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sexta-feira, dezembro 08, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (19)


Por Jefferson Peres

O cinema era tema de diálogo e discussão, muito mais que a literatura. Dizer que nenhuma diversão ultrapassava o cinema, naquele tempo, não era um simples slogan de propaganda, mas uma verdade incontestável. Não tínhamos televisão que nos distraísse com sua variedade de programas e ainda nos desse a oportunidade de assistir a qualquer filme em nossa própria casa. Ou íamos aos cinemas, ou não os veríamos jamais. Uma superprodução, precedida de ampla publicidade, gerava uma expectativa que se prolongava por vários meses, tempo que mediava entre o lançamento no sul do país e a estréia em Manaus.

Ficávamos contando os dias que faltavam para a data ansiosamente aguardada, com a emoção das crianças à espera do Natal. Mas não eram só os filmes que nos atraíam. Os cinemas não eram apenas casas de espetáculos, mas também locais de encontro e de convício social. Às vezes, eram os únicos lugares onde se podia ter momentos de maior intimidade com a namorada, em razão do severo controle que os pais exerciam.

Apesar da presença do inevitável acompanhante, sempre havia chances de trocas de carinhos difíceis ou impossíveis fora dali. Mais tão importante quanto a sala de projeção podia ser o salão de espera, onde os espectadores, languidamente refestelados em poltronas, fumavam e conversavam, enquanto assistiam à exibição de beleza e elegância das moças que desfilavam. E ainda havia aqueles que, já tendo visto o filme, ou sem dinheiro para o ingresso, se plantavam na calçada em frente, a olhar a entrada e a ouvir música, como num sereno de festa.

Nós nos familiarizávamos com o mundo do cinema, antes mesmo de assistir o primeiro filme, através de uma revista especializada, A Cena Muda, que publicava um variado noticiário sobre o assunto. Fartamente ilustrada, constituía a grande fonte de onde nossas tias, irmãs e primas tiravam fotos dos astros e estrelas em voga, as quais, cuidadosamente recortadas, iam enriquecer seus álbuns.


Vivíamos a era do star system, com a eficiente máquina publicitária de Hollywood mobilizada para a fabricação dos ídolos da tela, em torno dos quais se criava toda uma legião de fãs femininas de Tyrone Power, Robert Taylor, Errol Flynn, Carry Grant e Charles Bayer, enquanto os homens se rendiam ao charme de Hedy Lamarr, Vivien Leigh, Lana Turner, Rita Hayworth e, um pouco mais tarde, Ava Gardner, Grace Kelly e Kim Novak.

E havia outros que pelo talento ou simpatia atraíam ambos os sexos, tais como Bette Davis, Spencer Tracy e Olivia de Havilland. Ia-se ver um filme principalmente pelo elenco e menos pela qualidade ou pela assinatura do diretor.

Como todo menino do meu tempo, eu me iniciei com as comédias de Carlitos, do Gordo e o Magro e de Harold Lloyd, e creio que nunca mais na vida vou dar, outra vez, as espontâneas gargalhadas que eles arrancavam de mim. Adorava também, obviamente, os desenhos animados, especialmente os de Popeye, então, como sempre, enfrentando o eterno rival Brutus, na disputa por Olívia Palito.

Depois, vieram os filmes de western classe B, primários no enredo e na realização, que se limitavam a uma sequência confusa de socos, tiroteios e correrias, com o happy end tradicional. Eu não os perdia, principalmente se estrelados pelos meus mocinhos preferidos, como Tim McCoy, Ken Maynard e Charles Starret.

Como não perdia igualmente os seriados. Nada mais emocionante do que acompanhar aqueles dez ou doze episódios, exibidos semanalmente, com o final sempre apresentando o herói ou a sua garota em situação de perigo mortal. No episódio seguinte, após escapar milagrosamente, reiniciava a luta implacável contra o monstruoso vilão. Entre um episódio e outro ficávamos a semana inteira especulando sobre o que aconteceria.

Outro gancho que nos mantinha presos à história era a identidade do vilão, misterioso personagem que só era desmascarado ao final, numa atmosfera de clímax. Até hoje guardo a imagem do sinistro chefe dos bandidos no Aranha Negra, do qual só víamos  a mão afagando um gato preto sobre a escrivaninha, enquanto instruía seus asseclas com uma voz cavernosa que me dava arrepios. Além desse, creio que assisti a quase todos, como A Deusa de Jeba, O Império Submarino, Novas Aventuras de Tarzan, A Adaga de Salomão e muitos outros.


Com o tempo, meu gosto foi ficando mais eclético e também um pouco mais apurado. Não me tornei um cinemaníaco, mas passei a gostar de todos os gêneros e a assistir, em média, de três a quatro filmes por semana. Em meio a tantos de segunda categoria, pude assistir a alguns que se tornaram clássicos e a outros que, embora não fossem obras-primas, me marcaram, com passagens e cenas que ficaram em mim, inesquecíveis.

De muitos, pude matar a saudade ao revê-los periodicamente, em reprises nos cinemas e na televisão, e alguns até gravei, para minha filmoteca, como os eternos E o Vento Levou…, Casablanca, Gilda e Rebeca, a mulher inesquecível. De vez em quando faço o projeto para me reencontrar com Scarlett em Tara, ou com Rick a ouvir Sam no bar tocando As Time Goes By. Outros, para minha tristeza, nunca mais consegui rever, por não terem sido reprisados ou por falta de oportunidade.

Dos westerns, que continuaram a gozar da minha preferência, como esquecer Os Brutos Também Amam, como o mocinho Shane, tendo Alan Ladd no papel-título, a manejar o revólver como um mágico, ante os olhos do menino fascinado com a proeza, ou o xerife encarnado por Gary Cooper em Matar ou Morrer, atirando ao chão a estrela, num gesto de supremo desprezo pela cidade que ele salvara sozinho, ou, ainda, Jesse James, com Tyrone Power no papel-título, assassinado pelas costas e vingado pelo irmão, numa perseguição emocionante ao assassino, em A volta de Frank James, vivido pelo Henry Fonda.

A Segunda Guerra Mundial foi e continua a ser um riquíssimo filão para os estúdios cinematográficos. Outro gênero que sempre exerceu uma grande atração sobre mim, porque funde uma dupla paixão, pelo cinema e por aquele conflito. Acho que poucos me escaparam. Procurava ver todos, qualquer que fosse o tema: operações bélicas, ações de espionagem ou dramas vividos em campos de concentração. Pouco importava também o teatro de guerra. Podia ser no Pacífico, no norte da África ou na Europa, o interesse era o mesmo. Pude ver Humphrey Bogart vivendo alguns de seus bons momentos em Passagem para Marselha e Uma Aventura na Martinica. E Errol Flynn, como o braço oficial americano a resistir até o fim ao avanço japonês em Bataan. E outros, menos famosos, sendo aniquilados na ilha de Wake, em Nossos Mortos Serão Vingados. Como realmente foram, mais tarde, em Guadalcanal.

Isto não quer dizer, claro, que filmes referentes a outras guerras não me interessassem. A Primeira Guerra Mundial nos proporcionou, por exemplo, Patrulha da Madrugada, com Errol Flynn, e Nada de Novo na Frente Ocidental, inspirado no livro de Erich Maria Remarque; a Guerra da Criméia nos deu, também com Errol Flyn, Carga da Brigada Ligeira; e a Guerra Civil Espanhola foi cenário do imortal Por Quem os Sinos Dobram?, da obra de Hemingway, com Gary Cooper tendo seu desempenho empanado por uma Ingrid Bergman belíssima como a terna Maria dos cabelos cacheados.

E até as guerras coloniais inspiraram bons filmes, à parte suas conotações políticas e distorções históricas. Por isso não podemos esquecer Beau Geste, romantizando as lutas da Legião Estrangeira na África do Norte ou Gunga Din, apresentando os nacionalistas hindus como fanáticos sanguinários. De qualquer forma, fiquei comovido com o sacrifício do pária indiano – que não me saiu da memória – a galgar a cúpula do templo dourado para, com suas clarinadas, salvar seus amigos ingleses de uma cilada mortal.


Não faltava, também, aos filmes de aventuras, fossem de piratas, como Capitão Blood, ou de capa e espada, como As Aventuras de Robin Hood, do qual me ficou o memorável duelo travado entre Errol Flynn (tinha que ser) e Basil Rathbone. Igual, só veria muito mais tarde, em Scaramoche, em que os espadachins eram Stewart Granger e Mel Ferrer. Os policiais era outros que me tinham como espectador certo, especialmente os que traziam os nomes de James Cagney, Humphrey Bogart e George Raft.

De alguns esqueci até os títulos, mas não as cenas de violência, como aquela em que Richard Widmark, num requinte de sadismo, lançava escada abaixo, com cadeira e tudo, uma velhinha paralítica. Igualmente imperdíveis os que tinham como vilões Sidney Greenstreet e Peter Lorre; ou musicais com Fred Astaire e Gene Kelly; ou ainda, as comédias com Bob Hope, Red Skelton e Danny Kaye.

Mencionei apenas filmes americanos porque Hollywood dominava amplamente o mercado, na proporção, talvez, de nove a um, em dez exibidos. Os nacionais só começaram a ter popularidade, a partir das chanchadas da Atlântida. Quanto aos europeus, embora quantitativamente menos expressivos, foram responsáveis por algumas obras-primas que nos marcaram, como Ladrões de Bicicletas, Roma, Cidade Aberta, Milagre em Milão e outros do neo-realismo italiano, sem esquecer os franceses de diretores como Jean Cocteau, Jean Renoir e René Clement. Que delícias de filmes, A Bela e a Fera e Brinquedos Proibidos.

Finalmente, não posso deixar de mencionar os mexicanos, com os horríveis dramalhões da Pelmex, a que assistia para ouvir as canções de Pedro Vargas e do Trio Los Panchos, mas, principalmente, para admirar Maria Antonieta Pons, talvez o mais bonito par de coxas do cinema. Ou, então, quando as produções traziam as assinaturas de Emílio Fernandez e Gabriel Figueroa, que nos deram obras antológicas, como a Pérola.

Creio que algumas das mais intensas emoções que senti ocorreram no interior dos cinemas, nos arroubos do namoro ou nas fugas que empreendia quando, ao mergulhar na penumbra, emergia no retângulo mágico da tela para viver em comunhão com os deuses e as divas de um mundo mitológico.


No centro de Manaus existiam apenas quatro cinemas, o Avenida, o Odeon, o Polytheama e o Guarany, pertencentes a suas empresas, a J. Fontenele e a A. Bernardino. Na segunda metade dos anos quarenta surgiria o Éden. Não incluo o Popular porque, de tão precário, só era frequentado, praticamente, por pessoas residentes no Alto de Nazaré e imediações. Basta dizer que um habitué de cinema como eu, nunca lá pus os pés.

Mesmo os quatro melhores, porém, deixavam muito a desejar em matéria de conforto. As poltronas tinham assentos de madeira e não havia refrigeração. O calor era amenizado por ventiladores de teto e de parede, os quais, dependendo da hora e da quantidade de gente, podiam ser praticamente inúteis. Lembro-me perfeitamente das sessões das bilheterias, que abriam ao meio-dia. À hora marcada, com a sala superlotada, inclusive com espectadores sentados no chão, as cortinas eram cerradas e o prefixo musical anunciava o início da sessão. Aí se desencadeava uma zoadeira infernal de gritos, assovios e sapateados, que logo se interrompiam, para se repetir, com intermitência, durante toda a sessão, a pretexto de qualquer coisa.

Nas cenas românticas, quando o galã beijava a moça, nas de briga e nas de perseguição, a cavalo ou automóvel, a zoada era a mesma, por pura molecagem. Quando o filme queimava e as luzes se acendiam, então era um pandemônio, com gritos de ladrão, em protesto contra possíveis mutilações da película. A sala era uma estufa, e após três horas de calor e barulheira, a camisa encharcada de suor, os olhos habituados à semi-escuridão, tomávamos um choque quando as portas se abriam e recebíamos, em pleno rosto, a claridade da luz solar. Frequentemente, essas sessões me custavam uma forte dor de cabeça que me estragava o resto do dia. Mas, no domingo seguinte, lá estava eu, firme, na fila de ingressos.

Havia duas sessões, de segunda a sábado, às dezesseis e às vinte horas. Aos domingos realizavam-se, ainda, a matinal, às nove, e a matinée de treze horas. As sessões noturnas eram duplas, com a exibição de dois filmes, sem intervalos. Uma parte do público se retirava ao término do primeiro filme, mas a grande maioria ficava para assistir ao segundo. A plateia das sessões de adultos era geralmente bem-comportada, especialmente a das soirées – era assim mesmo que chamavam – frequentadas por casais da classe média alta, que falavam aos cochichos, como nos teatros. Os homens compareciam de paletó e gravata, acompanhados de esposas e filhos em trajes de festa.

A única perturbação, às vezes, corria por conta de um tipo de chato, muitos com seus acompanhantes, inclusive antecipando sequências da história. Quase sempre os circunstantes engoliam a raiva em silêncio ou, quando muito, trocavam de lugar. Raramente acontecia de alguns, menos educados, protestarem em voz alta ou se queixarem à gerência, criando tumulto. Excetuados esses incidentes, raríssimos, as sessões eram silenciosas e tranquilas. Algo semelhante ocorria com as domingueiras das dezesseis horas, com a diferença de que os frequentadores eram, predominantemente, jovens casais de namorados.


As bilheterias abriam quarenta e cinco minutos antes, quando começava a tocar a música, não para dentro, mas para fora, através dos alto-falantes voltados para a rua. À hora marcada para o início da sessão, tocava o prefixo musical, que era uma música popular. No caso do Polytheama, durante muitos anos foi o Tico-Tico no Fubá. Nunca entendi bem o porquê dessa prática, a não ser pela possibilidade, improvável, de atrair frequentadores. O certo é que perdurou por muitos anos, sendo abandonada aos poucos. O mais renitente foi o Guarany, que só aboliu a música externa no início da década de 60, quando um grupo de habitués da República Livre do Pina, eu no meio, não suportando mais o volume do alto-falante e o baixo nível das músicas, fizemos um apelo ao velho Vasco, que finalmente nos atendeu.

A programação diária era afixada em grandes tabuletas, amarradas aos postes ou aos fícus benjamins fronteiros aos cinemas, com grandes letras azuis e vermelhas. As superproduções, ansiosamente aguardadas, eram anunciadas dias antes, através de carros com alto-falantes que percorriam a cidade inteira, trombeteando com estardalhaço as qualidades da película.

Nos dias festivos, como grandes feriados e datas de aniversário dos cinemas, havia sessões ao ar livre. Nos canteiros em frente ao Polytheama e ao Guarany erguiam-se postes de ferro, aos quais se prendiam as telas em que projetavam os filmes, geralmente documentários e desenhos animados.

Eram realizadas entre as dezoito e as dezenove horas, gratuitamente, com grande afluência de espectadores, que se espalhavam, no Guarany, até à calçada da Praça da Polícia, e no Polytheama ocupavam toda a pista da Getúlio Vargas, até a calçada do Ginásio. A área em frente aos cinemas ficava embandeirada com papéis coloridos, como um arraial, a cidade era despertada com salvas de rojões e a matinal regurgitava de crianças que acorriam para ver o filme e receber balas e bombons. Tudo grátis. Era realmente uma festa.

Os donos e gerentes eram conhecidos dos frequentadores, com os quais se relacionavam. E alguns, de tão assíduos, se tornavam íntimos e não pagavam ingresso. Eram os beiradistas, assim chamados porque ficavam rondando a plateia pelas margens, em busca de garotas para possíveis abordagens. Habilíssimos, adotavam várias técnicas de aproximação.

Algumas vezes, faziam comentários a respeito do filme. Se o contato era repelido, desistiam; se não, iam em frente, porque o peixe estava fisgado. Outras vezes, faziam comentários a respeito do filme. Se a vizinha respondia, mesmo com um simples sorriso, logo entabulavam conversa. Finalmente, havia a abordagem indireta, que consistia em obsequiar o acompanhante da jovem com chocolates ou balas, se criança, para numa segunda etapa, atingir o verdadeiro alvo.


Esses beiradistas eram encontrados em todos os cinemas, mas o preferido era o Guarany, talvez pela proximidade do Pina. O grupo se constituía de advogados, médicos, dentistas e promotores, que assinavam ponto todos os dias, independentemente do filme em exibição, já que o seu interesse estava na plateia. Mas havia também os neófitos, que podiam agir desastradamente.

Foi o que aconteceu uma noite com Fernando Gonçalves, o Fernandão, mais tarde Promotor de Justiça. Sem muito jeito para a coisa e dotado de uma tonitruante voz de barítono, no meio da sessão resolveu abordar uma garota, com sutileza de mamute, cochichando-lhe ao ouvido, num ribombo que ressoou em toda a plateia: “Maria, deixa eu pegar no teu peito?” A gargalhada foi geral e Fernandão logo deixou a sala, ralado de vergonha. Um vexame completo.

Em meados dos anos 50 surgiram, como novidade, “as sessões só para homens” no Guarany e no Polytheama. Aconteciam às sextas-feiras, às 11 da noite, com enorme afluência de um público rigorosamente masculino. Nem as meninas da zona do meretrício se atreviam a comparecer. Não me lembro de ter visto, alguma vez, nenhuma mulher numa dessas sessões. Eram apenas homens e maiores de 18 anos.

Alguns poucos velhos que enfrentavam a zombaria dos outros, que os hostilizavam aos gritos de “velho broxa” e “mineteiro”. Alguns não se davam por achados e todas as semanas lá estavam, firmes, indiferentes aos gracejos da turba. Havia homens de todas as classes sócias, mas aqueles de maior projeção, ciosos de sua reputação, entravam sorrateiramente, depois de começada a sessão, e saíam antes do seu final, temerosos de serem reconhecidos.

Não preciso dizer que os filmes eram todos pornográficos, feitos por amadores em 16 mm, mudos, de péssima qualidade, com estórias curtas que eram simples pretexto para a apresentação de cenas de “sexo explícito”, como se diz hoje. Tudo de muito mau gosto, mas o sabor do proibido fazia a plateia vibrar, excitadíssima, não sendo raro os que se entregavam à masturbação em pleno cinema.

Certa noite, no Guarany, vi um espectador reclamando, muito irritado, porque um jato de esperma lhe caíra na cabeça, ejaculado do alto da galeria. Diziam os empregados que, após as sessões, tinham um grande trabalho para remover a sujeira deixada pelos onanistas. É claro que a grande maioria não chegava a esses extremos, mas, em compensação, saía do cinema direto para os lupanares, que nesses dias ficavam lotados.

O Guarany era domínio do velho Vasco Farias, o vovô Vasco, que ainda em vida foi homenageado por Farias de Carvalho com um belo e comovente soneto. Alto, cabelos de algodão, ventre avantajado, sua figura paternal despertava simpatia em adultos e crianças. Devia gostar muito do ramo, porque trabalhou alguns anos no Polytheama e depois se transferiu para o Guarany, onde ficou até se aposentar, e com o qual se identificou a tal ponto que era a própria personificação do velho cinema.

Aliás, teatro também, eventualmente utilizado para shows e programas de auditório, como o popular Tem Gato na Tuba, da Rádio Difusora, que contava com enorme audiência. Era o único cinema com o privilégio de manter abertas as portas laterais, nas sessões noturnas, permitindo aos espectadores deixar por instantes a sala de projeções, para fumar e bater papo nos bancos do jardim. Cinema de classe média, era frequentado também pelo povão, que a preços módicos tinha acesso à galeria ou poleiro, um mezanino situado no fundo do salão. Por tudo isso, e pelo velho Vasco, era o cinema mais simpático da cidade.


No Polytheama o próprio dono, Alberto Carreira, comparecia diariamente à porta. Sempre vestido de um branco imaculado, inclusive os sapatos, ficava próximo às borboletas, em conversa com amigos, até o início da sessão. Era filho do renomado poeta Jonas da Silva, sócio da empresa, que eu costumava ver todas as tardes, já muito velho, sentado num banco do canteiro central, em frente ao cinema.

Mais do que o Guarany, o Polytheama era também teatro. A começar pela disposição interior, com uma plateia em forma de ferradura, circundada por duas fileiras de camarotes. Não sei se chegou a ser encenada alguma peça teatral em seu palco, mas eram frequentes os espetáculos com ilusionistas, cômicos e cantores nacionais e estrangeiros. Foi lá que tive a oportunidade de ver, pela última vez, Gregório Barrios soluçando boleros com sua voz de timbre inconfundível.

No Avenida, além do dono, tínhamos também a presença diária, obrigatória, inarredável, de sua esposa, D. Yayá. Sempre com o rosto pintado de batom e ruge de tom arroxeado, lá estava ela, infalivelmente, em todas as sessões, sentada numa poltrona de palhinha, no hall de entrada, ou debruçada no gradil, ao lado da borboleta.

Às vezes ficava à porta, procurando aliciar espectadores com a recomendação: “Entre, o filme é ótimo!” E, ante a incredulidade do interlocutor, acrescentava: “É colorido!” Para ela, uma prova irrecusável de boa qualidade. Mas o Avenida era também o cinema das elites, preferido pelo escol da cidade. Inesquecíveis as Sessões Chiques das Moças, às sextas-feiras, quando o filme era o que menos interessava, porque o melhor espetáculo se desenrolava na plateia.

Já se foram todos os nossos antigos cinemas: o Odeon, o Avenida, o Polytheana e o Guarany. Este foi o último a tombar, sob protestos tão incisivos quando inúteis. Para a maioria, não passava de um prédio feio, velho e sujo. Para as pessoas da minha geração, no entanto, constituía inestimável relíquia de um tempo em que o cinema não era só uma diversão como outra qualquer. Muito mais do que isso, era parte indissociável de nossas vidas.

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