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terça-feira, maio 10, 2011

Aula 99 do Curso Intensivo de Rock: Gil Scott-Heron


Num domingo chuvoso de junho de 2001, dois policiais disfarçados circulavam dentro de uma Van verde pelo norte de Manhattan quando avistaram um negro alto, malvestido e de cabelos grisalhos aproximar-se de um negro jovem e trocar algumas palavras e apertos de mãos.

Os tiras abordaram o coroa e, após intimidá-lo com perguntas, encontram em seu bolso 1,2 grama de cocaína. Foi o suficiente.

Tal como num desses filmes policiais, os oficiais leram os direitos e algemaram o preso, identificado como o cantor, poeta e ativista negro Gil Scott-Heron, autor da canção “The Revolution Will Not Be Televisioned”, sampleada, interpretada e citada por descontentes do mundo inteiro, inclusive pelo Planet Hemp em seu rap-manifesto “Baseado em fatos reais”.

Aos 53 anos, Scott-Heron, considerado um dos pais do hip hop, com seus 20 discos, já havia lançado três livros de poesia e dois romances.

Enquanto cumpria pena de 18 a 24 meses em uma clínica de reabilitação, seu livro de estréia, “Abutre”, foi lançado no Brasil pela editora Conrad.


Gil tinha apenas 21 anos quando a primeira edição do livro saiu, em 1970, e vários outros talentos: também escrevia poesia, ensaios e canções, tocava e compunha ao piano, e cantava de maneira cativante.

Uma espécie de Lado B do Flower Power, o romance “Abutre” foi saudado, na época, pela revista Essence, como “um início sólido de um escritor com coisas importantes a dizer”.

Situado entre as saborosas narrativas de gueto do escritor Chester Himes e os despistes do romance noir, em um ambiente marcado pela invasão das drogas, o livro prenunciava a estética pop e violenta da blaxploitation, o gênero negro que explodiu no cinema ao longo dos anos 70 e que mais tarde ficaria popular graças a filmes como “Superfly” e “Shaft”, combinando a exposição das mazelas do gueto e a emergência da comunidade negra como consumidora.

Em 1970, a luta pelos direitos nos Estados Unidos estava passando por uma mudança, dando vez às vozes dissonantes do Black Power.

O movimento dos direitos civis dos anos 60 perdeu impulso, rachado pelos diferentes grupos de pressão e, ao mesmo tempo, ignorado pelo governo, cada vez mais enrascado na guerra do Vietnam.

Líderes populares como Malcom X, Martin Luther King e Huey Newton tinham sido calados pela prisão ou assassinato.

A black music refletiu a mudança, ficando mais agressiva.

Coisas como “What’s Going On”, de Marvin Gaye, nem pareciam ser apenas do ano anterior.

Uma nova voz surgia no ataque, para jogar luz no crime e sacudir a apatia.


Era a voz de Gil Scott-Heron, articulada, descomprometida e enraivecida.

Em 1975, o cantor disse ao jornal “Village Voice”: “Nunca houve falta de inquietação na comunidade negra, só falta de direção”.

O ímpeto nas primeiras gravações de Gil era o de indicar essa direção, não em teoria, mas conhecendo os fatos, colocando as questões precisas e permanecendo fiel ao seu espírito.

Quase três décadas depois, a declaração de Gil não só se confirmava, mas apresentava contornos de ironia trágica.

Desde novembro de 2001, ele estava preso e permaneceria assim pelos próximos três anos.

A decisão da Suprema Corte de Nova York foi o ápice dos desacertos químicos do artista.

Nos anos 90, policiais o flagraram várias vezes portando cocaína e crack.

Quando foi preso de novo, em junho, ficou decidido que ele participaria de um longo programa de reabilitação.

Por não considerar a própria dependência, ele apelou da decisão e um novo julgamento foi marcado.

Dessa segunda vez, Scott-Heron não se apresentou à corte.

Quatro semanas depois, foi preso novamente, no Harlem, e sentenciado.

“Você teve todas as oportunidades para se ajudar, mas nunca mostrou interesse”, disse a juíza.

No site da editora escocesa Payback Press (especializada em literatura afro-americana e detentora dos direitos de publicação dos escritos de Scott-Heron), www. canongate.com/payback, o editor e amigo Jamie Byng desabafou: “Ele não é criminoso, e sim uma vítima de lunáticas e hipócritas leis que aumentam o dano que as drogas causam à sociedade”.

No entanto, a obra combativa e íntegra do artista é maior do que seu inferno pessoal.


Nascido em Chicago, em 1949, filho de uma acadêmica graduada magna cum laude em biblioteconomia e de um jogador de futebol de origem jamaicana, ele teve a dimensão do preconceito racial ainda na primeira infância – era uma das três únicas crianças negras na escola.

Com o divórcio dos pais, foi morar no Tennessee com a avó, por quem foi iniciado em blues e jazz.

Aos 13, foi viver com a mãe em Nova York, primeiro no bairro negro do Bronx e depois no bairro hispânico de Chelsea.

Em uma escola particular de Nova York, estudou a produção literária dos autores brancos.

E nas ruas e bibliotecas públicas, seguiu os passos dos expoentes do chamado Harlem Renaissance (período de grande efervescência da literatura afro-americana, no entre-guerras).

Sempre influenciado pelo poeta negro Langston Hughes, Gil increveu-se na Pennsylvania University, mas trancou a matrícula logo no primeiro ano para concluir sua primeira ficção, “Abutre”, e um livro de poesia, “Small Talk at 125th & Lenox”.

Alguns meses depois de lançar seu primeiro romance, Gil Scott-Heron, acompanhado por percussionistas, gravou alguns de seus poemas no disco “A New Black Poet: Small Talk at 125th & Lenox”.

No álbum estão os fundamentos do que mais tarde seria conhecido como rhythm and poetry, o rap.

Aos 21 anos, Scott-Heron sabia que os paradigmas da comunidade negra dos anos 60 “viveram rápido e morreram jovens”, para usar um slogan da época.

O ideário “paz e amor, bicho!” já não significava mais nada.

Adversários políticos, Martin Luther King e Malcolm X foram igualmente assassinados.

A milícia dos Black Panthers começava a ter as estruturas abaladas pela ofensiva do FBI.

E a cultura das drogas assumia tons bastante sombrios.


“Abutre” é o retrato desse vazio ideológico e um fascinante retrato falado da Nova York dos anos 60.

Tendo por ponto de partida a morte de um traficante, faz uma alegoria sem maniqueísmo do dilema do jovem negro metropolitano.

Seu segundo e último romance chamou-se “The Nigger Factory” (72) e se passa em um campus negro, inspirado na vida universitária que Gil retomou.

Esse segundo livro antecipa temáticas negras intelectualizadas e de classe média, como as que dariam forma, depois de 15 anos, ao cinema de Spike Lee.

Um ano antes, chegara às lojas o segundo álbum, “Pieces of Man”.

Dessa vez, a ladainha militante incorporava a linguagem do jazz, do soul e do blues.

O canto barítono melancólico e o piano dão o tom aos clássicos “The Revolution Will Not Be Televised” e “Lady Day and John Coltrane”.



Gil não se parecia com nada visto antes no pop, um artista negro consequente e politicamente articulado, rebelando-se com inteligência contra a hipocrisia e a crueldade social.

Crooner comovente e melancólico no balanço do jazz-soul, ou ativista vociferando sobre percussões secas, Gil criou um estilo novo e pessoal na música, como poderia ter criado na literatura.

Sem ser a citação direta e ingênua, ficava claro que ele era plenamente consciente da rica herança afro-americana e das suas possibilidades expressivas ilimitadas.

Gil estava para o soul como Miles Davis para o jazz.

A literatura nunca foi formalmente abandonada, mas o ritmo de sua carreira e o impacto imediato da música sobre as ruas se impuseram.

No encontro com o multiinstrumentista Brian Jackson, seu colega na Lincoln University, estabeleceu uma parceria inspirada e duradoura.

“Johannesburg”, uma canção sobre o apartheid bem longe do padrão radiofônico, virou hit.

O trabalho com Malcolm Cecil Taylor, produtor de Stevie Wonder, em 78, talvez seja seu momento de maior êxito comercial.

Malcolm suavizou a música, mas não as letras, atacassem elas o irã, a política nuclear ou o presidente Ray-Gun.

A Guerra Fria, a mídia americana e o panorama sociopolítico do Terceiro Mundo estavam na mira do letrista.

Gil excursionou com Stevie Wonder pelo mundo, á frente da Powerhouse Midnight Band.

A década seguinte não seria tão pródiga a partir do final da parceria com Brian Jackson, em 80, e da saída da gravadora Arista, em 85.

Ainda assim, ele continuou a excursionar com a Amnesia Express, lançou laguns álbuns de distribuição restrita e publicou novos livros de poesia.



Nos anos seguintes, sua música sobreviveu por meio dos netos.

Rappers sofisticados como KRS-One, A Tribe Called Quest e P.M. Dawn samplearam suas batidas e dizeres até que, em 94, ele ressurgiu em grande estilo, com “Spirits”, seu primeiro álbum de inéditas em 12 anos.

A faixa “Message To The Messagers” sugeria auto-reflexão à descerebrada geração gangsta.

Ele tocou no Woodstock’ 94, no Womad na Inglaterra, no Central Park de Nova York e gravou um Unplugged para a MTV.

Com os seus contemporâneos mais militantes dos Watts Prophets e dos Last Poets, foi definitivamente reconhecido como precursor do rap.

Em 1996, o editor escocês Jamie Byng, da Payback Press, especializada em literatura da subcultura black e afro-americana (com autores como o ex-gigolô Iceberg Slim e o ex-presidiário Chester Himes), decidiu que era hora de tirar os livros de Gil Scott-Heron da condição de raridades absolutas.

Pesquisando nas bibliotecas americanas, Byng descobriu que todas as cópias listadas tinham sido roubadas (!) e só conseguiu achar seu exemplar de “Abutre” em um sebo em Boston, a um exorbitante preço de colecionador.

Jamie Byng conseguiu ressuscitar o cantor e escritor.

No início de 2001, após um grande hiato pontuado por queixas de agressão pela ex-mulher e excessos variados, Gil Scott-Heron voltou a se apresentar ao vivo.

Apesar do semblante cadavérico, aparentava estar renascido e em direção contrária às armadilhas do gueto.

Parecia. Acabou passando três anos na cadeia. E, lá em cima, o abutre continua espreitando.


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