Por Jefferson Peres
Tanto quanto me lembre, era quatro, apenas, as quadras
existentes na cidade, todas descobertas. Havia a do 27°. BC, na Praça General
Osório; a do Ginásio; a do Nacional, nos fundos da antiga sede, na Saldanha
Marinho; e a do Rio Negro, não atual, mas uma outra, atrás de sede, da qual se
assistia aos jogos, sentados nos batentes. Mas essas poucas quadras eram
intensamente utilizadas para treinos, jogos amistosos ou torneios. Raro o dia
em que a do Ginásio, por exemplo, não era ocupado por equipes de vôlei ou
basquete.
Todos os clubes grandes possuíam times dos dois sexos, pois
era grande o número de moças que praticavam esses dois esportes, especialmente
o vôlei. Frequentemente se disputavam partidas com guarnições de navios
ancorados no porto e com equipes de outros Estados e Territórios.
Certa noite, na quadra do Rio Negro, vi um combinado
amazonense de basquete, em exibição de gala, derrotar uma forte seleção de
Roraima, integrada por jogadores gaúchos de grande experiência. Não sou um
expert na matéria, mas acho que naquela noite teríamos enfrentado a seleção
brasileira sem fazer feio.
Quando se fala em esporte, é preciso não esquecer o
ciclismo, que fazia parte do lazer diário do jovem amazonense de classe média.
Rara a casa que não possuía uma ou duas, de marca Raleigh, Opel ou Peugeot.
Tantas, que havia meia dúzia de oficinas de consertos espalhadas pelo centro.
Mas quando se tratava de pneu furado, nós mesmos consertávamos, vedando o furo
com pedaços de borracha e cola Michelin (que aportuguesávamos pronunciando o
“in” no final com o som de in mesmo).
A topografia da cidade e o calçamento das ruas não
favoreciam o uso da bicicleta como meio de locomoção normal, mas havia um lugar
excepcional para a prática do ciclismo, que era a Praça de São Sebastião. Os
dois tipos de calçamento ali existentes, o das ruas que a cercam, liso como asfalto,
e o da área em torno do Teatro Amazonas, de paralelepípedos bem ajustados,
permitiam que as bicicletas deslizassem suavemente. Apenas eram evitadas as
laterais que dão seguimento às ruas Costa Azevedo e 10 de Julho, devido às
linhas de bonde.
As demais, raramente percorridas por automóveis, eram usadas
tranquilamente, inclusive as rampas do teatro, por onde os mais exibicionistas
desciam como bólidos, com os braços e as pernas levantados. Todas as tardes, a
partir das cinco horas, em particular aos domingos, a praça ficava coalhada de
ciclistas de ambos os sexos, misturados a outros que rodavam sobre patins,
igualmente muito utilizados.
O ciclismo de competição tinha seu grande palco no velódromo
Álvaro Maia, uma grande pista de corrida, erguida na Cachoerinha, ao lado da
Igreja do Pobre Diabo. Concebido e construído pelo engenheiro Deodoro Freire,
com recursos próprios e de terceiros, lá se exibiam os ases do pedal, entre os
quais os próprios filhos de Deodoro, Pedro e Rira, Vinicíus Silva, filho do pintor
Branco e Silva e, dentre os competidores mais novos, meu amigo Haroldo de
Oliveira Costa.
Às vezes era usado, também, para corridas de motocicletas, e
outras, para apresentações de luta-livre. Armava-se um ringue no centro, onde
se engalfinhavam os lutadores famosos da época, como João Isaac, Pantera Negra
e Surimã. Com a morte de Deodoro Freire, o velódromo ficou abandonado. Hoje,
não sei se restam sequer as ruínas.
Havia também, é claro, o papagaio, empinado por quase todos
os garotos e por muitos adultos, sem distinção de classes. Curiosa brincadeira
essa que, inclusive, criou todo um jargão, de origem genuinamente popular.
Cerol, rabiola, peitoral, banda de asa, maçaroca, famão são termos saborosos,
próprios de um esporte que é peculiar não apenas em sua terminologia, mas
também em seu caráter a um tempo artístico e lúdico, que se inicia com o prazer
de confeccionar o brinquedo, e pode completar-se com a luta e a vitória, no
corte elegante e fatal do competidor.
Podia-se comprar, é claro, o papagaio feito, mas a grande
maioria fazia os seus. Conseguíamos as talas, que cortávamos nos tamanhos
adequados e íamos amarrando com linha zero, formando o esqueleto, que a seguir
cobríamos com papel de seda, no modelo desejado. Além do banda-de-asa, muito comum,
havia também o de espinho, o de listras, o Rio Negro e o Nacional, estes com as
cores dos clubes. Empinavam-se em toda a cidade e de todos os lugares, das
ruas, dos quintais, dos pátios e dos telhados. O céu ficava cheio, com milhares
de papagaios a nos divertir com a sua graciosa coreografia.
Havia ainda a torcida quando ocorriam as tranças (com
cedilha mesmo), especialmente se envolvessem dois famões, isto é, campeões famosos que dificilmente eram batidos.
Alguns se distinguiam pela habilidade em colher, quando se formavam os “bolos”.
Às vezes, colhiam com tanta rapidez, que conseguiam trazer às suas mãos o
papagaio do adversário. Outros ganhavam fama pela eficiência do cerol que
usavam.
Embora todos os preparassem com os mesmos ingredientes e da
mesma maneira, ou seja, moendo garrafas e vidraças em trilhos de bonde e
misturando o vidro moído à cola líquida, o cerol de alguns parecia melhor que o
de outros. Isso dava lugar a boatos sobre misteriosas fórmulas usadas pelos
campeões.
Lembro-me de Paulo Maranhão, o famão do meu bairro,
residente no Igarapé de Manaus, que chegava a cortar de cinco a seis papagaios
numa tarde, aos gritos de: “Bota outro, medroso!” Dizia-se, e alguns
acreditavam piamente, que ele adicionava urina ao cerol para torná-lo mais
cortante. Infelizmente, nunca se saberá a verdade, porque Paulo morreu sem
revelar o segredo.
Entre os jogos de salão, nenhum superava o de botões, talvez
devido à nossa paixão pelo futebol. Tal como acontecia com os papagaios, esse
jogo também nos proporcionava o prazer de fazer o brinquedo com as nossas
próprias mãos. Adquiridos feitos, apenas alguns poucos botões de roupa (daí o
nome do jogo) e o pente usado para impulsioná-los. Tudo o mais nós fazíamos. A
começar pela trave, que montávamos em armações de madeira, com a rede obtida de
toucas ou pedaços de véus usados por nossas mães e tias em suas idas a igreja.
O goleiro era feito de chumbo, conseguido de sucata, que
derretíamos e moldávamos em caixas de fósforos enterradas na areia. Quando o
chumbo solidificava e esfriava, era colocado numa outra caixa de fósforos, que
envolvíamos num papel branco, com o escudo do clube escolhido.
Os jogadores, ou botões, eram de vários tipos. Havia os de
madeira, que mandávamos tornear em marcenarias e, a seguir, lixávamos e
envernizávamos; os de tucumã, que cortávamos ao meio, lixávamos e aos quais
dávamos polimento com estearina; os de casco de tartaruga, não muito
apreciados; e, finalmente, os de jarina, os mais bonitos e trabalhosos, que nos
exigiam uma viagem até as embarcações ancoradas no porto, onde a colhíamos em
estado bruto.
Esta exigia um trabalho paciente, que começava com a relação
numa superfície áspera – o nosso grupo usava o muro da Beneficente Portuguesa –
seguido da raspagem com uma faca de lâmina afiada. Depois, completávamos o
serviço, com lixa e polimento. Ficavam lindas, em cores de fundo branco ou
creme, rajas de castanho ou marrom, fazendo perfeitamente jus ao nome de marfim
vegetal. Nunca mais vi um botão de jarina. Será que ainda é usado?
Finalmente, tínhamos a bola, de cortiça, tirada de rolhas de
garrafas, que cortávamos com tesoura e depois íamos lixando, até assumir uma
forma perfeitamente esférica. Não utilizávamos mesas como campos, devido ao
cansativo trabalho de apanhar as bolas caídas. O jogo era no chão mesmo, em
salas, pátios e porões.
Organizávamos campeonatos com turno e returno, cada um
adotando o nome de um clube de sua preferência, dentre os grandes do Rio e de
S. Paulo. Eu ficava sempre com o do meu amado Botafogo, pelo qual sofro até
hoje. Ao contrário do que acontecia no futebol, o jogo de botões me alegrou com
muitas vitórias e até alguns campeonatos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário