Por Jefferson Peres
Walmiki Ramayana Paula e Souza de Chevalier era o seu nome
completo. Como que antevendo a vocação literária do filho, seu pai lhe deu os
nomes de célebre poema épico hindu e do seu autor presumível. Não sei por que
Ramayana acabou por estudar Medicina. Dizem seus contemporâneos da faculdade
que em suas provas orais ele já fazia verdadeiras dissertações. Formado,
guardou o diploma e nunca exerceu efetivamente a profissão. Seu mundo era o das
letras e da boêmia, como ele próprio confessava.
Tribuno excepcionalmente dotado, era capaz de discorrer
durante horas sobre qualquer tema. Quando ele voltou do Rio, após longos anos
de ausência, procurei-o, em nome do Diretório Acadêmico, para convidá-lo a
pronunciar uma conferência na Faculdade de Direito. Deixado o tema à sua
escolha, decidiu na hora: Democracia Libertária.
À noite, depois de ouvir o discurso de saudação, que coube a
mim fazer, tomou a palavra e, por mais de uma hora, discorreu sobre os
princípios de um novo regime, que preconizava, bem como sobre o movimento
político que estaria sendo articulado para a sua implantação. Ao fim,
compreendemos que tínhamos assistido apenas a um prodigioso exercício de
imaginação. Mas nem por isso nos sentimos frustrados, pois em compensação nos
havíamos regalado com uma bela demonstração de oratória.
Ator nato, tinha um grande pendor para os gestos teatrais.
Em 1953 liderou uma ruidosa campanha de arrecadação de donativos em favor das
vítimas da enchente. Parece-me vê-lo, ainda em plena Eduardo Ribeiro, sentado
no para-lama dianteiro de um velho automóvel, com faixa e alto-falante, a
implorar o auxílio da população.
Jornalista de combate, tinha uma pena demolidora, que muito
incomodava os adversários durante as campanhas eleitorais. Mas não teve sorte
em política, jamais conseguindo galgar nenhum posto eletivo. Em grande parte,
talvez, devido ao seu pouco empenho. Levava sua candidatura na brincadeira, como
quase tudo que fazia. Gostava mesmo era de varar a madrugada num bate-papo com
os amigos, sem preocupação com o tempo. Um eterno menino, que ocupava as horas
vagas com trotes irreverentes passados nos figurões da cidade.
Displicente, escreveu apenas dois ou três livros, muito
menos do que se poderia esperar de seu enorme talento. Aquele garoto brincalhão
quer era Ramayana – oculto na máscara de feições orientais – guardava, no
entanto, a mágoa de viver, por circunstâncias diversas, longe do Amazonas, que
ele amava com um apego telúrico e uma unção quase religiosa.
Por coincidência ou não, dentre os homens que brilhavam em
nosso meio literário, além de Álvaro Maia, também ensaísta e ficcionista,
apenas um era, antes e acima de tudo, poeta. Chamava-se Américo Antony. Seu
valor intelectual era reconhecido por todos, mas muitos lhe torciam o nariz
devido à sua excentricidade. A começar pela figura. Magro, recurvo, cabelos
compridos, terno amarfanhado e capa eternamente pendurada no braço, fizesse
chuva ou sol.
Formado em direito, foi promotor no interior, mas dedicava
aos autos apenas as horas que lhe sobravam da ocupação principal, que era a
poesia. Conta-se que quando serviu, em determinada comarca, com Octaviano Mello
– pai de Pedro e Anísio Mello –, um homem de letras aprisionado pela
magistratura, os dois mantinham o fórum fechado e se deixavam ficar, perdidos,
em longas conversas sobre literatura.
Dizia-se, também, com foros de verdade, que umas das muitas
mulheres com quem viveu, certo dia entrou na sala em que Américo escrevia um
poema e pediu-lhe dinheiro para o mercado. O poeta, indignado com a
interrupção, gritou: “Miserável! Espantaste-me as Musas!” Consta que a moça
deixou a casa no mesmo dia.
Eu próprio testemunhei uma dessas tiradas de Américo. Certa
manhã, quase meio-dia, de regresso das aulas, no colégio Dom Bosco, encontrei
Américo cercado de amigos, embaixo de um benjamim, na calçada do Leão de Ouro,
esquina de Eduardo Ribeiro, com Henrique Martins. No exato momento em que eu
cheguei, ele acabava de declamar um dos seus poemas.
A cerca de dois metros de roda, um jornaleiro, de apelido
Ferrugem, entusiasmado, bateu palmas. Ao invés de agradecer, Américo,
voltando-se para o rapazinho, perguntou: “Você entende de poesia?” Surpreso, o
interpelado meneou a cabeça negativamente, e Américo arrematou: “Pois então não
se meta, porque sapateiro não toca rabecão!”
Acho que até hoje, se vivo for, Ferrugem continua sem
entender de poesia, e muito menos, das razões do poeta. Mas apesar desse
comportamento nada convencional, reprovado pelos mais velhos, os moços
reconheciam em Américo um grande talento poético e lhe dedicavam o respeito
devido ao artista sério que ele sempre foi.
O último dos monstros sagrados a desaparecer foi Ramayana,
já nos anos 70, doente e auto-exilado no Rio de Janeiro. Muito antes havia
ocorrido o crepúsculo dos deuses com o fim de uma era em que a sociedade,
reverente, cultuava seus intelectuais como figuras do Olimpo.
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