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quinta-feira, dezembro 07, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (12)


Por Jefferson Peres

Outro acontecimento rumoroso foi a cisão do PTB e o rompimento da ala dissidente com o governo de Leopoldo Neves. O núcleo principal do PTB amazonense era constituído pela antiga Colméia, uma agremiação literária informal que se reunia frequentemente na casa do velho Vivaldo Lima, na Rua Rui Barbosa, ainda hoje de pé. Ali, Plínio, Áureo, Kideniro Teixeira e alguns outros se encontravam, a pretexto de debater literatura, mas na verdade para se deliciarem com a comida servida pelo anfitrião, que tinha uma das melhores cozinheiras da cidade. Vivaldo, que se dava o luxo de colecionar cinco diplomas de curso superior, tinha também veleidades literárias e gostava de se cercar de intelectuais. Daí para a política foi um passo.

Com a redemocratização, fundaram o Partido Trabalhista no Amazonas, sob a presidência de Vivaldo, e fizeram o governador, uma vez que Pudico era filiado ao partido, pelo qual se elegera deputado à Assembleia Nacional Constituinte, em 45. Ao tomar posse no governo, cedeu a vaga de deputado federal para Vivaldo Lima, que era seu suplente. Plínio e Áureo, deputados estaduais, em poucos meses se desentenderam com Pudico e passaram a criticá-lo da tribuna da Assembleia. Como Vivaldo permaneceu fiel ao governo, os dois junto com outros, criaram uma ala dissidente do PTB, extremamente aguerrida em seus ataques a governo e à direção do partido.

Áureo, então, fazia um sucesso enorme com sua oratória cascateante, em que as palavras saíam aos borbotões. As galerias ficavam cheias de espectadores curiosos por ouvi-lo. Era também excelente articulista – ainda está bem vivo, graças a Deus, mas não sei se conserva a antiga forma – e escrevia como falava, batendo seus artigos quase sem fazer pausa. Combativo, mas elegante, evitava os ataques pessoais, desde que não o provocassem. Então, virava fera e sabia ser ferino e desagradável. Foi o que aconteceu.

Um dia, Pereira da Silva declarou ter ouvido Vivaldo Lima chamar os dissidentes de patifes, que teriam cometido o pecado da ingratidão. Foi o bastante. Áureo respondeu através da imprensa com um artigo virulento desde o título: Patife és tu! Nesse mesmo dia, após a sessão da Assembleia, Plínio e Áureo entraram no bar Avenida para tomar um refrigerante, quando foram abordados por dois filhos de Vivaldo Lima em atitude hostil. Imediatamente, Áureo sacou o revólver, Plínio ameaçou fazer o mesmo, mas antes que o bang-bang começasse, houve a intervenção de terceiros, que afastaram os contendores, e o incidente morreu ali. Pouco depois, com a morte de Vivaldo Lima, a ala dissidente assumia a direção do partido, com Plínio na presidência.


Muitos encaravam a política como uma guerra, dura, mas leal, com seu próprio código de honra. Outros já iniciavam a vida pública com todos os vícios dos mais velhos, e alguns se desiludiam muito cedo. Foi o que ocorreu com o poeta Kideniro Teixeira, candidato do PTB, que ingenuamente confiou na lealdade de um amigo e concorrente, já falecido, mas cujo nome prefiro omitir.

Naquele tempo ainda não havia cédula oficial. As chapas, como eram chamadas, uma para cada cargo, eram impressas e distribuídas pelos próprios candidatos ou seus cabos eleitorais. Isto, como é evidente, favorecia em muito o voto de cabresto, porque o eleitor analfabeto, ou quase, recebia dos aliciadores um envelope com um conjunto de chapas que nem examinava. Na cabine indevassável, apenas transferia as chapas para o envelope rubricado pelos mesários, que a seguir depositava na urna, sem saber em quem estava votando. Além disso, o eleitorado era pequeno. Dependendo da legenda, era possível eleger-se deputado estadual com menos de mil votos.

Pois bem, o candidato de quem estou falando conseguiu, com a ajuda de amigos, arrebanhar cerca de duzentos eleitores da Terra Nova e do Careiro, que deveriam votar aqui. Mas tinha o problema do alojamento, já que os eleitores teriam de ser trazidos na véspera da eleição, pernoitando em Manaus, para serem levados no dia seguinte às seções eleitorais. Kideniro estava aflito porque esses votos, somados aos que contava como certos na capital, e mais alguns pingados no interior, seriam suficientes para elegê-lo. Ao narrar o seu problema para um dileto amigo, também candidato, mas pela legenda da UDN, ouviu do confidente palavras de solidariedade e uma oferta generosa.

Sem pedir nada em troca, comprometia-se a conseguir com a diretoria do Clube Amazonense de Regatas, da qual fazia parte, a cessão da sua garagem náutica, no começo da Avenida Joaquim Nabuco. E realmente, horas depois, informava que a autorização fora concedida. Escusado dizer que o nosso candidato ficou radiante e se desfez em agradecimentos.

Na véspera do pleito, pegou uma lancha e passou o dia recolhendo eleitores, que despejou à tardinha no local cedido e foi dormir, cansado mais feliz, sonhando com a deputação. Acordou bem cedo e dirigiu-se, cerca de 7 horas, à garagem para verificar, com surpresa e raiva que estava deserta. O seu generoso amigo passara mais cedo ainda e levara todos. Ao término da apuração, o nosso candidato estava derrotado por menos de cem votos. Desgostoso, renunciou à vida pública. Quanto ao espertalhão, elegeu-se e continuou deputado por várias legislaturas.


Com a redemocratização do país, em 1945, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) obteve sua legalização após um longo período de clandestinidade. E emergiu montado na crista de uma onda de popularidade sem precedentes. Dois motivos contribuíram para a elevação do prestígio do PCB. Primeiro, a vitória da União Soviética sobre a Alemanha Nazista na Segunda Guerra Mundial recém-terminada; segundo, a figura mítica de Luiz Carlos Prestes, ungida de heroísmo por sua participação na legendária Coluna que recebeu seu nome, e aureolada de martírio por sua longa permanência nos cárceres do Estado Novo.

Para a Constituinte de 46 o partido elegeu uma expressiva representação, Prestes à frente, como senador pelo Distrito Federal, e uma bancada de 17 deputados, entre os quais Jorge Amado, Pedro Pomar, João Amazonas, Carlos Marighella e Maurício Grabois, os dois últimos mortos pela repressão na década de 70. No Amazonas não conseguiu eleger um único representante, apesar da vibrante campanha liderada por Ivan Ribeiro, filho de Ribeiro Júnior, candidato à Câmara Federal.

Seu dirigente maior era o jornalista Aldo Moraes, também diretor do jornal oficioso do Partido, “A Luta”, na verdade um boletim semanário mimeografado. Eram filiadas, também, expressivas figuras da comunidade, tais como advogados, médicos, professores e intelectuais, tudo indicando que o Partido cresceria ainda mais, apesar do fracasso nas urnas. Mas logo sobreveio a decisão da Justiça Eleitoral que o jogou na ilegalidade, seguida da cassação dos mandatos dos seus parlamentares.

A partir daí o PCB continuou vivo como organização ilegal, mas seus quadros começaram a minguar. Aqui, sua direção ficou reduzida a uma dúzia de pessoas, entre as quais, Francisco Alves dos Santos, Letício de Campos Dantas, Gualter Aguiar, Belarmino Marreiro e meu tio Geraldo Campello. Além das reuniões sigilosas, realizadas em diferentes locais, costumavam encontrar-se na barbearia de Belarmino, na Rua Joaquim Sarmento, onde ficavam horas discutindo política e doutrinando fregueses.

Devido à minha participação na “Campanha do Petróleo é Nosso”, eu era tido como um “simpatizante”. Por isso um dia a direção do PCB enviou dois emissários à minha casa para me convidarem a disputar a vereança pelo Partido Social Progressista (PSP). Sem experiência, nem dinheiro, ainda assim anuí ao convite, esperançoso de que o apoio do partido fosse suficiente para me eleger. Ganhei apenas uma segunda suplência e a disposição de nunca mais me candidatar a coisa nenhuma.


Nos pleitos seguintes, o PCB continuou em suas tentativas de eleger representantes em pleitos locais, até que finalmente conseguiu colocar na Câmara Municipal o vereador Manoel Rodrigues, cassado e preso em 64. Seus dirigentes mais conhecidos, porém, jamais se candidatavam, apenas trabalhavam, com a mais completa desambição, em favor do partido.

Neste particular, creio que Geraldo Campello é uma figura exemplar de idealista inteiramente devotado à sua causa. Demitido injustamente do Banco da Borracha (hoje, Banco da Amazônia) após um movimento grevista, ficou marcado e não mais conseguiu emprego em parte alguma. Passou, então, a trabalhar para o partido em tempo integral e dedicação exclusiva, sobrevivendo franciscanamente graças a pequenas comissões recebidas pela venda de jornais como Imprensa Popular e Voz Operária, revistas como Problemas da Paz e do Socialismo e livros como a História do Partido Comunista (bolchevique) da URSS.

Suas únicas atividades de lazer consistiam em assistir, esporadicamente, a brigas de galos e partidas de futebol, aos domingos. Os outros dias da semana eram dedicados ao PCB, de manhã, de tarde e de noite. Sempre em companhia de Maria Pucu, primeiro como namorada, depois como esposa. Jamais os vi em colóquio amoroso ou em discussão sobre assuntos domésticos. Os problemas ideológicos e partidários monopolizavam suas conversas. O partido parecia ocupar todos os seus espaços mentais e temporais.

Por mais de uma vez teve sua casa vasculhada por forças policiais e militares, com apreensões de seus livros jamais devolvidos. Durante o governo Dutra, quando o PCB sofreu dura perseguição, esteve foragido por várias semanas, até ser descoberto escondido num cômodo da Pensão Maranhense, pertencente a D. Verônica, sua amiga de longos anos. Preso, foi recolhido à Penitenciária, onde ficou mais de um mês.

Ao eclodir o movimento de 64, novamente se evadiu, reaparecendo um ano depois para responder a um IPM, junto com a mulher, em liberdade, mas em permanente sobressalto. Não obstante essas provações, nunca vislumbrei, em qualquer dos dois, sinais de fraqueza ou de arrependimento. Mesmo na velhice, afastados da militância pela idade, e já sem o entusiasmo de antes, continuaram sonhando com um mundo comunista.

No Amazonas, somente Thomás Antônio Meirelles Neto, por sinal primo de Maria, deu mais à causa do que eles, já que sacrificou a própria vida. Thomasinho, como lhe chamávamos, era nosso companheiro da República do Pina e ativista desde os bancos escolares.

Anos mais tarde, no Rio de Janeiro, após a edição do AI-5, mergulhou na luta clandestina e nunca mais foi visto, morto em circunstâncias ignoradas, pelas forças da repressão. Hoje é o nome de uma rua no subúrbio de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.

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