Por Jefferson Peres
Grande parte da minha infância foi marcada pela Segunda
Guerra Mundial. Embora muito criança, fui contagiado pelo entusiasmo do meu
pai, ardoroso partidário da causa aliada, que se mantinha informadíssimo
através da leitura de revistas e jornais, e da escuta diária da BBC.
Ainda me lembro de sua expressão fúnebre quando a França se
rendeu e as tropas alemãs ocuparam Paris. Como não esqueço a sua vibração,
certo dia, quando entrou em casa com o jornal em umas das mãos, gritando a
manchete: A queda de Bardia foi sensacional! Tratava-se de uma pequena cidade
da Líbia, tomada pelas tropas de Montgomery em perseguição ao Afrika Korps de
Rommel.
Fiquei deliciado quando o velho me presenteou um grande mapa
colorido da Europa, que preguei com tachas na parede da sala de visitas,
através do qual acompanhava atentamente a marcha das operações. A menção a uma
cidade ou a um acidente geográfico me levava imediatamente ao mapa, para
conferir, e ficava muito desapontado quando não fazia a localização.
Criança ainda, eu acompanhava cuidadosamente as operações de
guerra em todas as frentes: no Pacífico, no norte da África, na Itália, na
França e na Rússia. Sofri com a derrota dos Aliados, na fase inicial, e vibrei
com seus grandes triunfos a partir de 1943. De manhã cedo eu ficava ansioso à
espera do jornaleiro com um matutino, e à tarde aguardava a chegada de meu pai
com um vespertino. E então me lançava, sôfrego, à leitura do noticiário
telegráfico da Reuters, da Associated Press e do International News Service.
Como disse, qualquer referência à ocupação de uma cidade, à
travessia de um rio ou ao desembarque numa ilha, me fazia correr ao mapa para
conferir. Frequentemente os jornais publicavam esboços das frentes de batalha,
nos quais eram assinalados os avanços das tropas aliadas, e que eu recortava
cuidadosamente.
Às seis horas da tarde, junto com meu pai, sintonizava a
BBC, em transmissões cheias de interferências, que, para minha irritação, às
vezes se tornavam quase inaudíveis. Mas, no outro dia, lá estava eu a postos,
para ouvir, emocionado, o locutor anunciar com sua voz bem impostada: “Estação
de Londres da BBC”.
Leitura obrigatória era a de Seleções de Reader’s Digest que
meu pai comprava religiosamente, todos os meses, mesmo com grande atraso. Eu me
deliciava com as suas descrições de batalhas, suas histórias de espionagem e
seus relatos de operações de guerrilhas e de comandos nas zonas ocupadas pelos
alemães. Creio que todo esse meu interesse pelo assunto – inusitado num garoto
ainda impúbere – se devia em grande parte à minha paixão pela geografia.
Era com enorme prazer, também, que recebia a revista “Em
Guarda”, distribuída pelo consulado americano, fartamente ilustrada e com
noticiário variado sobre a guerra. Assim como lia com avidez as revistas em
quadrinhos, com histórias em que os heróis enfrentavam os sinistros espiões
nazistas e japoneses.
Mas, emocionante mesmo era ouvir a sirene de O Jornal
anunciando alguma notícia importante de última hora. Era o nosso Repórter Esso.
Tão logo soava, uma pequena multidão se aglomerava para ler a notícia afixada a
giz num quadro negro em frente à redação. Foi assim que tomamos conhecimento de
todos os grandes lances. Pearl Harbour, El-Alamein, Stalingrado, o Desembarque
Americano no Norte da África, o Dia D, o Fuzilamento de Mussolini, o Suicídio
de Hitler, a Rendição da Alemanha, Hiroshima e, finalmente, a Capitulação
Japonesa.
Foram dias de expectativa dramática e, sem nenhuma retórica,
podemos dizer que tínhamos consciência – no meu caso, intuitivamente – de que eram
momentos decisivos para os destinos da humanidade. Por isso, até hoje sou
fascinado por tudo que se relaciona com a Segunda Guerra.
Em 1942, o conflito, que até então parecera tão distante,
finalmente chegou até nós. O alargamento da guerra submarina alemã no Atlântico
e a fulminante ofensiva japonesa no Sudeste Asiático provocaram ondas de choque
que vieram agitar as águas remansosas em que nos embalávamos.
Um dia fomos abalados pela notícia do afundamento do
Baependi, um navio que há muitos anos fazia a cabotagem Rio-Manaus. Entre os
mortos, um punhado de amazonenses bastante conhecidos na comunidade. Divulgada
a lista, logo surgiram ajuntamentos espontâneos que rapidamente se
transformaram em comícios.
Oradores exaltados verberavam não apenas a ação dos
submarinos nazistas, mas também os próprios alemães e, por extensão, os
italianos e japoneses. Daí para os atos de violência foi um passo. Em poucas
horas a cidade foi tomada por um bando de desordeiros que se entregou
livremente à depredação a ao saque, como há muitos anos não se via.
Como ainda não havia japoneses, concentrados que estavam no
baixo Amazonas, a fúria popular se abateu sobre os bens de italianos, alemães e
pessoas de qualquer nacionalidade conhecidas como germanófilas. O primeiro alvo foi o consulado da Alemanha situado
na Joaquim Nabuco, nos altos do prédio de dois pavimentos, que ainda hoje
existe, próximo à Avenida 7 de Setembro, onde vi muitas vezes desfraldada a
bandeira alemã com a suástica.
Fui testemunha ocular do saque ao consulado, que é das mais
remotas lembranças da minha infância. Morava bem perto, em casa dos meus avós
maternos, a três quarteirões de distância, na atual Rua Huascar de Figueiredo.
Ao tomar conhecimento do que acontecia, corri para o local, em companhia de
outros garotos, a tempo de ver homens e mulheres apressados conduzindo baixelas
de prata, bacias, panelas, cadeiras e outros objetos, enquanto os móveis pesados,
como cristaleiras e guarda-roupas, atirados pelas janelas, vinham estatelar-se
na calçada. Quando finalmente chegou uma patrulha do exército, quase nada
restava para ser salvo.
Na mesma hora, outro bando saqueava o escritório de
representação da Bayer, na Quintino Bocaiúva, entre as ruas Marechal Deodoro e
Guilherme Moreira. O depósito foi inteiramente pilhado, com os saqueadores
levando medicamentos em tal quantidade que supriram farmácias domésticas por
meses ou anos. Afinal, o que era Bayer era bom, como dizia o comercial. Quanto
ao representante, que era o próprio cônsul alemão, chamado Fluger, refugiou-se
no porão, sendo removido mais tarde para a Penitenciária, à guisa de proteção.
Um outro grupo tentou invadir a Semper, Fáber, uma firma de
aviamento situada na Marechal Deodoro,
ao lado da J.G. Araújo. Foram enfrentados por dois alemães, Fáber e Kremer, que
saíram levemente feridos do entrevero, mas conseguiram contê-los até a chegada
dos soldados do exército.
Frustrados nessa tentativa, dirigiram-se para a firma
Bhering, de exportação, instalada um pouco adiante, num edifício de três
pavimentos, com frentes para a Marechal Deodoro e a Eduardo Ribeiro, ao lado do
antigo telégrafo. Depois de arrasar os escritórios, subiram para o último
pavimento, onde residia o gerente, o alemão Lindenberg, destruindo tudo que
puderam. Praticamente nada sobrou. Os donos da casa, refugiados no quarto do
casal, foram salvos pelo exército no último minuto, quando a porta do cômodo já
tinha sido arrombada.
Ao mesmo tempo, ocorria a tentativa de invasão da Joalheria
Pelosi, a maior da cidade, localizada na 7 de Setembro, ao lado da loja 4.400,
atual Marisa. Foi repelida por uma tropa do exército, que feriu alguns
manifestantes a coronhadas. Mas a residência do proprietário, Giulio Roberti,
não escapou. Foi literalmente pilhada e os móveis incendiados no meio da rua.
Roberti, em companhia do seu irmão Giusepe Vulcani, vice
cônsul da Itália, buscou refúgio no convento dos frades capuchinhos, na Praça
de S. Sebastião, de onde saíram para a casa do professor Agnello Bittencourt,
na qual ficaram homiziados por três dias. Ironicamente –segundo nos conta o
professor Agnello –, Giulio Roberti fora vice-cônsul do seu país, posto ao qual
resignara por discordar do regime fascista.
Um pouco adiante a turba conseguiu invadir a casa do alemão
Schultz, genro do cônsul, situada na Praça da Saudade, onde ainda se encontra,
quase na esquina da Avenida Epaminondas. A poucos passos do quartel do 27º. BC,
os soldados ainda conseguiram salvar alguma coisa, mas não um belo piano de
meia cauda, completamente destruído.
Também não foram poupados, como já disse, os simpatizantes
do Eixo, independentemente da nacionalidade. Eram chamados, com muita
propriedade, de germanófilos, porque sua posição decorria menos de uma adesão
ideológica ao nazismo do que uma exaltada admiração pela Alemanha. Uma atitude
emocional, como a de um torcedor de clube. Pelo menos, foi a impressão que me
ficou de tantas discussões que presenciei. Inclusive em família, entre meu pai,
intransigente anglófilo, e um de meus tios, seu concunhado, germanófilo doente,
o primeiro exaltando as qualidades britânicas e o segundo louvando as virtudes
do povo alemão. Antes destes acontecimentos, ninguém fazia segredo de suas
convicções, de sorte que os partidários de um e de outro lado eram notórios, o
que facilitou a caça às bruxas.
Uma das primeiras vítimas foi o advogado Levon Rumian, de
origem armênia e perfeitamente integrado à sociedade local, que teve
inteiramente saqueada a sua residência, nos altos de um prédio de dois
pavimentos, na Praça Heliodoro Balbi, quase esquina da Rua Dr. Moreira.
Nesta mesma rua, no ferro de engomar que a separa da
Floriano Peixoto, quebraram o botequim de um espanhol, que escapou do
linchamento refugiando-se no telhado, de onde atirava pedaços de telhas sobre
os seus perseguidores.
Outro espanhol, o velho Gil, já falecido, foi salvo pela intervenção providencial de uma patrulha militar. Já o português Alhadas, que tinha uma loja de redes, perto do Mercado Central, teve seu estabelecimento totalmente arrasado.
Outro espanhol, o velho Gil, já falecido, foi salvo pela intervenção providencial de uma patrulha militar. Já o português Alhadas, que tinha uma loja de redes, perto do Mercado Central, teve seu estabelecimento totalmente arrasado.
Dentre os brasileiros, a maior vítima foi o jornalista
Aristóphano Antony, diretor e proprietário do jornal A Tarde, que por pouco não
teve sua redação invadida e empastelada. Em compensação, foi ele mesmo preso e
recolhido ao quartel da polícia militar, de onde foi solto seis meses depois,
sem julgamento, após um inquérito que apurou a improcedência da denúncia que o
levara à prisão. Afinal, estávamos em pleno Estado Novo.
Vale registrar um fato, pouco conhecido, mas importante,
porque bastante esclarecedor. Na véspera do quebra-quebra, D. Márcia Coelho,
proprietária da Foto Alemã, um dos principais estúdios da cidade, foi procurada
por um professor do Ginásio, seu amigo, que a alertou para o que iria
acontecer. Imediatamente, antes mesmo de proceder legalmente à mudança da razão
comercial, mandou trocar o nome, pintado na placa da fachada, para Foto
Artístico. Graças a essa providência, não foi molestada no dia seguinte.
Esse furacão durou apenas algumas horas. Antes de findar o
dia a ordem fora restabelecida e nunca mais as violências se repetiram. Mas
italianos, alemães e germanófilos continuaram a sofrer por algum tempo a
hostilidade de uma parte da população. Manifestava-se na forma do insulto
aberto, da negativa de cumprimento, ou de denúncias anônimas e nunca provadas,
sobre atividades de quinta-colunismo com mensagens enviadas através de
transmissores clandestinos.
Contou-me o meu amigo Stefano Gennaro Novellino que seu pai,
italiano imigrado há alguns anos, com excelente relacionamento com brasileiros,
foi procurado por um respeitável cidadão que, algo envergonhado, comunicou-lhe
sua decisão de fingir não conhecê-lo até o fim da guerra. Ao que o bom italiano
replicou, tranquilamente, que lhe agradeceria se assim o fizesse pelo resto da
vida.
Outros trataram de se defender do jeito que fosse possível,
como o proprietário da Vila Itália, conjunto de casas situado na rua 24 de
Maio, quase esquina com a Costa Azevedo, que logo mudou o nome para Vila
Baependi, afixado na forma de um letreiro de ferro ainda existente.
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