Muito antes de os judeus dissidentes da ex-União Soviética popularizarem
o termo, Henry David Thoreau foi o primeiro refusenik
(do verbo To refuse = recusar) do
mundo. Ele estava sempre recusando uma coisa ou outra. A saber:
Ele se recusou a pagar a taxa de cinco dólares para receber o diploma de
mestrado em Artes, na Universidade de Harvard. “Não vale cinco dólares”,
resmungou. “Deixem que cada ovelha fique com a sua própria pele”.
Ele se recusou a administrar castigos físicos às crianças que estavam
aos seus cuidados na Concord Academy. A direção da escola o despediu por
insubordinação, o que lhe custou uma das poucas oportunidades promissoras de
carreira da sua vida.
É célebre a sua recusa em pagar o imposto de votação de um dólar, em
1847, em protesto contra o envolvimento dos Estados Unidos na guerra mexicana.
Essa ofensa o levou para a cadeia, onde, conta a lenda, ele repeliu seu patrono
Ralph Waldo Emerson, que foi pagar a fiança para tirá-lo de lá. “Henry, por que
você está aqui?”, Emerson, segundo relatos, indagou. “Waldo, por que você não
está aqui?”, foi a réplica de Thoreau. Na manhã seguinte, Henry também já não
estava mais na prisão. Sua tia pagou o imposto, e ele saiu da cela bem a tempo de
pagar a festa huckleberry daquela tarde.
Thoreau recusou até mesmo o seu nome. Nascido David Henry Thoreau, ele
insistia para que todos o chamassem de Henry David. Sim, ele era um opositor
tão delicado quanto a tradição de opositores da literatura norte-americana
jamais produzira. Bartleby, o Escrevente, nada tinha que ver com David Henry –
ops, desculpe – Henry David.
Thoreau poderia ser tudo, menos inconsistente. Ele se ateve ao seu plano de vida, por mais peculiar que fosse até mesmo no excêntrico meio da Concord, Massachusetts, no século XIX. Entre as suas paixões pessoais estavam valer-se por si mesmo, comungar e digressivos relatos das suas experiências. Os amigos o consideravam uma pessoa estranha, mas cativante.
Ralph Waldo Emerson praticamente o sustentou durante toda a sua vida
adulta. Thoreau serviu como guarda-costas da esposa e dos filhos de Emerson,
como faz-tudo, e como uma espécie de “guia de diversões”, levando crianças em
expedições nas florestas, onde lhes
ensinava sobre a fauna e a flora locais e sobre o canto dos pássaros. Quando
estava realmente desesperado por dinheiro, voltava a trabalhar na próspera
fábrica de lápis do pai.
Os livros de Thoreau venderam desoladoramente pouco em seu tempo de
vida, porém a lenda local cresceu depois da sua morte por tuberculose, aos 44
anos. Com a possível exceção de “Moby Dick”, de Herman Mellvile, “Walden”, de
Thoreau, é o mais reverenciado livro que ninguém realmente chagou a ler. Por
outro lado, o seu grande ensaio “A Desobediência Civil” foi bastante lido, e
por algumas pessoas bem importantes. Gandhi, Leon Tolstói e Martin Luther King
Jr. citaram a obra como fonte de inspiração.
A vida de Thoreau teve vários altos e baixos. Ele nunca se casou, embora
tivesse tentado arduamente arrumar uma esposa. Seu adorado irmão John morreu de
tétano em 1841. Em abril de 1844, Thoreau e um amigo destruíram acidentalmente
mais de trezentos acres de florestas em Concord, quando a fogueira que
acenderam em um acampamento espalhou-se para fora de controle. Um péssimo
conselho financeiro de Emerson atirou Thoreau em um espiral de dívidas da qual
ele levou anos para se recuperar, o que danificou seriamente a amizade entre os
dois.
Ainda assim, Thoreau teve a vida que queria. Estava satisfeito em não ser o “líder dos engenheiros norte-americano”, que Emerson insistia para que ele fosse, preferindo, em vez disso, reinar como o “capitão das festas huckleberry”. É por essa teimosa determinação de ser o que era que Thoreau continua sendo admirado até os dias de hoje.
Batalha de manteiga
A desobediência civil parecia estar no sangue da família Thoreau. O seu
avô, Asa Dunbar, foi o líder da “Grande Rebelião da Manteiga” na Universidade
de Harvard, em 1766. Irritado com a qualidade da comida servida nos refeitórios
da universidade, Dunbar fez o que qualquer estudante que se respeitasse faria:
organizou uma revolta de alunos. “Vejam, a nossa manteiga cheira mal!”, ele
esbravejava. “Não podemos nos alimentar disso. Deem-nos, portanto, manteiga que
não tenha mau-cheiro!”.
Ora, é claro que a direção da Universidade não seguiu a lógica
inexorável de Dunbar. Citando-o com “o pecado da insubordinação”, suspenderam
metade dos alunos como castigo. A “Rebelião da Manteiga”, por mais grandiosa
que tenha sido, fracassou completamente. No entanto, pavimentou o caminho para
futuros protestos contra a comida em Harvard, incluindo a “Rebelião do Pão com
Manteiga” de 1805 e a “Rebelião do Repolho” em 1807.
Henry, o feio
De acordo com todas as indicações, Thoreau era bastante charmoso. Mas
seus encantos nada tinham que ver com a boa aparência ou com a higiene pessoal.
O dom-juan de Concord, na verdade, exibia uma figura decididamente desairosa.
Seu vizinho Nathaniel Hawthorne o descreveu como sendo “feio como o pecado,
narigudo, a boca torta, e com modos incultos e rústicos, embora corteses,
correspondendo perfeitamente com tal exterior”. De fato, Thoreau raramente
tomava banho ou se dava ao trabalho de pentear os cabelos desalinhados ou de
trocar as roupas esfarrapadas.
Também era famoso pelas péssimas maneiras à mesa – Oliver Wendell Holmes
queixava-se frequentemente de seu hábito de comer com as mãos. Ainda assim, as
pessoas pareciam dispostas a passar por cima dessas deficiências. “Sua feiúra é
um tipo honesto e agradável e o torna muito melhor do que a beleza”, Hawthorne
concluiu. Louisa May Alcott, que tinha uma “paixonite” por Thoreau, escreveu:
“Sob os defeitos, o olho do Mestre viu as linhas grandiosas que iriam servir de
modelo para o homem perfeito”.
Um “cogumelo” para chamar de
seu
Só porque Thoreau era um livre-pensador pelos padrões de seu tempo, não
significa que não fosse um tanto puritano. Certo dia, no outono de 1856,
enquanto caminhava pela floresta, ficou mortificado ao encontrar um grande
cogumelo com o formato de um pênis humano. “Poderia ser dividido em três
partes: píleo, haste e base – ou escroto –, pois é um falo perfeito”, ele
escreveu em seu diário. “Em todos os aspectos, é um objeto extremamente
revoltante e, no entanto, bastante sugestivo... Foi tão ofensivo aos olhos
quanto ao olfato, o píleo dissolvendo-se rapidamente e contaminando tudo o que
tocava com uma substância fétida, olivácea e semilíquida. Em uma ou duas horas
a planta espalhou seu cheiro por toda a casa, onde quer que fosse colocada, de
forma que não poderia ser suportada. Tive receio de dormir em meus aposentos
onde ela havia sido deixada até que este estivesse muito bem ventilado. Tinha o
odor de rato morto... Céus, o que a Natureza estava pensando quando fez algo
assim? Ela quase se rebaixou ao nível daqueles que são atraídos pelas partes
pudendas”.
Encalhes nos fundos
No que se referia à venda de livros, bem, digamos apenas que Thoreau não
era nenhum J.K. Rowling. Atualmente considerada um clássico menor, a sua obra
de ruptura “A Week On The Concord And Merrimack Rivers” vendeu tão pouco que as
crianças costumavam ir até a casa dele para dar uma espiada no “estranho
homem... que escrevera um livro do qual nenhum volume havia sido vendido”.
Isso era um exagero, mas nem tanto. Na verdade, o editor de Thoreau lhe
escreveu perguntando o que deveria fazer com todas as cópias não vendidas que se
empilhavam em seu escritório. Thoreau pegou todos os 706 volumes encalhados,
guardou-os em seu sótão e tentava vendê-los a qualquer um que passasse por sua
casa. “Agora possuo uma biblioteca de quase novecentos volumes”, confessou em
um determinado momento, “sendo que mais de setecentos, dentre estes, eu mesmo
escrevi.”
Pão “passado”
Se você gosta de pão de uvas passas, deve agradecer a Thoreau. Ele
inventou a receita durante uma fase em que assava pães na sua propriedade no
lago Walden. Diz-se que as senhoras de Concord ficaram admiradas com essa sua
inovação culinária.
Lapiseiro
Guarnecer massa de pão com uvas passas era brincadeira de criança,
comparado com as inovações de Thoreau no campo de fabricação de lápis. A
“lapiseira” – se é que existe tal palavra – estava no sangue de Thoreau.
Charles Dunbar, seu tio, havia fundado a fábrica da família em 1821, depois de
deparar com uma jazida de plumbagida, ou grafite, em Bristol, New Hampshire.
O pai de Thoreau, John, logo se uniu à firma e revolucionou de tal forma
a manufatura de lápis que a Sociedade Agrícola de Massachusetts o agraciou com
uma citação especial. Desde a juventude Henry David Thoreau afirmava que ele
também deixaria a sua marca no mundo dos lápis. Finalmente teve a sua chance em
1838.
Dedicando-se aos lápis em tempo integral, ele logo desenvolveu uma
fórmula aperfeiçoada de chumbo, cuja qualidade se igualava àquela fabricada na
Alemanha. Um novo moinho para o grafite foi outra das revolucionárias invenções
do jovem Thoreau. Se ao menos ele tivesse se dado ao trabalho de patentear
essas idéias, poderia ter se tornado um homem rico.
Repousando em seus louros, Thoreau jurou que nunca mais faria um lápis.
“Por que deveria?”, ele disse a amigos. “Não farei novamente o que já fiz uma
vez”. Porém, como um sedutor canto de sereia, a manufatura de lápis o atraiu de
volta; afogado em dívidas, ele retornou com renovado vigor em 1843. Ficou
completamente absorvido pelo seu trabalho, a até admitiu a Ralph Waldo Emerson
que havia sonhado com máquinas de lápis a noite inteira.
O trabalho árduo valeu a pena, pois Thoreau desenvolveu o que as
empresas de publicidade anunciaram como “um novo e superior lápis de desenho,
expressamente para artista e connaisseurs”. Esse lápis era mais rígido, mais
escuro e mais durável do que qualquer outro existente no mercado. Em pouco
tempo os professores de Arte de Boston insistiam para que os alunos não usassem
nenhum outro lápis que não fosse o de Thoreau. Somente a crescente concorrência,
em parte incitada pelas inovações de manufatura do próprio Thoreau, impediu que
a família dominasse a indústria de lápis nos Estados Unidos.
Henry David, o vermelho?
Em 1954, no auge da “Ameaça Vermelha”, os gentis individualistas de
Concord se transformaram em um improvável alvo da histeria anticomunista. O
Serviço de Informações dos Estados Unidos ordenou que todas as cópias de
“Walden” fossem removidas das embaixadas norte-americanas no mundo inteiro. O
livro, proclamavam, era “positivamente socialista”.
Nome aos bichos
Thoreau considerava-se um naturalista acima de tudo. Portanto,
provavelmente ficaria encantado ao saber que existe um inseto que recebeu o seu
nome. O entomologista A. A. Girault denominou uma espécie de vespa como Thoreauia em homenagem a ele.
Um comentário:
Viva Thoreau
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