Por Jefferson Peres
Pode-se dizer que a escola, pelo menos em nível do curso
primário, tinha um caráter essencialmente democrático. Os Grupos Escolares, de
ensino público e gratuito, eram frequentados por crianças de todas as classes
sociais, que se irmanavam no uso do uniforme azul e branco e do sapato de tênis
marrom ou branco. Não o tênis de hoje, sofisticado e variado, mas o de
antigamente, simples e de modelo único.
No centro da cidade havia sete Grupos: o Marechal Hermes, o
José Paranaguá, o Barão do Rio Branco, o Saldanha Marinho, o Nilo Peçanha, o
Farias Brito e o Ribeiro da Cunha, com exceção dos dois primeiros, todos ainda
existentes. Difícil encontrar uma pessoa com mais de quarenta anos que não
tenha estudado em um deles.
Eu não fugi à regra e fiz as cinco séries do antigo primário
e mais um ano de pré-escolar, que então se chamava de maternal, no velho Barão,
à época instalado no pavimento térreo do atual quartel da Polícia Militar. No
pavimento superior funcionava a Escola Normal, antes de sua mudança para o
prédio que hoje ocupa.
Eu gostava daquelas salas amplas e arejadas, que mais
pareciam salões. Mas gostava ainda mais da minha professora, D. Lucila Freitas,
cuja aparência severa ocultava uma alma boníssima. E que tinha especial
predileção por mim. Tanta, que me dedicou um livro de H. Van Loon, História da Humanidade, nestes termos: ao Jefferson, o primeiro de sua classe e o
primeiro, também, no coração de sua professora. Creio que só a segunda
parte da dedicatória era verdadeira; a primeira ficava por conta do seu
confessado amor. Pobre D. Lucila, desaparecida tão cedo e injustamente
esquecida nas homenagens que o governo presta aos mestres do passado.
O material escolar era conduzido em pasta de couro marrom,
com alça. O livro-texto, “Nosso Brasil”, continha narrativas curtas sobre as
diferentes regiões do país que um simpático avô ia contando a seus deslumbrados
netos. O livro, adotado, oficialmente por muitos anos, passava de um irmão a
outro, para alívio do orçamento dos pais. Havia mais um caderno grosso, para
todas as disciplinas, um outro para desenho e um terceiro de caligrafia. Para
escrever, usávamos lápis ou canetas das antigas, que embebíamos em tinteiros de
marca “Pelikan”.
As canetas eram permanentes, mas as penas tinham de ser
trocadas com frequência, porque enferrujavam ou se abriam ao meio, tornando-se
imprestáveis. Os dedos ficavam sempre manchados de azul, e às vezes, também
cadernos, livros e roupas, quando os tinteiros eram acidentalmente emborcados.
Só no curso ginasial ganhei uma caneta-tinteiro, das comuns, que levava alguns
dias para ser recarregada.
Mas, foi ao ingressar na faculdade que meu pai me presenteou
com uma bela “Parker 51”, de corpo bege e tampa dourada, que eu exibia
vaidosamente. Além do material escolar, levávamos também, na bolsa, o embrulho
de merenda, quase sempre um simples pão com manteiga, às vezes enriquecido com
uma fatia de goiabada.
O curso médio, à época, se subdividia em ginasial, com
quatro anos, e científico ou clássico ou, ainda, pedagógico, com três anos. Era
ministrado nos dois colégios públicos tradicionais, a Escola Normal e o Ginásio
Pedro II, e em três grandes colégios católicos, ainda hoje existentes: D.
Bosco, Auxiliadora e Santa Dorotéia.
Havia, ainda, as escolas com cursos profissionalizantes,
como a Escola Técnica de Manaus e a Escola de Aprendizes Artífices do Paredão
que não atraíam a classe média. E, ainda, os pequenos colégios particulares
leigos, mantidos, a duras penas, graças ao esforço de seus fundadores e
proprietários. Eram três: o S. Francisco de Assim, do professor Fueth Paulo
Mourão, que se manteve alguns anos após a sua morte, dirigido pela viúva e por
seus filhos; o Rui Barbosa, dos professores Hamilton e Natércia de Brito, que
não sobreviveu a seus proprietários; e o Colégio Brasileiro, que conheci
modestíssimo, instalado numa velha casa, a da Rua Dr. Moreira, nada fazendo
suspeitar que Pedro Silvestre o transformaria num dos maiores colégios da
cidade, antes de desaparecer, alguns anos após a sua morte.
Fiz todo o curso médio, do primeiro ginasial ao terceiro
científico, no colégio Dom Bosco, onde ingressei através de um exame de
admissão feito com certo rigor, porque as vagas eram muito disputadas, devido a
sua boa reputação. Já instalado no prédio onde se encontra até hoje, na Avenida
Epaminondas, era talvez o maior colégio da cidade, com alunos exclusivamente do
sexo masculino, da mesma forma que os colégios de freiras só admitiam moças.
Era norma das escolas católicas, que não permitiam mistura de sexos.
Estranhei muito a mudança de ambiente. A disciplina era
rigorosa e os horários bastante rígidos. Às sete horas as portas eram fechadas
e nos dirigíamos para a capela, situada à direita do prédio principal, onde
assistíamos obrigatoriamente à missa, geralmente cantada, e ouvíamos um sermão,
proferido pelo oficiante ou pelo próprio diretor, padre Stélio Dalison. Ainda
hoje sei de cor músicas como Queremos
Deus, Com Minha Mãe Estarei e o Tantum Ergum inteiro, em latim.
Após a missa seguíamos em fila para as salas de aula. No
meio da manhã tínhamos quinze minutos de recreio, ao fim do qual nos reuníamos
no pátio, e, depois de breve oração, retornávamos às salas novamente em fila.
Ao término do último tempo, ainda uma prece ligeira, antes de sermos liberados.
Qualquer infração às regras era punida implacavelmente e negado ao acusado o
direito de defesa.
Em cada sala de aula havia um decurião, aluno da confiança
do padre-conselheiro, encarregado de espionar os colegas. Ao final das aulas o
moço entregava ao padre uma lista com os nomes dos companheiros que, à sua
discrição, haviam-se comportado mal. Estes ficavam retidos para o castigo, que
consistia em permanecer de pé por trinta ou sessenta minutos.
Muitas vezes sofri a punição, junto com outros, no velho
barracão, ao lado do campo de futebol. Ficávamos, às vezes, até uma hora da
tarde, mortos de fome, sob a vigilância do padre Agostinho que, sentado, lia
tranquilamente o jornal. Nos casos considerados mais graves aplicava-se a pena
se suspensão e, excepcionalmente, de expulsão. Inútil qualquer tentativa de
defesa, sempre repelida com palavras grosseira, às vezes seguidas de sinetadas
na cabeça. Isso quando se tratava do padre Agostinho, porque com outros podia
ser pior.
Jamais poderei esquecer do padre João Rotini, um italiano de
físico avantajado, cujas mãos, semelhantes a manoplas, costumavam cair
pesadamente sobre o rosto ou a nuca dos que ousavam desafiar-lhe a autoridade.
No caso do padre Agostinho é preciso fazer-lhe a justiça, como eu e muitos
outros fizeram, por ocasião do seu centenário. É que, além de não chegar a
esses extremos de violência, diferentemente dos outros, sentia e demonstrava um
grande amor pelos seus alunos. Deu inúmeras provas disso, mas vou recordar
apenas uma, que me parece bastante expressiva.
Naquele tempo, o comunismo era a bête noire da Igreja, para quem os comunistas eram a própria
encarnação do Anticristo. E os salesianos não fugiam à regra. Ao contrário,
enfileiravam-se entre os mais exaltados e intolerantes. É preciso ter isto em
mente para compreender a grandeza do padre Agostinho no episódio que vou
narrar.
No imediato pós-guerra chegava a Manaus Ivan Ribeiro, filho
de Ribeiro Jr., candidato a deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro,
então na legalidade. Como ex-aluno salesiano, Ivan mandou um emissário
perguntar ao padre Agostinho se poderia visitá-lo, ouvindo em resposta que
seria recebido com todo o carinho, como efetivamente aconteceu.
Não preciso dizer que o gesto do bom padre foi antes de tudo
um ato de coragem, pelas reações que provocou em seus colegas de ordem, tomados
de um espírito de intolerância a que não escapavam mesmo aqueles mais
intelectualizados.
Lembro que o padre Stélio, de enorme talento e
extraordinário orador sacro, durante uma aula de religião, contestado
timidamente por mim, sobre uma questão de teologia, respondeu com ironia e
rispidez e, em seguida, abandonou a sala, sem disfarçar a irritação. Pude
compreender, naquele momento, que um educador salesiano daquele tempo, por sua
formação, não estava preparado para aceitar como normal o livre debate com
alunos.
Tudo isso não impedia, porém, que reinasse um ambiente de
grande camaradagem em cada turma. Entre os meus colegas, alguns se tornaram
meus amigos, como o Luiz Maximino de Miranda Correa, Mário Alberto Monteiro,
Luiz Alberto Couto e Gilberto Alexandre Barbosa, o Gil, pioneiro do moderno
colunismo social no Amazonas.
Outros daqui se foram e não mais vi, a não ser em rápidos e
eventuais encontros, como Pompeu Martinho, Rafael Gil Blanco, Cláudio Marçal Mendes.
Com outros, também, apesar de não pertencer à minha turma, estabeleci laços de
amizades que consolidaram ao longo dos anos, tais como Augusto Lacerda, o
Gutinho, e Mário Jorge Morais, pra citar apenas dois.
Com o s professores, igualmente, a convivência foi boa e até
mesmo cordial. Eram leigos, em sua maioria, recrutados entre os melhores da
cidade. Muitos já se foram, levados pela indesejada das gentes, como o velho
Carneiro, de Geografia Geral, Sebastião Norões, de Geografia do Brasil, Herbert
Palhano, de Português, Júlio Valois Ferreira, de Francês, Fueth Paulo Morão, de
Matemática, Paulo Jobim, de História do Brasil e Mário Jorge do Couto Lopes,
que lecionou História Geral.
Os demais eram padres salesianos, quase todos estrangeiros,
de passagem por Manaus, onde ficavam por pouco tempo. Dos brasileiros que eu
consigo lembrar, apenas os padres Severo e Pereira Neto, e efetivamente aqui
radicados, os padres Stélio e Agostinho. O tratamento dispensado aos mestres
era respeitoso, a começar pela saudação obrigatória que lhe fazíamos, ao nos
levantarmos à sua entrada na sala. Muitos gozavam de nossa estima e por eles
tínhamos um respeito natural. Outros, apenas aturávamos e não hostilizávamos
unicamente por temor à punição.
Mas nem todos eram poupados, vítimas de colegas nossos que
não se intimidavam com o severo regime disciplinar. Augusto Lacerda, o Gutinho,
era um desses. Rebelde, indomável, gaiato, era frequentador habitual das listas
dos decuriões. Não perdia a oportunidade de atenazar a vida dos colegas e
professores. Como aconteceu certa vez com o padre Orlando, nosso professor de
Latim, com um método de ensino sui
generis, que consistia em nos fazer cantar em coro as desinência e
terminações verbais. Por isso, embora não tenha aprendido Latim, nunca mais
esqueci, por exemplo, o presente do indicativo do verbo SER, pois cansei de
gritar, com os outros, as letras e/ou sílabas finais: M, S, T, MUS, TIS, NT.
Essas cantorias às vezes degeneravam em chacota e bagunça, que o padre,
irritadiço, não vacilava em punir.
Foi o que aconteceu no dia do seu aniversário, que Gutinho
descobriu não sei como. Quando o padre surgiu, ele pediu licença para lhe
dirigir algumas palavras de saudação e entregou-lhe o presente num vistoso
embrulho. Surpreendido com a homenagem, principalmente porque prestada por um
dos alunos mais indisciplinados, Orlando, que tinha uma careca lustrosíssima,
tipo bola de bilhar, começou a desembrulhar o presente, quase às lagrimas. E
teve uma surpresa ainda maior, ao deparar, no fundo da caixa, com um pente de
bom tamanho. Infelizmente, o padre não tinha o mesmo senso de humor, e aos
gritos, expulsou o gozador da sala.
Outra vez, Gutinho implicou com um funcionário leigo do
colégio, que eventualmente ministrava aulas. Era extremamente carola e tinha
vozinha fanhosa que em nada o ajudava, em termos de simpatia. Um dia Gutinho o
provocou, discutiram e ele adotou uma postura agressiva, que levou o primeiro a
desafiá-lo para uma briga, com ou sem armas, à sua escolha. Imediatamente, o
homenzinho meteu a mão no bolso do paletó e exclamou: “Esta é a minha arma!”,
ao mesmo tempo em que exibia, não um revólver, mas um enorme rosário de contas
negras. Desta vez o surpreendido foi Gutinho, com a briga frustrada de maneira
tão incomum.
Mas a grande maioria dos alunos preferia evitar confrontos
com os padres. E muitos descarregavam suas mágoas e energias naquela grande
explosão diária que o Canindé
proporcionava. Jamais consegui descobrir a origem desse nome, aplicado à
gigantescas pelada, que se caracterizava pela total ausência de regras. Apenas,
como exceção, não se podia carregar a bola com a mão. No mais, valia tudo. A
começar pelo número de participantes, sem limite, e pela inexistência de times
organizados.
No início do recreio, os aficionados corriam, em grande
algazarra, sem direção ao campo, ao lado da Saldanha Marinho, e davam início à
partida. Sem a presença de árbitro, cerca de uma centena, talvez, de peladeiros
chutavam a bola de qualquer maneira, livrando-se dos adversários aos trancos e empurrões,
numa louca correria que durava até o toque do sino anunciando o fim do recreio.
Tínhamos um derivativo, também, nas sessões de cinema e
espetáculos realizados no teatrinho que se erguia à esquerda do edifício
principal, ao nível do primeiro andar, com o qual se ligava através de um
passadiço. Ali, muitas vezes, se exibiu a dupla Lulu & Mourão que nos
arrancava boas gargalhadas com seu talento histriônico.
O Mourão não era outro senão Fueth Paulo Mourão, nosso
professor de Matemática e diretor do Colégio S. Francisco de Assis; e o Lulu
era aquele que mais tarde se transformaria no sisudo desembargador Luiz Furtado
de Oliveira Cabral. Lamentavelmente, aquele pequeno espaço cultural desapareceu
e nada foi feito para substituí-lo.
Fora do colégio, quando nos sentíamos saturados de aula,
formávamos grupos para melhor aproveitamento da gazeta, um salutar exercício de higiene mental. Quando previamente
combinada, já vestíamos por baixo da farda o calção de banho, porque o destino
era o Parque 10 de Novembro, onde passávamos o resto da manhã.
Quando a gazeta
era improvisada, saíamos a esmo, para namorar, jogar sinuca, conversar fiado em
alguma praça ou, então, por desfastio, dar
espeto em algum botequim. Com dinheiro curto, fazíamos despesas
relativamente pequenas, mas superiores às nossas parcas mesadas. Mandávamos
servir refrigerantes, refrescos, cerveja, croquetes, pastéis e cigarros, e
esticávamos o papo durante horas. À certa altura, e a um sinal combinado,
saíamos em desabalada carreira, dispersando-nos em várias direções, a fim de
dificultar a perseguição, quase sempre infrutífera.
Um dos grandes calotes que demos foi no Pimpão, dono de um
barzinho situado na esquina de Epaminondas com 24 de Maio, em frente ao
colégio. A partir daí, o português, gato escaldado, passou a exercer a severa
vigilância sobre os grupos que lá apareciam, o que nos obrigou a procurar novas
vítimas.
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