Por Jefferson Peres
Em 1950 tinha início uma nova década e, também, a construção
de um barzinho, sem nada de especial, mas que iria marcá-la profundamente. O
local era um canteiro triangular, em frente ao Guarany, onde havia um antigo
chafariz desativado e dois postes de sustentação da tela na qual se projetavam
filmes ao ar livre.
Ao se erguerem os tapumes, correu o boato de que seria
construído um posto de gasolina. A novidade não agradou os ginasianos, que
ensaiaram um movimento de protesto e ameaçaram depredar a construção.
Pressionado, o então prefeito Chaves Ribeiro aconselhou o proprietário a acelerar
as obras, a fim de criar o fato consumado. Diante disso, foi abandonado o
projeto original, de forma circular, por outro mais feio, retangular, que pôde
ser construído em tempo recorde.
O êxito do bar foi imediato e se deveu a uma conjugação de
fatores. Em primeiro lugar, sua localização, nas vizinhanças de dois cinemas,
três colégios, um quartel, e mais, da então concorridíssima Praça da Polícia;
segundo, a excelência do seu café, talvez o melhor da cidade; e, finalmente, a
simpatia do proprietário, o português José de Brito Pina, extrovertido e
conversador, que em pouco tempo chamava cada um dos frequentadores pelo nome.
Batizado oficialmente de Pavilhão S. Jorge, o barzinho era
conhecido popularmente por Café do Pina e, mais tarde, República Livre do Pina,
por constituir um microcosmo onde se reunia o que havia de mais representativo
na cidade, para discutir livremente a respeito de tudo. Eram intelectuais,
políticos, jornalistas, boêmios e estudantes que faziam dali o seu ponto de
encontro diário. Muitos, como eu, compareciam duas vezes, ao fim da tarde e à
noite. Mas havia quem desse três expedientes, como Sebastião Norões.
O Pina era a nossa cachaça ou entorpecentes. Se não
tomássemos a dose diária, ficávamos inquietos e com uma sensação de vazio. Era
lá que nos supríamos de informações, pois a toda hora estava chegando alguém
com as últimas. As rodas se formavam em função dos assuntos predominantes.
Havia a dos intelectuais, que conversavam principalmente sobre literatura e
arte; a dos interessados em política, que a discutiam em nível local, nacional
e internacional; a dos desportistas, cuja conversa se limitava praticamente a
futebol; e dos versáteis, que falavam a respeito de tudo.
Mas nenhuma era estanque. Todos se conheciam e as pessoas
ficavam circulando de um grupo a outro. Além dos habitués, que eram dezenas,
muitos outros costumavam passar por lá de vez em quando. Se alguém desejava
saber o que estava ocorrendo na cidade, no Brasil e no mundo, bastava dar um
pulo até a República, para ficar perfeitamente atualizado. Curioso é que esse
encontro diário de tantas pessoas, com pontos de vista diferentes e até
antagônicos, gerasse discussões calorosas, mas sem nenhuma animosidade. Esse
clima cordial e ameno jamais foi quebrado.
Mas houve um incidente entre dois poetas que merece ser
contado. Um dos “habitués” do Pina se chamava Alberto Amorim, ou melhor,
Alberto Urubatão Israel Barbosa de Amorim, mais conhecido por “ Boi Morto”, um
apelido de origem desconhecida, talvez ignorada pelo próprio Alberto. Era uma
figura estimadíssima, de permanente bom humor, que não se abalava nem quando
lhe chamavam o apelido nem quando gozavam o seu discutível talento poético,
manifestado na forma de superados sonetos parnasianos estampados na imprensa
local.
Sem emprego fixo, militou na imprensa como repórter em quase
todos os jornais da cidade. Vivia “liso”, a filar cigarros e cafezinhos dos
amigos. Sua principal vítima era Moacyr Villela, amigo inseparável que o
socorria nos momentos de maior aperto. Fisicamente, chamava logo a atenção.
Estrábico, com óculos de grossas lentes, barrigudo, pé de papagaio, andar
desengonçado, tornava-se ainda mais cômico quando soltava risadas sacudindo o
corpo todo e pondo à mostra a dentadura bastante desfalcada. Nem por isso perdia
a mania de galã. Vivia assediando as mulheres bonitas da cidade, solteiras,
casadas e viúvas, através de longas conversas telefônicas.
Às vezes, as mulheres cediam às cantadas e marcavam
encontros que terminavam sempre de maneira frustrante, quando elas, ao verem a
figura pela primeira vez, mal disfarçavam a decepção e nunca mais voltavam a
procura-lo. Mas ele não se dava por achado e insistia em alardear para os
amigos histórias de conquistas imaginárias que ninguém levava a sério. Incapaz
de atos violentos, algumas vezes, no entanto, se atritou com pessoas atingidas
por sua língua solta e seus gestos irrefletidos.
O mais rumoroso desses incidentes envolveu o poeta Luiz
Bacellar. Este obtivera, pouco antes, o primeiro lugar num concurso nacional de
poesia promovido pela revista A Cigarra, com o “Soneto a Charles Chaplin”, uma
pequena obra-prima digna de figurar em qualquer antologia. Boi Morto, então,
comentou numa roda que Bacellar teria cometido plágio, sem revelar quem teria
disso o poeta plagiado. Nem poderia, porque a acusação era injusta e descabida.
Quando Bacellar soube, ficou uma fera, como era natural.
Mas, impossibilitado de aplicar um corretivo no outro, dada a desproporção
física entre ambos, partiu para outro tipo de vingança. No dia seguinte
publicou em O Jornal um soneto intitulado “Boi Morto” que iniciava com o
seguinte quarteto: “É morto o boi, o mais cornudo boi / De toda a vacaria, e
tal mau cheiro / Se evola da carcaça que o terreiro / Se empesta tanto que o
fedor já dói.”
Grande foi a repercussão do poema, mas o alvo nesse dia não
foi encontrado, para as chacotas inevitáveis. Enfurnado em casa, de lá mesmo
telefonou para Bacellar marcando um encontro na Praça da Polícia à meia-noite.
Temeroso, mas cheio de brio, o poeta, que sempre foi um notívago inveterado,
aceitou o convite e, à hora combinada, plantou-se no local, à espera do
antagonista.
Logo depois apareceu Alberto, que foi direto ao assunto. Com
um recorte de jornal na mão, dirigiu-se a Bacellar, dizendo: “Está aqui o seu
poema. Agora você vai engolir”. Ao que o poeta replicou: “Não engulo coisa
nenhuma”. Ante a negativa, Alberto sacou de um revólver e apontou-o para o
rosto de Bacellar, a um palmo de distância, gritando: “Você vai engolir, sim”.
O confronto era desigual, pois o poeta, além de desarmado, tinha compleição
franzina e nunca se envolvera numa luta física em toda a sua vida. Mas
aconteceu o inesperado. Sob o impulso do medo, num reflexo de que ninguém o
julgaria capaz, Bacellar, num gesto felino, arrebatou a arma da mão do
adversário e atirou-a ao tanque próximo.
A seguir, preparou-se para enfrentar a arremetida do outro.
Mas, para sua grande surpresa, Alberto, em vez de reagir com fúria, levou as
mãos à cabeça e exclamou: “Não faça isso, que o revólver é emprestado!”. A
seguir, pulou para dentro do tanque, onde ficou à procura da arma, em plena
madrugada, com água pelos joelhos. Não voltaram a se hostilizar, mas também
nunca mais se falaram. Alberto morreu, muitos anos depois, em Curitiba,
certamente sem guardar, em seu espírito generoso, rancor algum de Bacellar.
Impossível enumerar todos os seus frequentadores, sem o
risco de graves omissões. Mas, para homenagear a todos num só, devo ressaltar a
figura do poeta Sebastião Norões. Começou a frequentá-lo desde a sua inauguração
e assim continuou durante cerca de vinte anos, até morrer. E foi lá
praticamente que se despediu da vida.
Promotor público e professor, morou sempre bem próximo ao
Pina. Primeiro na casa de sua mãe, na Avenida Sete de Setembro. Depois, num
pequeno apartamento, na Rua Rui Barbosa. Celibatário, sua vida era uma rotina
diária entre o Tribunal de Justiça, o Ginásio, o Pina e o Guarany. Saía de um e
entrava no outro, com paradas mais frequentes na República, para o bate-papo e
o cafezinho, que consumia às dezenas, fumante inveterado que era. Sempre muito
tranquilo, avesso a discussões, andava de roda em roda, mais ouvindo do que
falando. Como já disse, de manhã, de tarde e de noite.
Certo dia, ele tomava o seu habitual cafezinho, no balcão,
quando se sentiu mal. Socorrido, foi levado de carro para o Pronto-Socorro,
onde morreu horas depois. Por uma coincidência feliz, as últimas imagens deste
mundo que gravou na retina foram exatamente os três pedaços de chão que mais
amou: o Pina, o Ginásio e o Guarany.
O destino poupou a Norões o desgosto de assistir à
decadência e ao melancólico fim da República. Anos mais tarde, sacrificado ao
Moloch do trânsito, o Pavilhão São Jorge foi demolido. Algum tempo depois foi
reconstruído. Mas quando isso aconteceu, já vivia das glórias passadas, com
esmaecidos lampejos do brilho de outrora.
A República Livre do Pina desapareceu e o Clube da
Madrugada, com a dispersão da velha-guarda, se modificou. Mas para mim ambos
permanecem intactos, como símbolos do esforço de todos aqueles que persistem na
busca onírica de um ideal de justiça e beleza, a ser perseguido sempre, como
única maneira de se emprestar sentido à trajetória humana sobre a Terra.
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