Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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terça-feira, janeiro 25, 2011
Uma Temporada no Inferno (Final)
Março de 1966. Conheci o artista plástico Jorge Palheta no grupo escolar Getúlio Vargas, onde começamos a estudar na mesma classe fazendo o quarto ano primário.
Com apenas 12 anos de idade, Palheta já era o melhor desenhista de histórias em quadrinhos que conheci até hoje.
Seu talento natural depois foi aprimorado mediante diversos cursos de pintura realizados na Pinacoteca Estadual e ministrados por Moacir Andrade, Van Pereira e Manuel Borges, entre outros.
Na época, eu morava na rua Waupés, quase no canto da rua Barcelos.
Quando, alguns meses depois, nos mudamos para a Cachoeirinha, soube que o Jorge Palheta morava na mesma rua (Parintins) que eu, só que no canto com a rua Maués, dois quarteirões acima, já na vizinhança do Bodozal da Maués.
A partir daí, ele descia a ladeira da Parintins, a gente se encontrava no cruzamento da rua Borba, e íamos conversando até o grupo.
Na volta, repetíamos o mesmo trajeto. Pra gente virar amigos de sangue era conta de multiplicar.
No segundo semestre daquele ano, eu e Mário Adolfo já havíamos decidido que iríamos ser desenhistas de HQ.
Nosso acordo era produzir até o Dia de Natal, no mínimo, cinco gibis cada um. Os livros seriam feitos no formato folha A4 dobrada ao meio, seis quadrinhos por página, 16 páginas e grampeadas com um único grampo.
Desenhos e argumentos feitos com caneta BIC escrita fina.
Ninguém podia “colar” desenhos ou argumentos dos gibis tradicionais. Tudo tinha que ser original.
A gente se encontrava para realizar essa façanha nas tardes de sábado, por volta das 13h, na cozinha da minha casa.
Minha mãe, Celeste, era a maior incentivadora da presepada. A cada duas horas, ela nos presenteava com copos de guaraná gelado e pães quentinhos com a manteiga ainda derretendo. Uma farra!
Desenhávamos um de frente pro outro, mas sem nenhum dos dois dar pitaco no que o outro estava fazendo.
Por volta das 15h, encerrávamos o expediente e íamos vender gibis na feira livre da Cachoeirinha.
Em comum acordo, decidimos fazer gibis dos cinco melhores gêneros que curtíamos.
No quesito faroeste, Mário Adolfo criou o Kid Comanche e eu, o Kid Gatilho.
Em termos de super-heróis, Mário Adolfo criou o Supremo e eu, o Raio.
Em termos de Idade Média, ele foi de York Tell e eu, de Sir John, o Magnífico.
Na ambientação estilo homem-macaco, eu fui de Hur e ele foi de Tabu, depois de ter colocado o olho em uma lata de cera de mesmo nome utilizada lá em casa.
O quinto gibi seria uma surpresa: cada qual faria o que lhe desse na telha. Era o único que a gente fazia solitariamente.
Convencemos Tião e Negão (aka Francisco Silva) a fazerem o mesmo.
Os dois toparam, mas empacaram nos dois primeiros gêneros (faroeste e super-heróis) e acabaram desistindo.
Como meu colega de classe no grupo escolar era o melhor desenhista da turma, tentei, inutilmente, fazer Jorge Palheta embarcar na viagem. Ele não topou.
O máximo que fazia era desenhar as capas dos meus livros – o que deixava o Mário Adolfo visivelmente enfurecido. Eram verdadeiras obras de arte!
– Porra, assim não vale! – esperneava Mário Adolfo, quando me via exibir as capas coloridas desenhadas pelo Palheta. “Se for assim, vou pedir para o Moacir Andrade fazer as minhas...”.
Algumas vezes, na véspera de Natal, eu ia na casa do Mário Adolfo. Ele estava meio encrencado para finalizar um dos livros. Eu nem discutia:
– Mete um anúncio aí, porra!
Na mesma hora, ele desenhava uma propaganda do chiclete Ploc e ficava livre de desenhar seis quadrinhos. Uma zona!
No Dia de Natal, a gente passava os cinco gibis um pro outro, lia, discutia e depois passávamos para os outros amigos da turma lerem e darem suas opiniões.
Termos feito isso durante quatro anos seguidos e não ter nenhum exemplar desses trecos é uma coisa que às vezes me tira do sério.
Os duendes devem ter guardado tudo dentro do pote de ouro que existe no final do arco-íris. É no que acredito.
Américo Madrugada, Salignac e Jorge Palheta no desfile da BICA
Quando o Palheta pegava alguns desses nossos gibis artesanais, ele apontava detalhes desenhados errados que a gente nem percebia.
É evidente que ele seria capaz de fazer gibis artesanais no mesmo nível dos gibis tradicionais.
Descobri, casualmente, que ele nunca havia tentado fazer uma HQ porque simplesmente não tinha argumentos.
Era incapaz de pensar uma história original, com diálogos, ambientação e tudo, e depois colocar no papel. Precisava do concurso de um roteirista.
Seu destino seria mesmo ser um brilhante artista plástico. Um dos melhores que conheci, por sinal.
Em dezembro daquele ano, durante a nossa conclusão do 4º ano primário, expliquei pra ele os meus planos futuros:
– Vou tentar o exame de admissão para o colégio Ida Nelson. Você devia fazer o mesmo para o colégio Márcio Nery. Se quiser, a gente pode estudar as matérias juntos lá em casa!
Palheta desconversou. Falou que iria fazer o quinto ano primário e depois estudaria o ginasial no colégio Ruy Araújo.
Foi nossa última conversa. Depois disso, cada qual montou em seu alazão e partiu em direção à linha do horizonte.
Só voltei a revê-lo 20 anos depois, no Bar do Armando, quando a gente (eu, Mário Adolfo e Jorge Estevão) estávamos lançando o jornal satírico Candiru.
Na época, eu já estava formado em engenharia eletrônica e cursava Administração e Direito na Universidade do Amazonas.
Jorge Palheta havia terminado o colegial e trabalhava como desenhista do Inpa, além de ser ilustrador oficial dos livros do professor Samuel Benchimol.
No início dos anos 90, ele passou a ser um freqüentador assíduo do Bar Ecológico, no D. Pedro II, onde costumava desenhar caricaturas dos presentes em troca de alguns trocados.
Praticamente a gente se encontrava todo sábado no boteco, para degustar a fabulosa feijoada servida pela Ana Domingues e saborear os sons que só o Álvaro Bandeira colocava pra tocar. Uma zoeira que só terminava por volta da meia noite.
Numa bela manhã de sábado, o ex-deputado federal Océlio Medeiros apareceu no boteco, acompanhado de sua filha Elizabeth, o que provocou um princípio de histeria coletiva entre os machos presentes no covil (Antonio Paulo Graça, Ricardo Maia, Dori Carvalho, Carlos Dias, Zemaria Pinto, Carlos Castro, Inácio Oliveira, Armando de Paula, Célio Cruz, etc), todos bastante interessados em obter favores sexuais da ninfeta.
Océlio me explicou que o pessoal da banda Wause! Wause! não tinha topado a parada e me indagou se eu conhecia outros grupos de rock.
Passei o telefone de contato das bandas punk que eu conhecia: Homicide, Jack Daniel’s, Skarecroy, Mentes Poluídas, Atecubanos (“Só na buceta”, de trás pra frente), Elemento Neutro, Lectos, Ciclo Norte, Insistência, Self Defense, Epidemia, Agony Stages e Anti-Corpos Sociais.
Já com Jorge Palheta, foi amor à primeira vista. Océlio ficou visivelmente impressionado com os desenhos do artista plástico e o contratou na mesma hora.
No dia 5 de setembro, durante a comemoração da elevação do Amazonas a categoria de Província, Océlio comandou uma apresentação teatral noturna do “Descobrimento da América”, no Teatro Chaminé, em que a caravela vinha singrando pelo rio Negro, entrava no igarapé de Educandos, e estacionava na frente do teatro – as águas estavam quase alcançando a pista da Manaus-Moderna.
O artista plástico Jorge Palheta, fantasiado de capelão, parecia o mais entusiasmado da turma.
Em novembro, a caravela partiu de Manaus em direção a Quito, com novos músicos a bordo.
Palheta, com seu talento de desenhista naturalista desenvolvido no Inpa, seria o responsável por documentar a viagem.
Fiquei sem notícias da expedição até o segundo semestre do ano seguinte.
Foi quando, em agosto de 1994, uma matéria publicada no jornal A Crítica, assinada pelo Serginho Bártholo (atual diretor de Redação do Diário do Amazonas), que estava cobrindo um comício do candidato a governador Amazonino Mendes, em Tabatinga, deixou o Bar do Armando em polvorosa: “Artista plástico amazonense é violentado por policiais equatorianos”.
Lendo a matéria, fiquei sabendo que Jorge Palheta e mais três membros da tripulação de Océlio Medeiros haviam sido espancados violentamente por policiais da Guarda Nacional do Equador e estavam presos em Tabatinga.
A manchete, entretanto, dava a entender outra coisa: que o artista plástico havia sido currado pelos meganhas.
Desafeto voluntário de Jorge Palheta, o compositor Américo Madrugada aproveitou a “barrigada” do jornal para criar alguns sambas demolidores sobre a masculinidade do meu homeboy.
Umas duas semanas depois, eu estava no Bar do Armando, numa tarde de sábado, conversando com o Engels Medeiros, quando toca o telefone do boteco.
Era uma ligação a cobrar do Jorge Palheta, querendo falar comigo.
Ele me contou rapidamente o que estava acontecendo: estava detido na Delegacia de Tabatinga e só poderia ser solto mediante o pagamento de uma fiança.
Estava liso, confiado e só com a roupa do corpo.
Me informou o número de uma conta bancária para onde eu deveria enviar a grana.
Pediu que eu avisasse a sua (dele) mãe, que não se preocupasse com ele porque estava tudo bem. Quase chorando, me implorou para ajudá-lo.
Depois que desliguei o telefone, expliquei a situação pros demais “biqueiros” presentes no boteco (Jomar Fernandes, Chicão Cruz, José Klein, José Anchieta, Rogelio Casado, Durango Duarte, Pedro Mário, Jorge Álvaro, Armando Loureiro, etc) que se prontificaram em colaborar.
Consegui levantar o dinheiro do pagamento da fiança e mais uma merreca suficiente para ele pegar um barco de linha, comprar roupas novas e não morrer de fome durante a viagem de volta.
Aí, na segunda-feira, depositei a grana na conta bancária por ele informada.
Uma semana depois, Jorge Palheta estava de volta a Manaus. Só então fui saber o que havia acontecido.
Segundo ele, a viagem correu bem até eles subirem o rio Napo, já depois de São Francisco de Quito, a capital equatoriana, em junho daquele ano.
De repente, a ninfeta Elizabeth começou a dar mole pro artista plástico e ele não perdoou: meteu-lhe o bico de urubu.
O colóquio amoroso estava indo de vento em popa, às escondidas, evidentemente, quando Océlio Medeiros o pegou, literalmente, com a boca na botija.
Discutem pra cá, discutem pra lá, o ex-deputado federal resolveu desembarcar o artista plástico em uma daquelas comunidades perdidas do rio Napo.
Houve um princípio de motim a bordo.
A caravela retornou pra Quito com aquele pesado clima de rebelião a bordo.
Assim que Océlio desembarcou na cidade, ele foi até a Chefatura de Polícia, deu uma “carteirada” e registrou uma queixa de tentativa de homicídio.
Uma meia dúzia de meganhas da Guarda Nacional foi até a caravela, encheram os “amotinados” de porrada, e eles foram enviados, algemados, para Tabatinga, onde Océlio Medeiros registrou uma nova queixa.
De lá mesmo, Océlio e Elizabeth pegaram um avião e se mandaram pra Belém.
A caravela fez a viagem de volta sem o seu capitão.
Os quatro tripulantes amotinados ficaram presos em Tabatinga, em regime semi aberto.
Eles podiam passar o dia zanzando pela cidade, mas tinham que dormir no xadrez até pagarem a fiança por supostos prejuízos patrimoniais causados à caravela.
Em agosto, durante o comício de Amazonino Mendes na cidade, Jorge Palheta localizou o jornalista Mário Adolfo no palanque, mas este não lhe deu a mínima.
Ele então resolveu contar seu drama ao jornalista Sergio Bártholo, que transformou o pedido de ajuda em uma pequena notícia sensacionalista.
Em pé: Saleh, Palheta, Armando Loureiro, Jomar Fernandes, Rogelio Casado, José Klein e Durango Duarte. Sentados: Pedro Mário, Jackson Chaves, Jorge Álvaro, eu, Dinari, Feitosa, Sandrinha e Badiba, no Bar Cinco Estrelas.
Jorge Palheta contabilizava um prejuízo alarmante.
Ele havia feito mais de 1.200 ilustrações em tinta guache e bico de pena, e não havia ganho um tostão pelo trabalho.
O acerto financeiro seria feito quando eles retornassem a Manaus.
Ou seja, ele havia trabalhado oito meses como um verdadeiro escravo, desenhando 12 horas por dia apenas em troca da péssima comida servida a bordo.
Pior. Além de ter ficado com todos os seus pertences, Océlio também havia confiscado uma pasta contendo cerca de 400 poemas que ele havia escrito durante a viagem.
Aquele seria o seu primeiro livro de poemas a ser publicado.
Palheta estava disposto a ir a Belém para estripar o abusado advogado.
Uns dois meses depois de seu retorno a Manaus, Palheta recebeu pelo correio a referida pasta com os poemas, acompanhada de um irônico bilhete de Océlio Medeiros: “Como você é um poeta de merda, estou devolvendo esses seus poemas de bunda!”.
Quando abriu a pasta, uma nova surpresa: Océlio tinha limpado a bunda com todos os 400 poemas. Eram rabiscos de merda pra tudo quanto é lado.
Diante daquela situação surrealista, Palheta fez a única coisa possível: queimou aquele monte de bosta seca no quintal de casa.
Seu ódio por Océlio Medeiros começou a crescer em progressão geométrica: ele agora não queria mais apenas estripá-lo, mas tirar seu couro e colocar pra secar no varal até se encher de moscas varejeiras.
O ex-deputado federal nunca mais colocou os pés na cidade.
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