em casa, atemorizados pelas histórias que se
contavam de desgraças acontecidas aos que cometiam esse sacrilégio.
A abstinência de carne era total, as rádios só tocavam
músicas sacras ou clássicas e os cinemas só passavam o tradicional “Vida,
Paixão e Morte do Nosso Senhor Jesus Cristo”, que levava boa parte da plateia
às lágrimas. Era tão arraigado o respeito a essa data, que a maioria das
prostitutas se recusava a receber a clientela.
O ardor da minoria protestante não era menos intenso, o que
explica a miniguerra religiosa que então aconteceu.
Em 1950, chegou a Manaus um pastor batista chamado Martins,
ardoroso orador sacro, que fazia pregações candentes nos templos e através de
uma emissora de rádio.
Nessas prédicas não se limitava a ensinar a sua
doutrina, mas enveredava também por ataques à Igreja Católica, correndo a
informação, não sei se verdadeira, de que se excedia, investindo contra alguns
dos mais sagrados dogmas e sacramentos católicos, como a eucaristia e a
santidade da Virgem Maria.
O assunto era objeto de comentários irritados em
toda a cidade. Irritação agravada pela circunstância de o pastor ser um ex-padre
convertido.
Um dia, os batistas cometeram a imprudência de convocar uma
concentração para a Praça da Saudade, à noite, na qual falaria o controvertido
pastor. Na hora designada, alguns padres salesianos reuniram um grupo numeroso
de alunos no pátio do colégio, os quais, depois de ouvirem exaltados discursos,
proferidos por sacerdotes e leigos, marcharam para a concentração armados de
pedras e porretes.
Lá, dissolveram a manifestação violentamente, provocando
ferimentos em várias pessoas, inclusive no pastor e político Antunes de
Oliveira, com uma pedrada na cabeça. Dizem que Antunes guardou até o fim da
vida a pedra que o atingiu. A confusão só terminou com a chegada da polícia.
Felizmente, a guerra também terminou ali, sem deixar sequelas.
No dia seguinte, dirigentes evangélicos publicaram várias
notas de protesto, uma das quais assinada, entre outros, pelo meu prezado João
Chrysóstomo de Oliveira, então presbítero. Os católicos não responderam, o pivô
dos acontecimentos abandonou a cidade e o inquérito policial instaurado foi
arquivado meses depois na Justiça.
A partir daí houve como que um acordo tácito de silêncio em
torno dos fatos, até que caíssem no esquecimento. Ainda estávamos longe do
ecumenismo de João XXIII, as relações entre católicos e protestantes não eram
propriamente cordiais, mas não se manifestavam em forma de hostilidade aberta.
Como os amazonenses não chegam a ser bem irlandeses, não
seria mesmo de esperar que Manaus se transformasse numa Belfast tropical.
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