Por Jefferson Peres
O cinema era tema de diálogo e discussão, muito mais que a
literatura. Dizer que nenhuma diversão ultrapassava o cinema, naquele tempo,
não era um simples slogan de propaganda, mas uma verdade incontestável. Não
tínhamos televisão que nos distraísse com sua variedade de programas e ainda
nos desse a oportunidade de assistir a qualquer filme em nossa própria casa. Ou
íamos aos cinemas, ou não os veríamos jamais. Uma superprodução, precedida de
ampla publicidade, gerava uma expectativa que se prolongava por vários meses,
tempo que mediava entre o lançamento no sul do país e a estréia em Manaus.
Ficávamos contando os dias que faltavam para a data
ansiosamente aguardada, com a emoção das crianças à espera do Natal. Mas não
eram só os filmes que nos atraíam. Os cinemas não eram apenas casas de
espetáculos, mas também locais de encontro e de convício social. Às vezes, eram
os únicos lugares onde se podia ter momentos de maior intimidade com a
namorada, em razão do severo controle que os pais exerciam.
Apesar da presença do inevitável acompanhante, sempre havia
chances de trocas de carinhos difíceis ou impossíveis fora dali. Mais tão
importante quanto a sala de projeção podia ser o salão de espera, onde os
espectadores, languidamente refestelados em poltronas, fumavam e conversavam,
enquanto assistiam à exibição de beleza e elegância das moças que desfilavam. E
ainda havia aqueles que, já tendo visto o filme, ou sem dinheiro para o
ingresso, se plantavam na calçada em frente, a olhar a entrada e a ouvir
música, como num sereno de festa.
Nós nos familiarizávamos com o mundo do cinema, antes mesmo
de assistir o primeiro filme, através de uma revista especializada, A Cena
Muda, que publicava um variado noticiário sobre o assunto. Fartamente
ilustrada, constituía a grande fonte de onde nossas tias, irmãs e primas
tiravam fotos dos astros e estrelas em voga, as quais, cuidadosamente
recortadas, iam enriquecer seus álbuns.
Vivíamos a era do star
system, com a eficiente máquina publicitária de Hollywood mobilizada para a
fabricação dos ídolos da tela, em torno dos quais se criava toda uma legião de
fãs femininas de Tyrone Power, Robert Taylor, Errol Flynn, Carry Grant e
Charles Bayer, enquanto os homens se rendiam ao charme de Hedy Lamarr, Vivien
Leigh, Lana Turner, Rita Hayworth e, um pouco mais tarde, Ava Gardner, Grace
Kelly e Kim Novak.
E havia outros que pelo talento ou simpatia atraíam ambos os
sexos, tais como Bette Davis, Spencer Tracy e Olivia de Havilland. Ia-se ver um
filme principalmente pelo elenco e menos pela qualidade ou pela assinatura do
diretor.
Como todo menino do meu tempo, eu me iniciei com as comédias
de Carlitos, do Gordo e o Magro e de Harold Lloyd, e creio que nunca mais na
vida vou dar, outra vez, as espontâneas gargalhadas que eles arrancavam de mim.
Adorava também, obviamente, os desenhos animados, especialmente os de Popeye,
então, como sempre, enfrentando o eterno rival Brutus, na disputa por Olívia
Palito.
Depois, vieram os filmes de western classe B, primários no
enredo e na realização, que se limitavam a uma sequência confusa de socos,
tiroteios e correrias, com o happy end
tradicional. Eu não os perdia, principalmente se estrelados pelos meus mocinhos
preferidos, como Tim McCoy, Ken Maynard e Charles Starret.
Como não perdia igualmente os seriados. Nada mais
emocionante do que acompanhar aqueles dez ou doze episódios, exibidos
semanalmente, com o final sempre apresentando o herói ou a sua garota em
situação de perigo mortal. No episódio seguinte, após escapar milagrosamente,
reiniciava a luta implacável contra o monstruoso vilão. Entre um episódio e
outro ficávamos a semana inteira especulando sobre o que aconteceria.
Outro gancho que nos mantinha presos à história era a
identidade do vilão, misterioso personagem que só era desmascarado ao final,
numa atmosfera de clímax. Até hoje guardo a imagem do sinistro chefe dos
bandidos no Aranha Negra, do qual só víamos
a mão afagando um gato preto sobre a escrivaninha, enquanto instruía seus
asseclas com uma voz cavernosa que me dava arrepios. Além desse, creio que
assisti a quase todos, como A Deusa de Jeba, O Império Submarino, Novas
Aventuras de Tarzan, A Adaga de Salomão e muitos outros.
Com o tempo, meu gosto foi ficando mais eclético e também um
pouco mais apurado. Não me tornei um cinemaníaco, mas passei a gostar de todos
os gêneros e a assistir, em média, de três a quatro filmes por semana. Em meio
a tantos de segunda categoria, pude assistir a alguns que se tornaram clássicos
e a outros que, embora não fossem obras-primas, me marcaram, com passagens e
cenas que ficaram em mim, inesquecíveis.
De muitos, pude matar a saudade ao revê-los periodicamente,
em reprises nos cinemas e na televisão, e alguns até gravei, para minha
filmoteca, como os eternos E o Vento Levou…, Casablanca, Gilda e Rebeca, a
mulher inesquecível. De vez em quando faço o projeto para me reencontrar com
Scarlett em Tara, ou com Rick a ouvir Sam no bar tocando As Time Goes By.
Outros, para minha tristeza, nunca mais consegui rever, por não terem sido reprisados
ou por falta de oportunidade.
Dos westerns, que continuaram a gozar da minha preferência,
como esquecer Os Brutos Também Amam, como o mocinho Shane, tendo Alan Ladd no
papel-título, a manejar o revólver como um mágico, ante os olhos do menino fascinado
com a proeza, ou o xerife encarnado por Gary Cooper em Matar ou Morrer,
atirando ao chão a estrela, num gesto de supremo desprezo pela cidade que ele
salvara sozinho, ou, ainda, Jesse James, com Tyrone Power no papel-título,
assassinado pelas costas e vingado pelo irmão, numa perseguição emocionante ao
assassino, em A volta de Frank James, vivido pelo Henry Fonda.
A Segunda Guerra Mundial foi e continua a ser um riquíssimo
filão para os estúdios cinematográficos. Outro gênero que sempre exerceu uma grande
atração sobre mim, porque funde uma dupla paixão, pelo cinema e por aquele
conflito. Acho que poucos me escaparam. Procurava ver todos, qualquer que fosse
o tema: operações bélicas, ações de espionagem ou dramas vividos em campos de
concentração. Pouco importava também o teatro de guerra. Podia ser no Pacífico,
no norte da África ou na Europa, o interesse era o mesmo. Pude ver Humphrey
Bogart vivendo alguns de seus bons momentos em Passagem para Marselha e Uma
Aventura na Martinica. E Errol Flynn, como o braço oficial americano a resistir
até o fim ao avanço japonês em Bataan. E outros, menos famosos, sendo
aniquilados na ilha de Wake, em Nossos Mortos Serão Vingados. Como realmente
foram, mais tarde, em Guadalcanal.
Isto não quer dizer, claro, que filmes referentes a outras
guerras não me interessassem. A Primeira Guerra Mundial nos proporcionou, por
exemplo, Patrulha da Madrugada, com Errol Flynn, e Nada de Novo na Frente
Ocidental, inspirado no livro de Erich Maria Remarque; a Guerra da Criméia nos deu,
também com Errol Flyn, Carga da Brigada Ligeira; e a Guerra Civil Espanhola foi
cenário do imortal Por Quem os Sinos Dobram?, da obra de Hemingway, com Gary
Cooper tendo seu desempenho empanado por uma Ingrid Bergman belíssima como a
terna Maria dos cabelos cacheados.
E até as guerras coloniais inspiraram bons filmes, à parte
suas conotações políticas e distorções históricas. Por isso não podemos
esquecer Beau Geste, romantizando as lutas da Legião Estrangeira na África do
Norte ou Gunga Din, apresentando os nacionalistas hindus como fanáticos
sanguinários. De qualquer forma, fiquei comovido com o sacrifício do pária
indiano – que não me saiu da memória – a galgar a cúpula do templo dourado
para, com suas clarinadas, salvar seus amigos ingleses de uma cilada mortal.
Não faltava, também, aos filmes de aventuras, fossem de
piratas, como Capitão Blood, ou de capa e espada, como As Aventuras de Robin
Hood, do qual me ficou o memorável duelo travado entre Errol Flynn (tinha que
ser) e Basil Rathbone. Igual, só veria muito mais tarde, em Scaramoche, em que
os espadachins eram Stewart Granger e Mel Ferrer. Os policiais era outros que
me tinham como espectador certo, especialmente os que traziam os nomes de James
Cagney, Humphrey Bogart e George Raft.
De alguns esqueci até os títulos, mas não as cenas de
violência, como aquela em que Richard Widmark, num requinte de sadismo, lançava
escada abaixo, com cadeira e tudo, uma velhinha paralítica. Igualmente
imperdíveis os que tinham como vilões Sidney Greenstreet e Peter Lorre; ou
musicais com Fred Astaire e Gene Kelly; ou ainda, as comédias com Bob Hope, Red
Skelton e Danny Kaye.
Mencionei apenas filmes americanos porque Hollywood dominava
amplamente o mercado, na proporção, talvez, de nove a um, em dez exibidos. Os
nacionais só começaram a ter popularidade, a partir das chanchadas da
Atlântida. Quanto aos europeus, embora quantitativamente menos expressivos,
foram responsáveis por algumas obras-primas que nos marcaram, como Ladrões de
Bicicletas, Roma, Cidade Aberta, Milagre em Milão e outros do neo-realismo
italiano, sem esquecer os franceses de diretores como Jean Cocteau, Jean Renoir
e René Clement. Que delícias de filmes, A Bela e a Fera e Brinquedos Proibidos.
Finalmente, não posso deixar de mencionar os mexicanos, com
os horríveis dramalhões da Pelmex, a que assistia para ouvir as canções de
Pedro Vargas e do Trio Los Panchos, mas, principalmente, para admirar Maria
Antonieta Pons, talvez o mais bonito par de coxas do cinema. Ou, então, quando
as produções traziam as assinaturas de Emílio Fernandez e Gabriel Figueroa, que
nos deram obras antológicas, como a Pérola.
Creio que algumas das mais intensas emoções que senti
ocorreram no interior dos cinemas, nos arroubos do namoro ou nas fugas que
empreendia quando, ao mergulhar na penumbra, emergia no retângulo mágico da
tela para viver em comunhão com os deuses e as divas de um mundo mitológico.
No centro de Manaus existiam apenas quatro cinemas, o
Avenida, o Odeon, o Polytheama e o Guarany, pertencentes a suas empresas, a J.
Fontenele e a A. Bernardino. Na segunda metade dos anos quarenta surgiria o
Éden. Não incluo o Popular porque, de tão precário, só era frequentado,
praticamente, por pessoas residentes no Alto de Nazaré e imediações. Basta
dizer que um habitué de cinema como eu, nunca lá pus os pés.
Mesmo os quatro melhores, porém, deixavam muito a desejar em
matéria de conforto. As poltronas tinham assentos de madeira e não havia
refrigeração. O calor era amenizado por ventiladores de teto e de parede, os quais,
dependendo da hora e da quantidade de gente, podiam ser praticamente inúteis.
Lembro-me perfeitamente das sessões das bilheterias, que abriam ao meio-dia. À
hora marcada, com a sala superlotada, inclusive com espectadores sentados no
chão, as cortinas eram cerradas e o prefixo musical anunciava o início da
sessão. Aí se desencadeava uma zoadeira infernal de gritos, assovios e
sapateados, que logo se interrompiam, para se repetir, com intermitência,
durante toda a sessão, a pretexto de qualquer coisa.
Nas cenas românticas, quando o galã beijava a moça, nas de
briga e nas de perseguição, a cavalo ou automóvel, a zoada era a mesma, por
pura molecagem. Quando o filme queimava e as luzes se acendiam, então era um
pandemônio, com gritos de ladrão, em protesto contra possíveis mutilações da
película. A sala era uma estufa, e após três horas de calor e barulheira, a
camisa encharcada de suor, os olhos habituados à semi-escuridão, tomávamos um
choque quando as portas se abriam e recebíamos, em pleno rosto, a claridade da
luz solar. Frequentemente, essas sessões me custavam uma forte dor de cabeça
que me estragava o resto do dia. Mas, no domingo seguinte, lá estava eu, firme,
na fila de ingressos.
Havia duas sessões, de segunda a sábado, às dezesseis e às
vinte horas. Aos domingos realizavam-se, ainda, a matinal, às nove, e a matinée
de treze horas. As sessões noturnas eram duplas, com a exibição de dois filmes,
sem intervalos. Uma parte do público se retirava ao término do primeiro filme,
mas a grande maioria ficava para assistir ao segundo. A plateia das sessões de
adultos era geralmente bem-comportada, especialmente a das soirées – era assim
mesmo que chamavam – frequentadas por casais da classe média alta, que falavam
aos cochichos, como nos teatros. Os homens compareciam de paletó e gravata,
acompanhados de esposas e filhos em trajes de festa.
A única perturbação, às vezes, corria por conta de um tipo
de chato, muitos com seus acompanhantes, inclusive antecipando sequências da
história. Quase sempre os circunstantes engoliam a raiva em silêncio ou, quando
muito, trocavam de lugar. Raramente acontecia de alguns, menos educados,
protestarem em voz alta ou se queixarem à gerência, criando tumulto. Excetuados
esses incidentes, raríssimos, as sessões eram silenciosas e tranquilas. Algo
semelhante ocorria com as domingueiras das dezesseis horas, com a diferença de
que os frequentadores eram, predominantemente, jovens casais de namorados.
As bilheterias abriam quarenta e cinco minutos antes, quando
começava a tocar a música, não para dentro, mas para fora, através dos
alto-falantes voltados para a rua. À hora marcada para o início da sessão,
tocava o prefixo musical, que era uma música popular. No caso do Polytheama,
durante muitos anos foi o Tico-Tico no Fubá. Nunca entendi bem o porquê dessa
prática, a não ser pela possibilidade, improvável, de atrair frequentadores. O
certo é que perdurou por muitos anos, sendo abandonada aos poucos. O mais
renitente foi o Guarany, que só aboliu a música externa no início da década de
60, quando um grupo de habitués da República Livre do Pina, eu no meio, não
suportando mais o volume do alto-falante e o baixo nível das músicas, fizemos
um apelo ao velho Vasco, que finalmente nos atendeu.
A programação diária era afixada em grandes tabuletas,
amarradas aos postes ou aos fícus benjamins fronteiros aos cinemas, com grandes
letras azuis e vermelhas. As superproduções, ansiosamente aguardadas, eram
anunciadas dias antes, através de carros com alto-falantes que percorriam a
cidade inteira, trombeteando com estardalhaço as qualidades da película.
Nos dias festivos, como grandes feriados e datas de
aniversário dos cinemas, havia sessões ao ar livre. Nos canteiros em frente ao
Polytheama e ao Guarany erguiam-se postes de ferro, aos quais se prendiam as
telas em que projetavam os filmes, geralmente documentários e desenhos
animados.
Eram realizadas entre as dezoito e as dezenove horas,
gratuitamente, com grande afluência de espectadores, que se espalhavam, no
Guarany, até à calçada da Praça da Polícia, e no Polytheama ocupavam toda a
pista da Getúlio Vargas, até a calçada do Ginásio. A área em frente aos cinemas
ficava embandeirada com papéis coloridos, como um arraial, a cidade era
despertada com salvas de rojões e a matinal regurgitava de crianças que
acorriam para ver o filme e receber balas e bombons. Tudo grátis. Era realmente
uma festa.
Os donos e gerentes eram conhecidos dos frequentadores, com
os quais se relacionavam. E alguns, de tão assíduos, se tornavam íntimos e não
pagavam ingresso. Eram os beiradistas, assim chamados porque ficavam rondando a
plateia pelas margens, em busca de garotas para possíveis abordagens.
Habilíssimos, adotavam várias técnicas de aproximação.
Algumas vezes, faziam comentários a respeito do filme. Se o
contato era repelido, desistiam; se não, iam em frente, porque o peixe estava
fisgado. Outras vezes, faziam comentários a respeito do filme. Se a vizinha
respondia, mesmo com um simples sorriso, logo entabulavam conversa. Finalmente,
havia a abordagem indireta, que consistia em obsequiar o acompanhante da jovem
com chocolates ou balas, se criança, para numa segunda etapa, atingir o
verdadeiro alvo.
Esses beiradistas eram encontrados em todos os cinemas, mas
o preferido era o Guarany, talvez pela proximidade do Pina. O grupo se
constituía de advogados, médicos, dentistas e promotores, que assinavam ponto
todos os dias, independentemente do filme em exibição, já que o seu interesse
estava na plateia. Mas havia também os neófitos, que podiam agir desastradamente.
Foi o que aconteceu uma noite com Fernando Gonçalves, o
Fernandão, mais tarde Promotor de Justiça. Sem muito jeito para a coisa e
dotado de uma tonitruante voz de barítono, no meio da sessão resolveu abordar
uma garota, com sutileza de mamute, cochichando-lhe ao ouvido, num ribombo que
ressoou em toda a plateia: “Maria, deixa eu pegar no teu peito?” A gargalhada
foi geral e Fernandão logo deixou a sala, ralado de vergonha. Um vexame
completo.
Em meados dos anos 50 surgiram, como novidade, “as sessões só
para homens” no Guarany e no Polytheama. Aconteciam às sextas-feiras, às 11 da
noite, com enorme afluência de um público rigorosamente masculino. Nem as
meninas da zona do meretrício se atreviam a comparecer. Não me lembro de ter
visto, alguma vez, nenhuma mulher numa dessas sessões. Eram apenas homens e
maiores de 18 anos.
Alguns poucos velhos que enfrentavam a zombaria dos outros,
que os hostilizavam aos gritos de “velho broxa” e “mineteiro”. Alguns não se
davam por achados e todas as semanas lá estavam, firmes, indiferentes aos
gracejos da turba. Havia homens de todas as classes sócias, mas aqueles de
maior projeção, ciosos de sua reputação, entravam sorrateiramente, depois de
começada a sessão, e saíam antes do seu final, temerosos de serem reconhecidos.
Não preciso dizer que os filmes eram todos pornográficos,
feitos por amadores em 16 mm, mudos, de péssima qualidade, com estórias curtas
que eram simples pretexto para a apresentação de cenas de “sexo explícito”,
como se diz hoje. Tudo de muito mau gosto, mas o sabor do proibido fazia a
plateia vibrar, excitadíssima, não sendo raro os que se entregavam à
masturbação em pleno cinema.
Certa noite, no Guarany, vi um espectador reclamando, muito
irritado, porque um jato de esperma lhe caíra na cabeça, ejaculado do alto da
galeria. Diziam os empregados que, após as sessões, tinham um grande trabalho
para remover a sujeira deixada pelos onanistas. É claro que a grande maioria
não chegava a esses extremos, mas, em compensação, saía do cinema direto para os
lupanares, que nesses dias ficavam lotados.
O Guarany era domínio do velho Vasco Farias, o vovô Vasco,
que ainda em vida foi homenageado por Farias de Carvalho com um belo e
comovente soneto. Alto, cabelos de algodão, ventre avantajado, sua figura
paternal despertava simpatia em adultos e crianças. Devia gostar muito do ramo,
porque trabalhou alguns anos no Polytheama e depois se transferiu para o
Guarany, onde ficou até se aposentar, e com o qual se identificou a tal ponto
que era a própria personificação do velho cinema.
Aliás, teatro também, eventualmente utilizado para shows e
programas de auditório, como o popular Tem Gato na Tuba, da Rádio Difusora, que
contava com enorme audiência. Era o único cinema com o privilégio de manter
abertas as portas laterais, nas sessões noturnas, permitindo aos espectadores
deixar por instantes a sala de projeções, para fumar e bater papo nos bancos do
jardim. Cinema de classe média, era frequentado também pelo povão, que a preços
módicos tinha acesso à galeria ou poleiro, um mezanino situado no fundo do
salão. Por tudo isso, e pelo velho Vasco, era o cinema mais simpático da
cidade.
No Polytheama o próprio dono, Alberto Carreira, comparecia
diariamente à porta. Sempre vestido de um branco imaculado, inclusive os sapatos,
ficava próximo às borboletas, em conversa com amigos, até o início da sessão.
Era filho do renomado poeta Jonas da Silva, sócio da empresa, que eu costumava
ver todas as tardes, já muito velho, sentado num banco do canteiro central, em
frente ao cinema.
Mais do que o Guarany, o Polytheama era também teatro. A
começar pela disposição interior, com uma plateia em forma de ferradura,
circundada por duas fileiras de camarotes. Não sei se chegou a ser encenada
alguma peça teatral em seu palco, mas eram frequentes os espetáculos com
ilusionistas, cômicos e cantores nacionais e estrangeiros. Foi lá que tive a
oportunidade de ver, pela última vez, Gregório Barrios soluçando boleros com
sua voz de timbre inconfundível.
No Avenida, além do dono, tínhamos também a presença diária,
obrigatória, inarredável, de sua esposa, D. Yayá. Sempre com o rosto pintado de
batom e ruge de tom arroxeado, lá estava ela, infalivelmente, em todas as
sessões, sentada numa poltrona de palhinha, no hall de entrada, ou debruçada no
gradil, ao lado da borboleta.
Às vezes ficava à porta, procurando aliciar espectadores com
a recomendação: “Entre, o filme é ótimo!” E, ante a incredulidade do
interlocutor, acrescentava: “É colorido!” Para ela, uma prova irrecusável de
boa qualidade. Mas o Avenida era também o cinema das elites, preferido pelo
escol da cidade. Inesquecíveis as Sessões Chiques das Moças, às sextas-feiras,
quando o filme era o que menos interessava, porque o melhor espetáculo se
desenrolava na plateia.
Já se foram todos os nossos antigos cinemas: o Odeon, o
Avenida, o Polytheana e o Guarany. Este foi o último a tombar, sob protestos
tão incisivos quando inúteis. Para a maioria, não passava de um prédio feio,
velho e sujo. Para as pessoas da minha geração, no entanto, constituía
inestimável relíquia de um tempo em que o cinema não era só uma diversão como
outra qualquer. Muito mais do que isso, era parte indissociável de nossas
vidas.
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