A poetisa Astrid
Cabral, uma das musas eternas do saudoso senador
Por Jefferson Peres
Mas houve outras, também, que não consigo esquecer. Dentre
elas, Flacy Mesquita, a suave Flacy, que nos enternecia com seu ar triste e os
traços delicados a lembrar aquelas madonas de Boticelli. Morava com sua mãe,
viúva, D. Flamícia, ainda bonitona, sua irmã Flacínia e um irmão caçula, na
casa da Sete de Setembro, perto do Polytheama, onde residira Waldemar Pedrosa.
Não sei se a sua tristeza resultara da morte do pai,
ocorrida num acidente automobilístico em Roraima (então Território Federal do
Rio Branco). Nunca tive oportunidade de lhe perguntar. Nesse tempo eu fazia
parte de uma turma numerosa de rapazes que circulavam na Avenida Getúlio
Vargas, entre os bares Moderno e Normal, nos quais fazíamos ponto, em torno de
mesinhas nas calçadas, ou espalhados pelos bancos e no bebedouro de ferro (que
fim terá levado?) que ficavam nos canteiros centrais, ou ainda, encostados nas
grades da calçada do ginásio. Entre as garotas que frequentavam o local
diariamente, lembro-me de Luiza e Lourdes Antony, filhas de Aristóphano, que
moravam nos altos do Moderno, onde hoje funciona um cinema; de Maria Luiza
Seixas, irmã do Mário, nosso colega; e de Flacínia, também assídua
frequentadora.
Flacy, porém, mais velha, nunca se aproximou de nós, e
apenas a contemplávamos, de longe, postadas à janela, ou de passagem, em suas
idas e vindas. Eram muitos os que a amavam, com ternura, mesmo sabendo-a
inacessível. Mas havia um, mais do que todos, obcecado por ela. Era Munir
Mamede, irmão do nosso amigo fraterno Adel. Recém-chegado do Líbano, ainda
brabo, mal falando o português, Munir era o alvo predileto das gozações da
turma, que um dia resolveu fazer com ele uma brincadeira semelhante à que
vitimara Adaucto Sampaio.
À revelia de Adel, forjaram um bilhete em nome de Flacy,
dirigido ao turco, marcando um encontro para a sessão do Polytheama de domingo
à noite. Era uma sessão habitualmente frequentada pela chamada alta sociedade,
uma plateia bem vestida e educada. Nesse ambiente a abordagem de Munir era um
espetáculo imperdível. E não perdi.
Junto com os outros, debruçado na balaustrada de uma frisa,
vimos o árabe se aproximar de Flacy, sentar-se num poltrona vaga ao lado e
puxar conversa. Nunca mais vou esquecer os olhos espantados da moça e a
curiosidade dos circunstantes, até que Munir exibisse o malfado bilhete,
permitindo que tudo de esclarecesse. Mas não aguardamos o final, pois Munir, ao
contrário de Adaucto, era um miúra, de força e de gênio. Se pegasse os autores,
naquela hora, seria capaz de uma violência. E como todos éramos suspeitos, a
debandada foi geral.
Não sei se Flacy veio a conhecer a identidade dos autores da
molecagem. Ela continuou distante de nós e um dia casou-se e se retirou de
Manaus. Nunca mais a vi e, anos mais tarde, recebi a notícia da sua morte
prematura. Doeu-me fundo, talvez por ver perdida para sempre a chance de
conhecer de perto alguém que, mesmo a distância, representara tanto para mim.
Gláucia Albuquerque era outra, cuja contemplação nos
embevecia. Também quase minha vizinha na Rua Dr. Moreira, onde morava com os
pais, bem perto de Maria Amália, é cunhada de Belmiro Vianez, que se casou com
uma de suas irmãs. Estatura mediana, corpo escultural, rosto bonito, no qual se
sobressaíam os lábios rubros e carnoso, impossível esquecê-la.
Dela guardo, em particular, a lembrança de um domingo de
sol, no Parque 10 de Novembro, que frequentava habitualmente. Parecia uma chama
viva, com seu maiô vermelho inteiriço. De repente, ao fazer um movimento mais
brusco, rasgou-se a parte superior do maiô e ela institivamente se protegeu com
os braços cruzados sobre o busto, até que alguém a cobrisse com uma toalha de
banho. Foi uma cena banal, sem consequências, pois nem sequer consegui
vislumbrar-lhe os seios nus. Mas me ficou, marcada para sempre. Um dia, Gláucia
também se foi para o Rio de Janeiro e não mais voltei a vê-la.
Era de longe também que acompanhávamos, enlevados, o
deslizar tranquilo de Izete Souza Lima, irmã de Douglas, em direção à sua casa,
na esquina da Sete se Setembro com Jonathas Pedrosa. Era igualmente uma das
nossas unanimidades. Todos a amavam sem que ela jamais suspeitasse. Recordo
como hoje o dia, ao entardecer, em que o céu se pintou de várias gradações de
vermelho, como um incêndio cósmico, enquanto Izete atravessa o largo entre a Praça
da Polícia e a calçada do Guarany.
Solitária como sempre, vestindo tomara-que-caia branco, que
as luzes banhavam de róseo, parecia etérea, indiferente ao grupo de garotos e
rapazes que, em torno das mesas do Normal, hauriam aquele instante de beleza.
Muito lamentei não ser pintor ou fotógrafo para captar a cena inesquecível. Não
sei aonde os caminhos do mundo conduziram Izete, de quem não mais ouvi falar.
Três Ruths não podem deixar de ser lembradas. Uma Ruth
Castro, sobrinha do médico Flávio de Castro. Morena clara, alta, cabelos
escuros penteados para cima, parecia uma andaluza. Morava com seu tio, no
casarão que ainda existe, na Rua José Clemente, onde morou Eduardo Ribeiro. A
casa solarenga se compunha perfeitamente com sua figura de porte aristocrático.
Vi-a poucas vezes, mas o suficiente para me deixar uma forte impressão. Cedo
ela saiu de Manaus e nunca mais o encontrei.
Outra Ruth, a Jobim, conheci mais de perto. Era filha do
Desembargador Manuel Anísio Jobim, com quem morava, numa casa hoje reformada,
na Praça da Saudade. Amiga de infância de uma das minhas tias, às vezes passava
aos domingos em casa de minha avó materna, na Huascar de Figueiredo, onde vivi
boa parte da minha infância. Ainda garoto, olhava com admiração aquela moça
cheia de charme e graça, a exibir duas fileiras de dentes perfeitos. Embora
tenha fixado residência no Rio de Janeiro, veio algumas vezes a Manaus. E, com
satisfação pude constatar, pouco antes de sua morte, que a mulher de meia-idade
ainda conservava o bonito sorriso de outrora.
Uma terceira Ruth, de sobrenome Monassa, era a rainha da
Vila Municipal, um bairro cheio de sortilégios, com sua profusão de verde e
suas ruas pejadas de sombra e silêncio. Residia na velha casa da Rua Fortaleza,
ainda de pé, rodeada de frondosas mangueiras e de jaqueiras centenárias. Morena
jambo exuberante e coquete, mal suspeitava ela que muitos dos rapazes que iam
disputar peladas no campo batizado com o nome de sua mãe, usavam o jogo como
pretexto para se deliciarem com a visão do seu vulto gracioso na varanda do
casarão. Hoje, passados tantos anos, apesar da amizade que me ligava a D.
Maria, sua mãe que chegou lúcida aos seus gloriosos noventa anos, e morreu
centenária, só uma vez pude encontra-la nas suas rápidas passagens por Manaus, vinda
do Rio de Janeiro, onde fixou residência.
Não demorou muito tempo e aquela menina, que eu vira,
criança ainda, com a farda do Grupo, surgia agora como esplêndida adolescente
uniformizada de normalista. De baixa estatura, mais gorda do que magra, seu forte
era o rosto, expressivo, harmonioso, uma cútis de porcelana rósea, onde se
engastavam os olhos escuros e brilhantes, e iluminados por um belo sorriso de
Ingrid Bergman. Aos encantos físicos se juntava a magia do nome de princesa
nórdica: Astrid. Embora o sobrenome fosse bem lusitano: Garcia Cabral.
Em verdade, pertencia à boa estirpe cabocla, pois era neta
de Antônio Teles de Souza, professor e diretor, por muitos anos, do Ginásio
Pedro II. Orfã de pai, morava em companhia da mãe e do avô, casado em segundas
núpcias com D. Eunice Serrano, num velho casarão no centro de um amplo terreno
da Av. Sete de Setembro em frente ao Palácio Rio Negro. Como confessaria mais
tarde, costumava sentar-se no banco do jardim bem cuidado para ouvir o avô
falar das estrelas distantes, enquanto ela se interessava pelas flores bem mais
próximas.
Muitas noites deixei o Café do Pina mais cedo, para me
postar na segunda ponte, com alguns amigos, a pretexto de ouvir as músicas que
saíam dos alto-falantes do Cine Éden. O motivo real, no entanto, era assistir
ao “footing” da bela Astrid, que, de braços dados com amigas, ficava passeando
de sua casa até a esquina da Jonathas Pedrosa. Encostados ao balaústre,
jogávamos gracejos que eram respondidos com olhares cúmplices e risos de aceitação.
Mas, sempre fiquei inibido com a presença de tantas testemunhas. Fora dali,
numa certa manhã em que ela regressava sozinha do Instituto de Educação,
enchi-me de coragem e abordei-a.
Marcamos encontro para o mesmo dia, à tarde, quando
mantivemos uma longa conversa, durante a qual Astrid me confessou que rompera
pouco antes com o seu primeiro namorado e não estava em condições de iniciar
novo “affair” enquanto não curasse aquela “chagrin d’amour”. No decorrer da
conversa perguntei: “Mas você não pretende ficar celibatária, não é?”
Visivelmente embaraçada, ela respondeu que não. E só muito depois vim a saber
que ao regressar a casa, naquele dia, Astrid correu ao dicionário para saber o
significado de celibatária, que ignorava, daí a razão do embaraço. Ficamos
amigos, mas antes que a ferida cicatrizasse, Astrid se foi. Como ela mesma
disse, seu “lado pássaro” prevaleceu sobre o “lado árvore”, levando-a a bater
asas para o Rio de Janeiro.
Voltei a vê-la trinta e dois anos depois, aqui em Manaus,
por ocasião do lançamento do seu livro de poemas Visgo da Terra. Fui a esse
reencontro emocionado e apreensivo, com receio de que os anos lhe tivesse
deixado sua marca devastadora. Mas verifiquei, surpreso e feliz, que o tempo,
generoso, a preservara. Conservava a mesma silhueta de adolescente, até mais
delgada. E o belo rosto quase não mudara, como se um milagre me fizesse
ressurgir a menina de três décadas atrás. E para maior alegria minha, pude
constatar, com a leitura do seu livro, que se realizava plenamente sua vocação
literária manifestada desde muito cedo. Seus poemas maduros demonstram que
Astrid já adquiriu o completo domínio de sua arte. Neles, entre irônica e
nostálgica, numa linguagem de grande densidade poética, ela fala da Manaus de
sua infância. E com tamanha força telúrica que nos faz sentir quão vivo
permanece o seu “lado árvore”, de raízes fincadas profundas na terra-mãe.
Um dia, ela surgiu em Manaus, vinda do Rio de Janeiro, onde
estudava. Pertencente a família tradicional da terra, filha de Análio de
Rezende, advogado de renome e emérito professor de Direito, Elza fez sucesso
imediato. Exuberante de formas, cintura fina, quadris largos e pernas grossas,
seu corpo se enquadrava nos padrões estéticos da época. Rosto bonito, de traços
finos e um ar esnobe, acentuado ainda mais pelo uso de “lorgnon”, que assestava
nos olhos míopes com um charme irresistível.
Muitas tarde a vi desfilar nos canteiros centrais na Av.
Getúlio Vargas, em companhia do namorado, que eram seguidos pelos olhares
invejosos da rapaziada do Bar Moderno. Mas Elza parecia não tomar conhecimento
do que se passava em torno, com uma expressão orgulhosa que apenas disfarçava
sua invencível timidez. Muito mais tarde, quando passei a desfrutar de sua
amizade, nela descobri uma mulher sensível, inteligente e espirituosa, dotada
de um rico senso de humor.
Elza despertava também paixões vulcânicas de admiradores que
passavam muitas vezes na Rua José Paranaguá, esperançosos de vê-la assomar à
janela do belo palacete da família no qual residia. Um desses empedernidos era
o poeta Áureo Mello, que conseguiu uma apresentação e, certa noite, decidiu
fazer-lhe uma visita que terminou de forma desastrada.
Sentado numa cadeira de balanço, Áureo procurava
impressioná-la com a declamação de um de seus poemas. Mas, empolgado, foi
deslizando para a ponta do assento, até que finalmente se estatelou no assoalho
de madeira, num estrondo seguido da gargalhada que Elza não pode controlar.
Depois dessa, não prosperou a corte do poeta, até porque, meses depois, ela se
casaria com seu primeiro marido, deixando “viúvos” dezenas de consternados
pretendentes.
Várias outras mereceriam referência, como Teresa Santoro
Andrade, Maria Helena Cunha e Enila Montezuma. Mas este capítulo já se alonga
demais e devo encerrá-lo. Não sem antes manifestar meu pesar por haverem todas
essas belas mulheres, sem exceção, por estranha coincidência, deixado Manaus,
algumas para uma viagem sem retorno.
Muitas, provavelmente, não voltarei a ver
jamais. Só me resta, como consolo, dizer como Marcel Proust que sua beleza mais real esteve porventura
em meu desejo. Elas viveram suas vidas, mas talvez só eu as sonhe.
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