Por Jefferson Peres
Outro acontecimento rumoroso foi a cisão do PTB e o
rompimento da ala dissidente com o governo de Leopoldo Neves. O núcleo
principal do PTB amazonense era constituído pela antiga Colméia, uma agremiação
literária informal que se reunia frequentemente na casa do velho Vivaldo Lima,
na Rua Rui Barbosa, ainda hoje de pé. Ali, Plínio, Áureo, Kideniro Teixeira e
alguns outros se encontravam, a pretexto de debater literatura, mas na verdade
para se deliciarem com a comida servida pelo anfitrião, que tinha uma das
melhores cozinheiras da cidade. Vivaldo, que se dava o luxo de colecionar cinco
diplomas de curso superior, tinha também veleidades literárias e gostava de se
cercar de intelectuais. Daí para a política foi um passo.
Com a redemocratização, fundaram o Partido Trabalhista no
Amazonas, sob a presidência de Vivaldo, e fizeram o governador, uma vez que
Pudico era filiado ao partido, pelo qual se elegera deputado à Assembleia
Nacional Constituinte, em 45. Ao tomar posse no governo, cedeu a vaga de
deputado federal para Vivaldo Lima, que era seu suplente. Plínio e Áureo,
deputados estaduais, em poucos meses se desentenderam com Pudico e passaram a
criticá-lo da tribuna da Assembleia. Como Vivaldo permaneceu fiel ao governo,
os dois junto com outros, criaram uma ala dissidente do PTB, extremamente aguerrida
em seus ataques a governo e à direção do partido.
Áureo, então, fazia um sucesso enorme com sua oratória
cascateante, em que as palavras saíam aos borbotões. As galerias ficavam cheias
de espectadores curiosos por ouvi-lo. Era também excelente articulista – ainda
está bem vivo, graças a Deus, mas não sei se conserva a antiga forma – e
escrevia como falava, batendo seus artigos quase sem fazer pausa. Combativo,
mas elegante, evitava os ataques pessoais, desde que não o provocassem. Então,
virava fera e sabia ser ferino e desagradável. Foi o que aconteceu.
Um dia, Pereira da Silva declarou ter ouvido Vivaldo Lima
chamar os dissidentes de patifes, que teriam cometido o pecado da ingratidão.
Foi o bastante. Áureo respondeu através da imprensa com um artigo virulento
desde o título: Patife és tu! Nesse mesmo dia, após a sessão da Assembleia,
Plínio e Áureo entraram no bar Avenida para tomar um refrigerante, quando foram
abordados por dois filhos de Vivaldo Lima em atitude hostil. Imediatamente,
Áureo sacou o revólver, Plínio ameaçou fazer o mesmo, mas antes que o bang-bang
começasse, houve a intervenção de terceiros, que afastaram os contendores, e o
incidente morreu ali. Pouco depois, com a morte de Vivaldo Lima, a ala
dissidente assumia a direção do partido, com Plínio na presidência.
Muitos encaravam a política como uma guerra, dura, mas leal,
com seu próprio código de honra. Outros já iniciavam a vida pública com todos
os vícios dos mais velhos, e alguns se desiludiam muito cedo. Foi o que ocorreu
com o poeta Kideniro Teixeira, candidato do PTB, que ingenuamente confiou na
lealdade de um amigo e concorrente, já falecido, mas cujo nome prefiro omitir.
Naquele tempo ainda não havia cédula oficial. As chapas, como eram chamadas,
uma para cada cargo, eram impressas e distribuídas pelos próprios candidatos ou
seus cabos eleitorais.
Isto, como é evidente, favorecia em muito o voto de
cabresto, porque o eleitor analfabeto, ou quase, recebia dos aliciadores um
envelope com um conjunto de chapas que nem examinava. Na cabine indevassável,
apenas transferia as chapas para o envelope rubricado pelos mesários, que a
seguir depositava na urna, sem saber em quem estava votando. Além disso, o
eleitorado era pequeno. Dependendo da legenda, era possível eleger-se deputado
estadual com menos de mil votos.
Pois bem, o candidato de quem estou falando conseguiu, com a
ajuda de amigos, arrebanhar cerca de duzentos eleitores da Terra Nova e do
Careiro, que deveriam votar aqui. Mas tinha o problema do alojamento, já que os
eleitores teriam de ser trazidos na véspera da eleição, pernoitando em Manaus,
para serem levados no dia seguinte às seções eleitorais. Kideniro estava aflito
porque esses votos, somados aos que contava como certos na capital, e mais
alguns pingados no interior, seriam suficientes para elegê-lo. Ao narrar o seu
problema para um dileto amigo, também candidato, mas pela legenda da UDN, ouviu
do confidente palavras de solidariedade e uma oferta generosa.
Sem pedir nada em troca, comprometia-se a conseguir com a
diretoria do Clube Amazonense de Regatas, da qual fazia parte, a cessão da sua
garagem náutica, no começo da Avenida Joaquim Nabuco. E realmente, horas
depois, informava que a autorização fora concedida. Escusado dizer que o nosso
candidato ficou radiante e se desfez em agradecimentos.
Na véspera do pleito,
pegou uma lancha e passou o dia recolhendo eleitores, que despejou à tardinha
no local cedido e foi dormir, cansado mais feliz, sonhando com a deputação.
Acordou bem cedo e dirigiu-se, cerca de 7 horas, à garagem para verificar, com
surpresa e raiva que estava deserta. O seu generoso amigo passara mais cedo
ainda e levara todos. Ao término da apuração, o nosso candidato estava
derrotado por menos de cem votos. Desgostoso, renunciou à vida pública. Quanto
ao espertalhão, elegeu-se e continuou deputado por várias legislaturas.
Com a redemocratização do país, em 1945, o Partido Comunista
Brasileiro (PCB) obteve sua legalização após um longo período de
clandestinidade. E emergiu montado na crista de uma onda de popularidade sem
precedentes. Dois motivos contribuíram para a elevação do prestígio do PCB.
Primeiro, a vitória da União Soviética sobre a Alemanha Nazista na Segunda
Guerra Mundial recém-terminada; segundo, a figura mítica de Luiz Carlos
Prestes, ungida de heroísmo por sua participação na legendária Coluna que
recebeu seu nome, e aureolada de martírio por sua longa permanência nos
cárceres do Estado Novo.
Para a Constituinte de 46 o partido elegeu uma expressiva
representação, Prestes à frente, como senador pelo Distrito Federal, e uma bancada
de 17 deputados, entre os quais Jorge Amado, Pedro Pomar, João Amazonas, Carlos
Marighella e Maurício Grabois, os dois últimos mortos pela repressão na década
de 70. No Amazonas não conseguiu eleger um único representante, apesar da
vibrante campanha liderada por Ivan Ribeiro, filho de Ribeiro Júnior, candidato
à Câmara Federal.
Seu dirigente maior era o jornalista Aldo Moraes, também
diretor do jornal oficioso do Partido, “A Luta”, na verdade um boletim
semanário mimeografado. Eram filiadas, também, expressivas figuras da
comunidade, tais como advogados, médicos, professores e intelectuais, tudo
indicando que o Partido cresceria ainda mais, apesar do fracasso nas urnas. Mas
logo sobreveio a decisão da Justiça Eleitoral que o jogou na ilegalidade, seguida
da cassação dos mandatos dos seus parlamentares.
A partir daí o PCB continuou
vivo como organização ilegal, mas seus quadros começaram a minguar. Aqui, sua
direção ficou reduzida a uma dúzia de pessoas, entre as quais, Francisco Alves
dos Santos, Letício de Campos Dantas, Gualter Aguiar, Belarmino Marreiro e meu
tio Geraldo Campello. Além das reuniões sigilosas, realizadas em diferentes
locais, costumavam encontrar-se na barbearia de Belarmino, na Rua Joaquim
Sarmento, onde ficavam horas discutindo política e doutrinando fregueses.
Devido à minha participação na “Campanha do Petróleo é
Nosso”, eu era tido como um “simpatizante”. Por isso um dia a direção do PCB
enviou dois emissários à minha casa para me convidarem a disputar a vereança
pelo Partido Social Progressista (PSP). Sem experiência, nem dinheiro, ainda
assim anuí ao convite, esperançoso de que o apoio do partido fosse suficiente
para me eleger. Ganhei apenas uma segunda suplência e a disposição de nunca
mais me candidatar a coisa nenhuma.
Nos pleitos seguintes, o PCB continuou em
suas tentativas de eleger representantes em pleitos locais, até que finalmente
conseguiu colocar na Câmara Municipal o vereador Manoel Rodrigues, cassado e
preso em 64. Seus dirigentes mais conhecidos, porém, jamais se candidatavam,
apenas trabalhavam, com a mais completa desambição, em favor do partido.
Neste particular, creio que Geraldo Campello é uma figura
exemplar de idealista inteiramente devotado à sua causa. Demitido injustamente
do Banco da Borracha (hoje, Banco da Amazônia) após um movimento grevista,
ficou marcado e não mais conseguiu emprego em parte alguma. Passou, então, a
trabalhar para o partido em tempo integral e dedicação exclusiva, sobrevivendo
franciscanamente graças a pequenas comissões recebidas pela venda de jornais
como Imprensa Popular e Voz Operária, revistas como Problemas da Paz e do
Socialismo e livros como a História do Partido Comunista (bolchevique) da URSS.
Suas únicas atividades de lazer consistiam em assistir, esporadicamente, a brigas
de galos e partidas de futebol, aos domingos. Os outros dias da semana eram
dedicados ao PCB, de manhã, de tarde e de noite. Sempre em companhia de Maria
Pucu, primeiro como namorada, depois como esposa. Jamais os vi em colóquio
amoroso ou em discussão sobre assuntos domésticos. Os problemas ideológicos e
partidários monopolizavam suas conversas. O partido parecia ocupar todos os
seus espaços mentais e temporais.
Por mais de uma vez teve sua casa vasculhada por forças
policiais e militares, com apreensões de seus livros jamais devolvidos. Durante
o governo Dutra, quando o PCB sofreu dura perseguição, esteve foragido por
várias semanas, até ser descoberto escondido num cômodo da Pensão Maranhense,
pertencente a D. Verônica, sua amiga de longos anos.
Preso, foi recolhido à
Penitenciária, onde ficou mais de um mês. Ao eclodir o movimento de 64,
novamente se evadiu, reaparecendo um ano depois para responder a um IPM, junto
com a mulher, em liberdade, mas em permanente sobressalto. Não obstante essas
provações, nunca vislumbrei, em qualquer dos dois, sinais de fraqueza ou de
arrependimento. Mesmo na velhice, afastados da militância pela idade, e já sem
o entusiasmo de antes, continuaram sonhando com um mundo comunista.
No Amazonas, somente Thomás Antônio Meirelles Neto, por
sinal primo de Maria, deu mais à causa do que eles, já que sacrificou a própria
vida. Thomasinho, como lhe chamávamos, era nosso companheiro da República do
Pina e ativista desde os bancos escolares. Anos mais tarde, no Rio de Janeiro,
após a edição do AI-5, mergulhou na luta clandestina e nunca mais foi visto,
morto em circunstâncias ignoradas, pelas forças da repressão.
Hoje é o nome de
uma rua no subúrbio de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
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