Por Jefferson Peres
Os filhos menores tinham hora marcada para chegar em casa,
geralmente dez ou onze horas da noite. Dificilmente a hora limite era
ultrapassada, pois se o fizessem teriam de bater na porta, aberta por um rosto
severo que exigia do transgressor plenas e cabais explicações para o atraso.
Isto quanto aos filhos homens, porque as moças não podiam
sequer sonhar em sair à noite desacompanhadas. Sobre elas o controle exercido
era dos mais rigorosos. Só namoravam na sala ou no portão, à vista dos mais
velhos. Passeios, festas, cinemas, apenas em companhia de alguém, nem que fosse
de um irmão mais novo. Sozinha, nunca, porque ficava falada. E moça falada
tinha reduzida a quase a zero suas chances de casamento.
A virgindade era um tabu dos mais respeitados. Quando
ocorria um desvirginamento, mobilizavam-se as famílias do autor e da vítima
para que o caso fosse abafado e o casamento realizado sem demora. Ainda assim,
se a noiva casava grávida, o nascimento da criança, sete ou oito meses depois
do casamento, provocava comentários maliciosos e desculpas da família de que se
tratava de um parto prematuro.
Se uma garota ganhava fama de não ser mais moça, e aparecia
um corajoso capaz de aceitá-la, o infeliz era ridicularizado e chamado
depreciativamente de pedreiro. Porque, homem que se prezasse, não casaria
jamais com mulher desvirginada. E, se casasse enganado, podia reagir de forma radical.
Conheci mais de um caso de marido que foi devolver a mulher aos pais, no dia
seguinte ao casamento, ao constatar que havia sido ludibriado.
Compreende-se, assim, a preocupação das moças com a própria
reputação, e o cuidado especial dos pais em relação às filhas. Principalmente,
se levarmos em conta que o casamento era o grande objetivo de toda mulher,
educada desde pequena para isso.
A instrução formal se limitava ao primário, ao ginasial e ao
pedagógico. As poucas que chegavam a fazer curso superior, geralmente Direito,
visavam obter o título como ornamento, jamais com propósito de exercer a
profissão.
O importante era que a moça estivesse apta a dirigir o lar e
frequentar os salões. Para tanto, era necessário adquirir boas maneiras, saber
tocar um instrumento, de preferência piano, e conhecer prendas domésticas, como
arte culinária, flores e corte e costura.
Feito isso, a garota se concentrava, com total apoio da sua
mãe, na busca de um bom partido, que devia ser médico, engenheiro, advogado ou oficial
de uma das três armas. Se fosse também bonito e de boa família, representava,
então a encarnação do próprio príncipe encantado com quem sonhavam todas as
moças casadoiras. Era a total e plena realização do seu ideal de vida.
Não é difícil entender, portanto, por que o casamento se
tornava, para toda jovem, uma obsessão, e por que o medo e a amargura, à medida
que o tempo passava. Ao atingir os 20 anos sem casar, diziam que ela havia dado
o primeiro tiro da macaca; aos 25 anos, dava o segundo tiro e sua ansiedade
aumentava; aos 30 anos, ao dar o terceiro tiro, entrava em pânico, porque, a
partir daí, encontrar o marido, só por milagre.
Com o fim da juventude, a moça estava condenada ao
humilhante caritó e aos poucos ia
aceitando o papel de titia, compensando sua enorme frustração com um total
desvelo pelos sobrinhos.
Claro que as solteironas existem ainda hoje, mas não tem o
caráter patético que assumiam no passado, especialmente quando se quedavam
desamparadas e solitárias, sem nada a que se pudessem apegar.
Entre tantas que conheci, lembro-me em particular das irmãs
Coelho. Eram quatro velhinhas, amigas de minhas tias, frequentadoras habituais
da casa da minha avó materna. Filhas de um comerciante português, dono de uma
grande casa de ferragens, que abriu falência e morreu deixando apenas dívidas.
Educadas à antiga, ricas de prendas domésticas, mas
inteiramente despreparadas para a vida, nunca perderam a esperança de casar.
Paupérrimas, vivendo de pensão deixada por um irmão, sempre arranjavam meios de
se vestir decentemente, pintadas e arrumadas, procurando disfarçar a idade que
nunca revelavam.
Era comovente ouvi-las falar com mal dissimulada satisfação
sobre casamentos fracassados, acrescentando, insinceramente, pela milésima vez,
que davam graças a Deus por não haver casado. Mas se traíam, ao voltar dos
passeios, que frequentemente faziam, falando de imaginários flertes com rapazes
muitos mais jovens que lhes teriam dirigido olhares de interesse.
Foram morrendo uma a uma, virgens e sempre apegadas a essa
ilusão. A última, chamada Hilda, morreu na Fundação Dr. Thomas e, tenho certeza
de que, mesmo na hora da agonia, deve ter acreditado que no último instante
surgiria o noivo pelo qual esperou a vida inteira.
Noivado era compromisso muito sério, quase irretratável.
Tanto que havia até um ritual. Marcado com antecedência, logo a notícia se
espalhava na cidade: “fulana vai ser pedida no dia X”.
Havia um “frisson” entre as jovens casadoiras e as
respectivas mães, num misto de admiração e inveja, tanto maiores quando mais
importantes e cobiçados fossem os nubentes. No dia designado a vizinhança
ficava na expectativa do acontecimento.
Casa iluminada, janelas abertas, os pais da moça, solenes,
recebiam o emissário, que podia ser o pai do moço ou uma pessoa ilustre da
sociedade, sem a presença dos dois maiores interessados. Após uma breve troca
de amenidades, o visitante revelava o motivo da visita e o pai da jovem, com
fingida surpresa, dava o seu consentimento.
Em seguida, servia-se uma taça de champanhe. Estava selado o
compromisso, que não se rompia com facilidade. Quando isso acontecia, alcançava
dimensões de escândalo.
A ex-noiva sentia-se profundamente humilhada, algumas tinham
crises de choro e havia as que eram mandadas para longas viagens de cura e
esquecimento.
Quanto ao rapaz, ficava malvisto como se fora um vilão, por
haver “empatado” a moça tanto tempo. Os noivados podiam ser longos,
estendendo-se por muitos anos. Mas o recordista, sem dúvida, foi Adriano Jorge,
noivo durante 25 anos de D. Laura Tapajós, com quem afinal casou já na
maturidade.
E havia até noivos eternos, que não se casavam nunca. Lembro
de Mário Castro, irmão do médico Flávio de Castro. Durou mais de 10 anos seu
noivado com D. Brunhilde Coutinho, de apelido Bubu. Dizem que, por algum tempo,
namorou simultaneamente outra moça chamada Lindalva Bastos. Quando Lindalva
morreu, ele continuou noivo de D. Bubu. Fui testemunha ocular, já que ela
morava quase em frente à minha casa, na Av. Getúlio Vargas.
Diariamente eu o via chegar, por volta de 7 horas da noite.
Já um homem de meia-idade, baixo, atarracado, sempre de paletó e guarda-chuva,
sentava-se em cadeira de balanço na calçada e ficava conversando com a noiva
até muito tarde. A rotina não se interrompeu mesmo quando D. Bubu se prostrou,
vítima de doença incurável.
Apenas Mário trocou a calçada pelo quarto da enferma, com a
qual certamente os diálogos mal podiam disfarçar a tristeza e a angústia ante a
proximidade do fim. Mas não houve casamento “in extremis”. Pouco depois da
morte de D. Bubu, ele se mudou de vez para o Rio de Janeiro, onde morreria
solteiro.
Houve, porém um caso “sui generis” de casamento sem noivado
e, a rigor, até mesmo sem namoro. Aconteceu com a minha estimadíssima Eldah
Bitton, admirável figura que tinha o dom de render, pela simpatia e bom humor,
todos que dela se aproximavam.
Eldah atravessara toda a sua juventude cuidando mais de
estudos, especialmente de canto lírico, do que de namorados. Já balzaquiana
(palavra tão antiga!), permanecia solteira e sem nenhuma preocupação com
casamento, que não mais figurava em seu projeto de vida.
Mas, entre suas muitas amizades masculinas, incluía-se o seu
tio Sabas Teles, meio-irmão de sua mãe. Médico radiologista de nomeada em
Manaus, Sabas Teles, no entanto, era um esquisitão, de poucas palavras e avesso
a reuniões sociais. Vivia para o estudo e o trabalho, restringindo o lazer à
música e, ocasionalmente, ao cinema.
Desde o seu regresso a Manaus, formado em medicina, tinha
por hábito visitar a irmã e a sobrinha diariamente, para espantar um pouco a
solidão, já que morava na casa de sua mãe e não frequentava bares, clubes ou
recepções.
À semelhança de Mário Castro e, por coincidência, a poucos
passos de distância, no mesmo quarteirão da Av. Getúlio Vargas, ele assinava o
ponto todas as noites. Ocorre que Mário ia oficialmente para namorar, Sabas nem
isso, pois jamais manifestou a Eldah e à mãe, interrompido por algumas raras
intervenções de Sabas, que passava a maior parte do tempo de olhos nas
estrelas, alheio à conversa das duas.
Um dia, trinta anos após o início dessas visitas, sem aviso
prévio, Eldah recebeu a visita de um escrevente do Cartório de Registro Civil,
com os papéis, para assinar, do seu casamento com Sabas. Atônita, sem acreditar
no que ouvia, ela telefonou para o tio, que confirmou tudo com a maior
tranquilidade, sem demonstrar nenhuma emoção. A cerimônia teve lugar dias
depois, perante as testemunhas de lei, mas nenhum convidado. Foi assim que ser
realizou esse estranho casamento, sem prévia declaração de amor.
A família e a sociedade em geral eram muito mais liberais
com os varões. Salvo a limitação da hora da chegada, imposta aos menores, havia
ampla liberdade de locomoção, de escolha de amigos e de ambiente.
Desnecessários maiores cuidados, numa época em que não
existia o problema de tóxicos. De maconha, então chamada dirijo, só se ouvia falar raramente, nas páginas policiais,
envolvendo pessoas das camadas mais pobres; cocaína, só conhecíamos de novelas
policiais; bolinhas também não eram consumidas; enfim, entorpecentes, de
qualquer espécie, eram inteiramente estranhos aos hábitos da nossa juventude,
não havendo, assim, por que os pais se preocuparem com as andanças dos filhos.
A única preocupação real era quanto ao homossexualismo. Não
tanto o feminino, pois, tanto quanto eu sabia, o lesbianismo era raríssimo. O
problema dizia respeito aos homens. Estes podiam ser tudo, bêbados, vagabundos
ou arruaceiros, mas homossexuais, nunca. Era o que de pior podia acontecer a
uma família.
Quando um garoto ou rapaz se revelava como tal, os pais e
irmãos morriam de vergonha e desgosto. Alguns reagiam violentamente. Lembro-me
de um, meu contemporâneo no Colégio D. Bosco, assumido, como hoje se diz, que
levava surras homéricas do pai, um militar que se julgava desonrado pelo filho.
Este acabou expulso de casa, indo abrigar-se na casa da avó.
Mas a hostilidade existia na escola, na rua, em toda parte.
Aqueles de trejeitos mais acentuados eram perseguidos com assobios e piadas
obscenas. E quando ousavam replicar, os provocadores reagiam com sonoras vaias
e, não raro, com agressões físicas.
Os enrustidos, quando descobertos, eram sumariamente
excluídos das turmas. Lembro-me, por exemplo, dos meus tempos de molecagem na
rua Saldanha Marinho, hoje Huáscar de Figueiredo. Fazia parte do grupo um
garoto chamado Celino, dos mais inteligentes e agradáveis.
Um dia, não sei como, correu a notícia de que o Celino era
homossexual. Recebida com estupor e incredulidade, a nova levou algum tempo
para ser assimilada. Quando não houve mais dúvida, ficou decidido que ele não
mais frequentaria a roda.
Felizmente, a humilhação não se consumou. Nosso ex-colega,
por iniciativa própria, não mais nos procurou, e pouco tempo depois tomava o
rumo do Rio de Janeiro. Muitos outros fizeram o mesmo; alguns, talvez, para
realizar o sonho da metrópole; a maioria, provavelmente, como ele, para fugir a
uma atmosfera irrespirável.
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