Por Rafael Galvão
Acho que ainda não vi ninguém mencionando isso: mas entre as
invenções do século XX, uma das mais importantes foram os super-heróis.
Na verdade, considerando que o automóvel, o telefone, a
transmissão de energia elétrica e o cinema foram criados no século XIX, os
super-heróis são uma das poucas grandes invenções do século passado,
provavelmente tão importante quando o computador, a internet e as viagens
espaciais. Depois que dois garotos americanos trivializaram um conceito
nietzscheano e criaram o Super-Homem, as coisas mudaram definitivamente, e
talvez não para melhor.
Até o início do século passado, os heróis eram humanos,
sempre. D’Artagnan, o Corsário Negro, Allan Quatermain, Jim Hawkins. Mesmo o
Tarzan, se não era comum, era gente como a gente, sem nenhum superpoder. Com a
chegada dos quadrinhos, os primeiros heróis seguiam essa risca: o Fantasma,
Flash Gordon e o Príncipe Valente eram pessoas normais, com as habilidades
possíveis, mesmo que eventualmente exageradas ou em ambientes improváveis, como
a selva africana ou o planeta Mongo.
Mas havia um aspecto ainda mais importante, quase antagônico
ao panorama atual: o sobre-humano era sempre associado ao mal. Tinha sido assim
durante séculos. Dr. Hyde, Drácula, o monstro de Frankenstein: a moral
subjacente a todos eles era a de que a busca pelo além não podia terminar bem,
como não terminou para Adão nem para Prometeu. O modelo ideal era o humano:
imperfeito, fraco, mas familiar e acessível. Um herói era aquele que se
superava e fazia, talvez melhor, tudo aquilo que qualquer um pode fazer, e não
alguém que tinha grandes poderes e com eles grandes responsabilidades.
Por isso, até o início do século passado um garoto qualquer
poderia ter como heróis e modelos alguém que, ao menos em teoria, ele podia
ser. Bem ou mal, ele sabia que, com esforço e nas circunstâncias adequadas,
poderia sobreviver na selva como um Tarzan, desvendar um crime impossível como
Sherlock Holmes, domesticar um lobo como o Fantasma.
O Superman representou uma ruptura nesse modelo e deu início
a uma nova era. Mas mesmo ele começou timidamente. O Superman de 1938 era mais
forte, saltava mais alto, corria mais rápido, mas ainda era uma evolução
apenas, não algo totalmente diferente, e só existia em comparação com o
demasiado humano. Apenas com o passar do tempo ele adentraria o campo do
improvável, voando, usando uma tal visão de raio X, essas coisinhas do
Superman. E ainda assim, os outros heróis mais importantes desse início de era
ainda eram “normais”, como o Batman ou mesmo o Capitão América.
Mas já não havia mais havia mais volta. O princípio básico
do herói, a sua humanidade, tinha sido rompido ali. Aos poucos outros foram
surgindo, como o Capitão Marvel e o Tocha Humana, ainda nos anos 40, e mais
tarde o Quarteto Fantástico e o Homem-Aranha: heróis que já não precisavam
respeitar sequer a mínima fímbria de plausibilidade; e talvez como resposta a
esse novo que ele tinha anunciado, em pouco mais de dois anos o próprio
Superman passou a voar e fazer essas coisinhas do Superman.
Mais que isso, os super-heróis tomaram conta do imaginário
como virtualmente nenhum personagem de ficção antes dele. Hoje o Homem-Aranha é
mais famoso que Jesus Cristo, e está na psique coletiva de maneira muito mais
constante e intensa do que, por exemplo, Aquiles ou o Rei Artur. Eu não
perderia um tostão se apostasse que o Batman é muito mais conhecido do que o
Barão de Charlus.
Mas acho que algo importante mudou quando os heróis passaram
a ter essa dimensão sobre-humana. E não consigo deixar de imaginar que talvez
isso tenha algo a ver com essa era estranha, ansiosa e frustrante em que as
pessoas vivem. Talvez seja como se o impossível tivesse deixado de ser
realmente impossível, e essa noção tenha contaminado, em algum nível muito
profundo, a maneira como as pessoas enxergam o mundo. Super-heróis talvez sejam
uma face do hedonismo quase mandatório que se tornou a regra das sociedades
atuais. Talvez. Certo, mesmo, é que essa invenção do século XX encontrou no
século XXI ninho farto para crescer e tomar conta da imaginação de todos.
No século XXI esse processo avançou ainda mais.
Demorou até os super-heróis chegarem adequadamente ao cinema
— sem contar desenhos animados como os do Superman pelo Max Fleischer ou a
fantasticamente tosca série da Marvel dos anos 60.
Mas em 1979, o primeiro grande filme de super-heróis,
Superman, concorreu apenas a Oscars técnicos, como edição, música original,
som. Agora, filmes de super-heróis concorrem ao Oscar de melhor filme. É uma
mudança significativa não apenas de sua importância na indústria
cinematográfica, mas da própria sensibilidade da plateia. O processo de
transformação desses personagens feitos com a única intenção de vender revistas
e garantir o leite das crianças em mitos se completou.
O século XXI tem sido a era dos filmes de super-heróis por
uma única razão: porque agora é possível fazê-los. Não há mais limites. Em 1978
o Hulk de Lou Ferrigno precisava de uma boa dose de boa vontade para ser
encarado como tal. Hoje isso não é mais problema, e o Hulk pode ser feito como
seus autores o conceberam (por que, mesmo depois de três filmes diferentes,
ainda não conseguiram é um mistério para mim).
Mais que isso, o cinema é a nova casa dos super-heróis. As
vendas de revistas em quadrinhos caem a cada ano. Não é de admirar: nas bancas
— eu sou um ser do século passado; ainda gosto de bancas de jornal —, de vez em
quando folheio algumas revistas e vejo um tal de “Aranhaverso” com um bocado de
Homens-Aranha, um Peter Parker que agora é o dono milionário de uma empresa de
tecnologia, e o Bruce Wayne não é, de novo, o Batman. O mundo dos super-heróis
alcançou um nível de pseudo-complexidade que as torna distantes do que eu, pelo
menos, entendia como quadrinhos.
Isso me incomodava até que vi a notícia de que a Marvel
tinha cancelado os títulos do Quarteto Fantástico, virtualmente apagando a
presença da marca nas bancas, para esvaziar a força de mercado dos personagens
e forçar a Fox a lhe devolver os direitos cinematográficos sobre o grupo.
Se a Marvel faz isso com um dos seus super-heróis mais
queridos — foi o Quarteto que deu início à revolução dos quadrinhos que a ela
empreendeu a partir do início dos anos 60 —, a razão é muito simples: hoje, as
revistas não são realmente importantes. Os filmes são. Enquanto a venda de
revistas lhe gera milhões de dólares por ano, os filmes geram bilhões a cada
nova edição — e alimentam a venda de merchandising de todo tipo, que rendem
ainda mais. Mais vale fazer um filme do que editar 300 revistas. Não importa
que a fórmula pareça estar se esgotando: é para assistir a esses filmes que as
pessoas continuam indo ao cinema.
A era das revistas em quadrinhos passou. Mas os super-heróis
se tornaram maiores que elas. São novos deuses de uma sociedade cada vez mais
descrente. Para o alto, avante e amém.
Nenhum comentário:
Postar um comentário