Por Jefferson Peres
Em 1950, deu-se o esperado confronto entre os dois grandes
caciques políticos do Estado: Álvaro Maia e Severiano Nunes, como candidatos a
governador. O primeiro apoiado por uma ampla coligação que incluía o PSD, o
PTB, o PSP e o PDC. Tinha como companheiro de chapa, para o Senado, Vivaldo
Lima Filho, indicado pelos trabalhistas, que assim prestavam homenagem póstuma
ao velho Vivaldo, na pessoa do filho. Severiano disputava pela UDN, junto com
Leopoldo Neves, que se desincompatibilizara seis meses antes para concorrer ao
Senado.
Álvaro Maia, como já disse, era um mito. Poeta, escritor,
brilhante orador, dotado de grande carisma, a seu respeito circulavam histórias
com sabor de lenda, desde o início dos anos 20, quando pronunciara a muito
citada, mas pouco lida Canção da Fé e Esperança. Daí se originaria o movimento
glebarista, muito simpático à população porque, embora sem um programa
definido, tinha como mensagem a valorização dos homens e das coisas do
Amazonas.
Em 1930, sua popularidade aumentaria com a firme posição que
tomou contra a repressão policial aos ginasianos rebelados. Depois viriam os
quase quinze anos à frente do governo, primeiro como interventor, a seguir como
governador por eleição indireta e, em 37, novamente como interventor.
Deixara o Poder em 45, para eleger-se senador e tentava
novamente chegar ao governo, desta vez por eleição direta. Pesava contra ele o
passado de administrador sem pulso e negligente, além da fama de mau pagador de
promessas. Em seu favor, no entanto, de par com o carisma, a aura de liberal,
que mesmo durante o Estado Novo, com plenos poderes, jamais agira
arbitrariamente para reprimir ou perseguir. O episódio do fechamento do
Tribunal, na primeira interventoria, fora uma exceção infeliz, distante e quase
esquecida.
Severiano Nunes era um homem comum, sem grandes dotes
intelectuais e com uma biografia que não registrava lances notáveis. Mas era
tido como homem de atitudes firmes, que cultivava o sentimento de amizade e por
isso gozava de enorme prestígio, com um número incontável de admiradores e
amigos incondicionais. Seu ponto negativo na campanha era a condição de candidato
situacionista. Depois de quase quatro anos de governo, Leopoldo Neves sofrera
uma erosão em sua popularidade, pelo natural desgaste do Poder, e isso se
refletia na candidatura de Severiano. Tal desvantagem na capital era compensada
pelo uso da máquina oficial no interior, o que tornava incerto o resultado da
eleição.
Em pouco tempo a campanha empolgou a cidade, com todos
tomando partido. Os comícios eram realizados diariamente, com grande afluência
e transmitidos pelas emissoras de rádio para todo o Estado. Durante o dia,
dezenas de carros percorriam as ruas, com altos falantes, num barulho infernal.
O fundo musical eram duas marchinhas exaltando os dois candidatos ao governo.
Tão fáceis de decorar que ainda hoje ressoam em meus ouvidos. A do PSD
terminava assim: “E viva Álvaro Maia / E fogos e louvor / No dia da vitória /
Do nosso libertador”. Ao passo que os udenistas replicavam com a sua, que
começava assim: “Severiano Nunes / Nesta pugna eleitoral / Que já venceu / E há
de ser / Para o Amazonas / O governo estadual.”
Mas a guerra verbal não se limitava às marchinhas ingênuas.
Os discursos eram virulentos, carregados de ataques pessoais, dirigidos
principalmente contra os dois líderes. Álvaro era chamado, pelos udenistas, de
Cabeleira, embora suas melenas já não fossem tão bastas e viçosas como
antigamente, ao passo que Severiano levava o troco, com o apelido de Frasquinho
de Veneno, em alusão à sua baixa estatura. Mas o dirigente pessedista era o
mais atingido, pois não poupavam sequer sua vida particular. Álvaro não
revidava ataques. Seus discursos eram divagações sobre coisas abstratas, como
Democracia, Liberdade e Justiça, repassadas de imagens e metáforas. Mas um dia,
com a paciência esgotada, mudou de tom.
Foi num comício na Praça dos Remédios, a que assisti. Com a
voz alterada, cheio de indignação, depois de relacionar as injúrias e infâmias
que lhe eram assacadas, entrou na peroração, usando a segunda pessoa do plural,
mas referindo-se, obviamente, a Severiano: Se fui ladrão, então, cobardes (com
b mesmo), por que participastes do meu governo? Se cometi indignidades, então,
cobardes, por que referendastes os meus atos? Se sou um destruidor de lares,
então, cobardes, por que me convidastes para as vossas casas? Se sou um sedutor
de moças incautas, então, cobarde, por que me convidaste para padrinho de
vossas filhas? E por aí foi, levando a massa ao delírio a cada pergunta que fazia.
Ao terminar, foi carregado e triunfo, e no dia seguinte não se falava em outra
coisa. Creio que aquele pronunciamento foi uma peça importante na vitória
esmagadora que Álvaro alcançaria alguns dias depois, nada fazendo prever o fim
melancólico do seu governo.
Com a sua posse, no início de 51, começava um período
tumultuado e cheio de incidentes. Na Assembleia, a nova legislatura prenunciava
problemas sérios com a presença de dois deputados, um veterano, Alexandre
Montoril, reeleito, e um estreante, Deolindo de Freitas Dantas, eleito para um
primeiro mandato. Ambos representavam o município de Coari, onde se
digladiavam, como adversários irreconciliáveis e rancorosos inimigos pessoais,
o velho Deolindo Dantas, pai, chefe da UDN e o próprio Alexandre Montoril,
líder do PSD. Poucos anos antes, essa pendência havia provocado um episódio
sangrento.
Servia como delegado de Polícia em Coari o tenente Holanda,
da Polícia Militar, um homem corajoso, mas violento, a quem conheci
pessoalmente, nas duas ou três vezes em que esteve em minha casa, em visita a
meu pai, com quem tinha um bom relacionamento, desde Codajás, onde estivera,
também como delegado, e o velho, como juiz. Em Coari, o tenente, ligado à UDN e
hostil aos pessedistas, gerou um clima de animosidade crescente. Um dia, acuado
em sua residência por um grupo de homens armados, partidários de Montoril,
reagiu à bala, ferindo dois deles, sendo assassinado, em seguida, a golpes de
faca.
Anos mais tarde, aliás, um dos filhos de Holanda, aqui em
Manaus, na Rua Lima Bacuri, apunhalou um dos supostos mandantes do crime, o
ex-prefeito Edgar da Gama Rodrigues, que sobreviveu ao atentado. Era de
esperar, assim, que não fosse pacífica a convivência de Deolindo e Montoril no
Legislativo. O primeiro, inteligente, combativo, desde o início fustigou o
governo pessedista com denúncias feitas na tribuna. Montoril, calmo, de poucas
palavras, raramente discursava. E apesar de ser um homem de reconhecida
coragem, e que andava habitualmente armado, por algum tempo evitou o confronto
com o adversário.
Até que um dia solicitou um aparte, os dois altercaram,
foram aos insultos, e, de repente, Deolindo partiu em direção ao inimigo, sacou
o revólver, a dois metros de distância, e disparou, errando o alvo.
Surpreendido, Montoril levou a mão à cintura, sendo contido por outros
deputados, enquanto seu adversário corria para se abrigar atrás da mesa da
presidência.
Ignorava Deolindo que Montoril naquele dia estava desarmado,
pois deixara seu revólver num armeiro para consertar um defeito no cabo. Seu
gesto de levar a mão à cintura fora puramente reflexo. Felizmente, a partir daí
os dois adversários firmaram, tacitamente, um pacto de não-agressão e não houve
mais incidentes. Além disso, pouco tempo depois, Deolindo tinha interrompida sua
promissora carreira politica, ao perder a vida num acidente de barco nos
arredores de Manaus.
Enquanto isso, o governo começava a se deteriorar. Denúncias
choviam de todos os lados, principalmente da área de saúde, e um dia os
hansenianos ofereceram um espetáculo chocante ao desfilarem pelas ruas da
cidade, em protesto contra as péssimas condições do leprosário Antônio Aleixo.
Ainda que a passeata tivesse surgido de manipulações
políticas, como querem alguns, o certo é que se a situação fosse boa o movimento
não teria obtido a adesão dos doentes. Por isso, Arthur Virgílio Filho, na
condição de líder do governo, pediu uma Comissão Parlamentar de Inquérito e se
indicou para a presidência da mesma. Depois de amplas investigações, a Comissão
apurou graves irregularidades, que não provocaram nenhuma providência da parte
do Executivo. Em consequência, Arthur renunciou à liderança e rompeu com o
governo.
Seus inimigos o acusaram de ingratidão, por haver,
supostamente, recebido benefícios do governo. Sempre cioso da sua dignidade,
Arthur escreveu uma carta ao governador, indagando se alguma vez lhe pedira
favores pessoais. Álvaro Maia, com a elegância peculiar, respondeu pela
negativa. A partir daí, a situação degringolou. Os erros administrativos,
agravados pela grande enchente de 53, que causou sérios danos à frágil economia
do Estado, levaram as finanças públicas ao colapso.
Atrasaram-se os pagamentos de fornecedores e funcionários,
cujas famílias passavam terríveis privações. Havia filas de servidores na então
Secretaria de Finanças, em busca de vales, e era comum ocorrerem desmaios de
pessoas literalmente com fome. Nas repartições públicas os chefes perdiam o
controle sobre os subordinados, a quem tinham de liberar, nas horas de
expediente, para que fossem lutar pela sobrevivência. A administração ficou à
beira do caos.
Num quadro assim, é fácil imaginar que o governo, sem
sustentação popular, marchasse para um desastre eleitoral. Surpreendentemente,
porém, foi quando ocorreu a reaproximação dos velhos rivais, Álvaro e
Severiano, que selaram um acordo PSD-UDN, para lançar mais uma vez o nome de
Ruy Araújo como candidato ao governo, numa aventura que se delineava suicida.
Do outro lado, o PTB , rompido com o governo, lançava a
candidatura de Plínio Coelho, com amplo apoio popular, na capital e forte
penetração no interior, onde se beneficiou das inconciliáveis rivalidades
paroquiais, que levaram muitos chefes pessedistas e udenistas a se bandearem
para o PTB, desgostosos com a aliança udeno-pessedista.
As urnas deram
consagradora vitória a Plínio, que no início de 55 entrava no Palácio Rio
Negro, inaugurando em nosso Estado a era populista, sobre a qual não falo por
ultrapassar a fronteira que fixei, no tempo, como limite para este trabalho.
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