Por Jefferson Peres
Em 1945, com a convocação de eleições para Presidente da
República e para a Assembléia Nacional Constituinte, a nação se reencontrou com
a democracia, após um longo jejum de quase oito anos. Logo se constituíram dois
grandes partidos, o Partido Social Democrata (PSD), congregando os políticos
egressos do Estado Novo e a União Democrática Nacional (UDN), aglutinando os
que se haviam oposto à ditadura. Além desses, surgiu ainda meia dúzia de
organizações de menor porte, das quais tinha alguma expressão o Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB), que reunia os getulistas mais fiéis.
As seções estaduais do PSD eram dirigidas pelo
ex-interventores, com sustentação principalmente nos remanescentes do
coronelismo no interior. A UND também,
mas com penetração bem maior na classe média urbana. Era assim em todo o
Brasil, e o Amazonas não fugiu a regra. O grande líder pessedista era Álvaro
Maia, que governara o Estado, com pequena interrupção, desde 1930 – uma figura
quase mitológica. À frente da UDN, Manoel Severiano Nunes, ex-auxiliar do
governador e compadre de Álvaro, com o qual se desentendera por motivos até
hoje não muito bem explicados.
A campanha se travou com ênfase nos candidatos a Presidente,
o brigadeiro Eduardo Gomes e o Marechal Dutra, com o candidato comunista, Yedo
Fiúza, concorrendo sem nenhuma chance. A campanha udenista empolgou a cidade,
com seus símbolos e seus slogans, como “o preço da liberdade é a eterna
vigilância” e “vote no brigadeiro, que é bonito e é solteiro”. Como se não
bastasse, era candidato pela UDN a uma das vagas no Senado, outro mito
estadual, Adriano Jorge. Tudo inútil. Não obstante a neutralidade do governo,
chefiado pelo Desembargador Stanislau Afonso, a máquina pessedista funcionou,
elegendo Álvaro Maia e Waldemar Pedrosa para o Senado e Leopoldo Péres, Cosme
Ferreira e Pereira da Silva para a Câmara Federal. As outras duas vagas de
deputados ficaram com Severiano Nunes, pela UDN, e Leopoldo Neves, pelo PTB.
Promulgada a Constituição, em 1946, no ano seguinte
realizavam-se as eleições para a Assembléia Constituinte estadual, para
Governador do Estado e para a terceira vaga de senador. A campanha, que se
desenrolou nos últimos meses de 46 e nos primeiros dias de 47, foi das mais
apaixonantes, pois o povo não escolhia o governador desde 1930, já que a
eleição de 1934 fora indireta, pela Assembléia. Os candidatos eram Ruy Araújo
ao governo e Cunha Melo ao Senado, pelo PSD.
Do outro lado, uma surpreendente aliança PTB-UDN lançava
Severiano Nunes para o Senado e Leopoldo Neves para o governo. O candidato
pessedista ao governo era conhecido pela sua integridade moral e franqueza.
Ex-chefe de Polícia e ex-secretário-geral do Estado, no exercício dessas
funções ganhara fama de não prometer nem tapear, dizendo não tranquilamente
quando lhe faziam pedidos que não podia ou não queria atender. Mas exatamente
essa virtude era apontada como defeito pelos seus adversários, que o acusavam
de tratar grosseiramente os que o procuravam.
Sem competidor, chamado carinhosamente de Pudico, também com
fama de homem probo, em pouco tempo conquistou enorme popularidade,
especialmente junto à população mais pobre. Para isso contribuiu a exploração
habilidosa da palavra “gentinha”, que teria sido empregada por um candidato do
PSD em relação ao povo humilde. Uma repetição da técnica utilizada um ano antes
contra o brigadeiro Eduardo Gomes, impopularizado pela palavra marmiteiro, que
em verdade nunca usou.
Além disso, o interventor federal, Syzeno Sarmento,
discretamente favorecia a máquina udenista no interior. Como se não bastasse,
os dois jornais de maior circulação na cidade, O Jornal e o Diário da Tarde,
desencadearam uma violenta e demolidora campanha contra a candidatura de Cunha
Melo. Deram-lhe o apelido de meteco, por ser pernambucano e estar há muitos
anos afastado do Amazonas, com ataques pessoais que não lhe poupavam a vida
privada, culminando com a publicação, às vésperas da eleição, de uma
fotomontagem em que aparecia vestido de Carmem Miranda. O resultado não poderia
ser outro senão, como aconteceu, a vitória de Pudico e Severiano.
A grande surpresa foi a Assembléia, para a qual foram
eleitos alguns chefes políticos do interior, intelectualmente limitados, mas
também um grupo bastante expressivo de estreantes do melhor quilate. Assim,
pela UDN, elegeram-se Abdul Sá Peixoto, Paulo Nery, Jaime Araújo e Gama e
Silva; pelo PSD, Arthur Virgílio Filho e Aderson Menezes; pelo PTB, Áureo
Mello, Plínio Coelho e Aristóphano Antony; e; como solitário representante do
PTN, Vicente de Mendonça Júnior.
Neófitos em política, alguns deles, porém, já tinham
experiência de lutas estudantis, com militância na Liga da Defesa Popular, um
movimento constituído por estudantes de Direito, sob a liderança de Arthur
Virgílio e de Paulo Nery, que já era professor de Faculdade. Surgido no final
do Estado Novo, o movimento foi tolerado pelo governo, que permitiu a
realização dos seus comícios, nas imediações do Relógio Municipal, mas veio a
ser reprimido na interventoria de Júlio Nery, desaparecendo a seguir, com o
início da campanha eleitoral.
Essa primeira legislatura foi marcada por dois
acontecimentos de ampla repercussão. O primeiro, conhecido como o caso da
mudança, surgiu quando a Assembléia, já transformada em Legislativa, com a
promulgação da Constituição estadual, mudou-se do prédio do Instituto de
Educação, onde se instalara a Constituinte, para os altos da Biblioteca
Pública, na Rua Barroso. A mudança foi efetuada pela Mesa Diretora e implicou
gastos vultosos. Quando se fez a prestação de contas e foi dado a conhecer o
montante das despesas, o assunto pegou fogo.
Arthur Virgílio, líder do PSD, fez a denúncia, num discurso
inflamado, ao qual a imprensa deu a maior divulgação, e a coisa ganhou as
proporções de um escândalo. O novo presidente da Assembléia era o coronel José
Negreiros Ferreira, homem de poucas letras, chefe político de Borba, com
grandes castanhais e seringais no rio Aripuanã, e fiel soldado da UDN. Mas,
diante da pressão, Negreiros decidiu constituir uma comissão de inquérito, que
tinha o udenista Gama e Silva como presidente e o próprio Arthur Virgílio, pessedista,
como relator.
Os trabalhos se desenrolaram durante semanas, dezenas de
depoimentos foram tomados, pilhas de documentos examinados, apurando-se os
fatos como a compra de um caríssimo aparelho de som, que nunca fora entregue, e
o não recolhimento do pequeno saldo constante da prestação de contas. O
aparelho não apareceu, mas o dinheiro foi trazido por um deputado, que o
guardara em casa alegando falta de segurança no prédio da Assembléia.
Terminado o inquérito, com relatório conclusivo, apontando
todas as irregularidades, Negreiros levou os autos para a casa e, depois de
alguns dias, exarou um longo despacho que, pelo seu inusitado, haveria de se
inscrever definitivamente em nossa história político-administrativa. Após uma
série de considerando, concluía com esta pérola: Considerando, finalmente, que
onde há saldo não há esbanjamento. E mandava arquivar o inquérito.
No outro dia Arthur Virgílio dava uma longa entrevista à
imprensa contra a decisão esdrúxula e terminava dizendo, em gozação: Quebraram
a espada do coronel!
Ao tomar conhecimento dessas declarações, o velho Negreiros
tirou um enorme facão que trazia à cintura e comentou: Este aqui ninguém
quebra!
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