Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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terça-feira, janeiro 11, 2011
Causos de Bambas: José Ramos Tinhorão
José Ramos, dito Tinhorão, o azedo crítico de música popular brasileira, não tinha sorte com automóvel.
Certa vez levou um Austin, artefato pelo qual alimentava violenta paixão – não correspondida – para ser consertado numa oficina muito recomendada, em Laranjeiras, no Rio.
Ninguém hoje em dia faz idéia do que era a vida de dono de automóvel antes da indústria do mesmo se instalar no país.
Os carros para a classe média eram, de um modo geral, comprados de segunda, terceira, às vezes oitava mão e a manutenção daqueles cacos enlouquecia as vítimas.
O mecânico era um semideus onisciente, despreparado, ladrão e rei do “gatilho”.
Não havendo peças de reposição, a saúde do carro dependia de intermináveis transplantes.
Os doadores eram encontrados nos ferros-velhos e, da mesma maneira que os corações humanos, raríssimos.
Um Studbaker 55 recebia o carburador de um Ford 53, a mangueira de um Volvo 48 e um cabo de arame do ano.
Nessa Idade do Arame, quando sabiam de batida feia, os mecânicos se precipitavam para o carro defunto e o trucidavam como a uma vaca atropelada.
As oficinas tinham padrões de qualidade segredados entre as vítimas, numa rede de informações de espionagem e solidariedade.
Desse jeito, Tinhorão soube da tal oficina milagrosa, numa ladeira quase vertical.
Doença do veículo: ronqueira na caixa de marchas, grilo na porta dianteira esquerda, fecho do porta-luvas (portavam-se luvas, creiam) incompetente, embreagem patinando, vazamento no burrinho do freio, superaquecimento do – vá lá – motor e sem freio de mão. Coisa pouca.
Tinhorão foi levar seu rebento para o milésimo conserto da temporada.
Deixou o carro estacionado junto ao meio-fio e foi negociar o assalto com o Ali-Babá, um elefante glúteo, mal-encarado, imundo e gentil como um javali louco.
Mal abandonou o cock pit do Austin, ouviu um estalido aterrorizante: o freio de mão se soltando.
O carro, obedecendo instruções de Newton, cumpriu a lei e ladeira abaixo.
Tinhorão, aos urros, tentou – como coisa!... – segurar o rebelde que ia aumentando a velocidade e arrastando o dono como se fosse uma biga.
Subiu o meio-fio, atravessou a calçada e despencou-se no abismo...
Caiu vinte metros abaixo, no espaço exato entre uma casa e outra, aninhando-se com estrondo neste corredor sem deixar um milímetro de folga. Uma luva.
Se a indústria imobiliária não o tirou, está lá até hoje, coberto de avencas, samambaias e trepadeiras várias, depois de anos de esconderijo de menino punheteiro.
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