Em junho de 2005, o escritor e jornalista Mouzar Benedito esteve em Manaus a meu convite, para lançar uma série de livros no Espaço Cultural Valer e depois viajou comigo pra Parintins, na “Caravana de Sambistas do Morro da Liberdade”, para conhecer o Festival dos Bumbás.
Depois que retornou a São Paulo, ele me enviou um novo livro inédito, chamado “Trem Doido”, ainda em arquivo word, para que eu tentasse publicar aqui em Manaus.
Como havia vários causos do escritor passados na região amazônica (ele foi o primeiro jornalista do Sul a entrevistar o seringueiro Chico Mendes, no final dos anos 70, quando editava o jornal Versus junto com o saudoso Marcos Faerman e Chico Mendes ainda não era conhecido mundialmente), enviei o material para o Tenório Telles, da Editora Valer.
Tenório gostou muito do livro, programou sua publicação para os futuros lançamentos da editora, mas o tempo foi passando e ficou o dito pelo não dito.
Hoje, Mouzar Benedito me mandou o recado abaixo.
Em 24 de janeiro de 2011 12:20, mouzarbenedito@yahoo.com.br benedito
Oi, Simão,
Tudo bem?
Lembra-se daquele livro de causos (mais de cem - o primeiro deles, "Trem doido")?
Inscrevi num concurso de contos da Secretaria da Cultura e ganhei. Vai sair em fevereiro.
Abraços.
Mouzar
Abaixo, em primeira mão, três causos do novo livro:
1. Trem doido
Mineiro gosta mesmo de trem. Não tem jeito. Inclusive chama tudo de trem: refere-se a panelas e pratos como trens de cozinha, doença é um trem e o remédio também é (um deles piorava de saúde e me dizia que teve um trem esquisito, mas depois tomou um trem que o farmacêutico receitou e ficou bom). Já vi gente comprar trem de escritório, trem de matar mosquito, trem de tudo quanto é tipo. Mulher bonita é trem bão, ou trem doido. Como diz a piada, mineiro só não chama uma coisa de trem: o trem, quer dizer, o trem-de-ferro. Contam que uma família esperava o trem numa estação mineira e, quando ele apontou se aproximando da estação o homem falou pra mulher:
— Mulher, pega os trens que lá vem o baita.
Eu sou mineiro de uma cidade que nunca teve trem, quer dizer, trem-de-ferro. Porque outros trens tinha aos montes, já que a gente também chamava tudo de trem. Então tinha muito trem. E quando vim para São Paulo, foi de trem da Mogiana, que peguei em Guaxupé.
Já em São Paulo, sempre que podia, viajava de trem. Quando vi que acabavam com as ferrovias no Brasil, viajei de trem o máximo que pude. Mas às vezes era difícil. Muitos dos próprios ferroviários, ou melhor, dos burocratas das ferrovias, contribuíram pra extinção desse meio de transporte. Lembro-me de uma vez que estava em Teresina e resolvi ir de trem para São Luís. Fui comprar passagem pro dia seguinte, o homem do guichê falou:
— De ônibus, você gasta seis horas daqui lá, por que quer ir de trem que gasta mais que o dobro?
— Por que eu gosto de andar de trem.
— Mas vai demorar muito.
— Não tem importância, eu tô à toa. Quero uma passagem pra amanhã às oito da manhã.
— O trem de amanhã tá atrasado, não vai sair nesse horário.
— Eu espero.
— Não sei nem se sai amanhã.
Nisso entrava um trem tipo maria-fumaça na estação. Falei:
— Olha ele aí. Tá chegando, então vai poder sair amanhã mesmo.
Ele não se deu por achado:
— Esse é o que devia ter chegado ontem e vai sair só depois de amanhã. O de amanhã, que devia ter chegado anteontem, ainda não chegou.
Não sei se era verdade, mas desisti. O certo era que o burocrata não queria me vender passagem, de jeito nenhum. E venceu!
2. A história dos baitolas
Ricardinho, Marinho e eu estávamos indo de trem de Fortaleza para o Crato, no Cariri cearense, e como eu sempre carregava uma garrafa de cachaça para puxar conversa nessas ocasiões, logo estava conversando com uns velhos, bebericando uma pinguinha razoável para os padrões nordestinos, pois as pingas da região são, na maioria das vezes, adocicadas.
Um dos velhos era aposentado como ferroviário, mas garantia que trabalhou também na própria construção da ferrovia. E me matou uma curiosidade.
— Os operários eram todos brasileiros, cearenses, mas os engenheiros eram todos ingleses — começou sua história.
Segundo disse, boa parte dos engenheiros eram homossexuais. E tinham dificuldade para aprender o português, o que não tem nada a ver uma coisa com outra.
O que os cearenses mais achavam gozado era que os ingleses não conseguiam pronunciar bitola, falavam baitola (com acento circunflexo no ô — baitôla).
Daí, os ingleses eram chamados de baitolas e quando algum operário brasileiro fazia qualquer coisa que os cearenses consideravam “coisa de viado”, o chamavam de baitola. E foi assim que surgiu esse sinônimo de homossexual.
3. Rumo aos certinhos do Sul
Tinha um mês de férias pela frente e decidi: “Vou até Buenos Aires de trem”. Só iria entrar num ônibus de Pinheiros até a Estação Sorocabana, no centro de São Paulo, de onde saíam os trens rumo ao Sul. Seria a primeira vez que viajaria para a região Sul.
Nos tempos de estudante, o que a gente gostava mesmo era do Nordeste, mas esticava às vezes para a Amazônia e pro Centro-Oeste.
O Sul, muito organizado, não atraía. A palavra Sul, referindo-se à região, aparecia como um sinônimo de organização, tudo funcionando certinho, o que não nos agradava nem um pouco.
Havia estudado com cuidado todos as linhas que ainda funcionavam e planejei direitinho. De São Paulo a Uruguaiana, gastaria uma semana. No primeiro dia, iria de São Paulo a Itararé, cidade que queria conhecer por causa da famosa batalha que não houve, na Revolução de 30, quando jornais chegaram a dar detalhes da luta dos legalistas de São Paulo contra os gaúchos que se dirigiam ao Rio de Janeiro, e não houve batalha nenhuma.
Eu chegaria lá com tempo apenas para dar um passeio pelas ruas provavelmente desertas da cidade, já à noite. O trem saía de São Paulo, não me lembro bem, por volta das 9 horas da manhã e chegava a Itararé às 10 da noite.
Saiu tudo conforme planejei. No segundo dia, saí de Itararé cedo, rumo a Ponta Grossa, no Paraná, onde cheguei antes das cinco horas da tarde. Saí de Itararé pensando preconceituosamente que só encontraria dali pra frente gente quadrada, sem graça, nada de “anormal” aconteceria. Mas me surpreendi logo depois de entrar no estado do Paraná.
O trem parou num lugar ermo, sem estação, e logo pensei que, mesmo no Sul, os trens estavam sucateados e quebravam também. Depois de uns dez minutos parados, sem ninguém informar o que estava acontecendo, vi o maquinista e um outro funcionário da ferrovia chegarem correndo, alegres, entrando no trem com um monte de agrião nas mãos. Pararam o trem para roubar agrião.
— O Sul não é tão “Sul” assim — pensei.
Mas isso, claro era porque estávamos no Paraná, não eram ainda os estados cheios de alemães, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
No terceiro dia, fiz uma viagem curta, de Ponta Grossa a Irati. Uma amiga minha havia mudado há poucos meses para Irati e, como vi que a cidade ficava no caminho entre Ponta Grossa e União da Vitória, resolvi parar lá um dia.
A cidade ainda era pequena e pouco movimentada, mas num cruzamento ostentava um semáforo injustificável. Minha amiga contou que os moradores de cidades vizinhas faziam muitas gozações por causa disso. Diziam que na cidade havia só dois carros quando o semáforo foi instalado e os dois bateram naquela esquina... justamente por causa do semáforo. Os dois motoristas olhavam fascinados para os “faróis” — verde pra um e vermelho pro outro — e se distraíram.
No quarto dia, continuei de Irati a União da Vitória, na divisa com Santa Catarina. O interessante é que a estação servia (e serve ainda, o trem acabou mas a estação ainda está de pé) de divisa entre os dois estados. Se saísse por uma porta, era União da Vitória, no Paraná. Se saísse pela outra, era Porto União, já em Santa Catarina.
No quinto dia, aí sim, entraria no que esperava ser o Sul verdadeiro, organizado, tudo certinho. O trem saía cedo e atravessava o estado de Santa Catarina inteiro. Foi uma viagem bonita.
Primeiro o trem subiu uma serra durante horas, depois começou uma descida margeando o Rio do Peixe até entrar no Rio Grande do Sul, em Marcelino Ramos, cidade que fica no encontro dos rios do Peixe e Pelotas, que formam o Rio Uruguai. Era para chegar lá pouco depois das dez da noite, mas chegamos depois das onze. O motivo do atraso não combinava com minhas impressões do que seria viajar por Santa Catarina.
Numa das primeiras paradas, entrou um casal mais ou menos idoso, gordo e vermelho, com cara de gringos. Os dois pareciam ter bebido bastante e davam risadas o tempo todo. O homem acendeu um charuto, a mulher acendeu um também. Pegaram uma cerveja no bar do trem, trouxeram para o vagão, bebiam, davam baforadas nos charutos e riam.
Quando se aproximou o homem que picotava as passagens, o gordo o chamou e falou com um sotaque carregado. Ele e a mulher eram poloneses e, apesar de morar no Brasil desde jovens, falavam muito mal o português. Ele falou que tinha sido ferroviário também, trabalhado naquela ferrovia mesmo, estava aposentado e a mulher dele tinha uma amiga na próxima cidade, pertinho da estação. Eles iam fazer uma visitinha rápida à amiga e voltariam pra continuar a viagem. Que o trem não saísse sem eles. O sujeito concordou.
Quando o trem parou na estação, o casal saiu dando baforadas nos charutos e rindo. Passou o horário do trem sair e eles não voltavam. O maquinista apitava o trem, apitava mais e eles não voltavam. Demorou quase uma hora para os dois voltarem, um pouco mais calibrados no álcool, fumando e rindo. E assim continuou a viagem. Santa Catarina também não era tão “Sul” assim, apesar da presença de alemães, poloneses e outros europeus do norte.
No sexto dia, o trem foi direto de Marcelino Ramos a Santa Maria e aí deu pra ver a irracionalidade com que tratavam o transporte ferroviário. Em todo o trecho de Itararé até Marcelino Ramos, o trem ia com poucos passageiros e um monte de vagões. Houve lugares em que cada vagão tinha no máximo meia dúzia de pessoas. De Marcelino Ramos a Santa Maria, o trem era muito utilizado, mas tinha poucos vagões, todos superlotados, cheios de gente de pé.
Só parei em Santa Maria para jantar e peguei um trem luxuoso para Uruguaiana. Era um trem húngaro, com poltronas-leito que ia de Porto Alegre a Uruguaiana. Cheguei na manhã do sétimo dia de viagem e resolvi parar lá uns dois dias antes de atravessar a ponte para Paso de Los Libres, sobre o Rio Uruguai, e pegar um trem rumo a Buenos Aires. Perdi os documentos e não pude continuar. Tive que voltar. De ônibus.
Um comentário:
Oi Simão,
Agradecendo o carinho que vc tem com a memória de meu pai( Celito Chaves), vim lhe avisar da missa de uma ano de seu falecimento que será relaizada ás 19:00 do dia 3 de fevereiro ( quinta feira) na Igreja Nossa Senhora de Lurdes no parque 10 (em frente a cachaçaria do Dedé).
Gostaria de lhe pedir que divulgasse isso no sue blog.
Contamos com sua presença
Ana Rosa Cardoso
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