Por Jefferson Peres
Naquele tempo era baixo o índice de violência, pelo menos em
suas manifestações mais brutais, como, por exemplo, os crimes de sangue. Isto
não significa que o relacionamento humano fosse sempre ameno, isento de
agressividade. Ao contrário, a mentalidade machista dos homens, inculcada desde
o berço, criava em muitos a necessidade de se afirmarem, um tipo de
comportamento que a sociedade aceitava como próprios dos varões.
Um macho não podia demonstrar fraqueza. Chorar, nunca, em
nenhuma circunstância, que isso era coisa de mulher. A dor tinha de ser
disfarçada, contida a qualquer custo, já que o pranto masculino era
ridicularizado sem piedade. Por igual, era inadmissível que um homem levasse
desaforo para casa. Uma provocação devia ser respondida com uma reação igual ou
superior.
Desde criança, nas rodas de molecagem, éramos acostumados
assim. O início da briga obedecia até mesmo a um ritual. Quando dois
companheiros se estranhavam, um terceiro, geralmente de maior tamanho, fazia
dois riscos no chão representando as respectivas genitoras dos contendores. Se
cada um pisasse simbolicamente na mãe do outro, a disputa evoluía para a luta
corporal, que só terminava com a derrota de um ou com a intervenção de adultos.
Esse ânimo belicoso era estimulado por muitos pais, que ameaçavam castigar os
filhos não por haverem brigado, mas por terem perdido a briga ou fugido à luta.
Era comum a expressão “filho meu que apanhar na rua, apanha também em casa”.
Como não havia academias de karatê, onde os jovens pudessem
descarregar sua agressividade e adestrar-se em artes marciais, aprendia-se a
brigar na rua e na escola, em lutas nas quais valia tudo, menos dentada e puxão
de cabelos. Quem apelasse para esses recursos era xingado de desleal e maricas.
Homem usava os punhos e os pés. Estes não apenas podiam, mas deviam ser usados
como prova de macheza.
Era natural, portanto, que os jovens fossem portadores de
uma boa carga de agressividade, à qual procuravam dar vazão em manifestações
grupais de bandos aguerridos. Era grande o número de turmas famosas pela sua
belicosidade. Ganhavam o nome do espaço físico em que se reuniam diariamente.
Havia a turma do Ginásio, a da Bandeira Branca, a da Major
Gabriel, a do Pedro II e a do Alto de Nazaré, dentre outras. A do Ginásio era
constituída por um grupo de rapazes, alguns homens feitos, alunos das últimas
séries, como José Caitete Filho, Volmar Simões, Zilmar Bonates, Paulo Jacob,
mais tarde desembargador, Jonas Limaverde e Benayon, cujo primeiro nome
esqueci.
Brigavam por prazer, a troco de nada, por motivos reais ou
inventados. Tiveram atritos frequentes com os alunos do Colégio D. Bosco,
velhos rivais, travaram uma pancadaria com a rapaziada do Tijuca, e até
deflagraram uma guerrinha com a Manaos Tramways. Com esta o pretexto foi dos
mais banais.
A antiga farda cáqui do Ginásio um dia foi trocada por um
novo modelo de cor cinza. Por coincidência, pouco depois a concessionária
inglesa adotou um uniforme também cinzento para os motorneiros e cobradores dos
bondes. Foi o suficiente para que o grupo desencadeasse uma campanha contra a
Tramways, que ia da hostilidade aos funcionários até a prática de atos de
sabotagem, como o descarrilamento dos elétricos, provocado por sabão passado
nos trilhos. A campanha durou semanas e já não me lembro se veio a cessar com a
mudança de fardamento dos empregados da Tramways ou por cansaço dos
beligerantes.
O recinto do Ginásio era sagrado e ai do estranho que ali
entrasse sem permissão do grupo. Certo dia vi um dos nossos colegas da turma do
Moderno, chamado Celestino – por sinal, também um famoso brigão – ser expulso a
pontapés por Volmar e Zilmar. Não pontapés simbólicos, mas reais, pesadamente
aplicados no traseiro. Inúmeras outras passagens poderiam ser contadas desse
grupo, que perdeu o elã a partir da morte de Aníbal Santos, atingido por uma
bala disparada, acidentalmente, dentro do Ginásio, por um dos integrantes da
turma.
Esses grupos tinham um forte espírito gregário. As ações
eram empreendidas coletivamente, com a participação obrigatória de todos. Em
contrapartida, como no lema dos Três Mosqueteiros, os agravos feitos a um eram
vingados por toda a grei. E o sentimento de posse dos seus territórios se
estendia, muitas vezes, às moças neles residentes, que se viam impedidas de
receber namorados.
Lembro-me de um amigo que namorava uma garota no Alto de
Nazaré, como era conhecido o trecho da Joaquim Nabuco entre a Rua Japurá e a
Praça Santos Dumont. Depois de resistir a um sem-número de provocações, afinal
desistiu na noite em que teve o paletó de linho branco passado nos postes em
que habitualmente se encostava. E ainda se deu por feliz de não haver apanhado
na frente da namorada, como acontecera a tantos outros.
Quando a pessoa molestada pertencia a outra turma, o
episódio podia provocar uma verdadeira guerra, como a que foi declarada entre
as turmas da Major Gabriel e do Pedro II. A primeira era liderada por Ugo
Zuany, um dos mais notórios valentões da cidade. Morava em frente ao Palácio
Rio Negro e tinha um físico de meter medo. Com um protuberante peito de pombo,
andava com os braços abertos, à semelhança de um gorila. Fui testemunha de duas
ocorrências em que o Ugo se envolveu.
Certa noite dois amigos meus, os irmãos Alberto e Augusto
Lacerda, baixos, mas fortes e acostumados a brigar, por um motivo qualquer
desafiaram a fera, que não se fez de rogada. E durante quase meia hora, no
cruzamento da Getúlio Vargas com a Saldanha Marinho, Zuany travou com os dois
um luta que só terminou quando os preliadores, exaustos, resolveram dá-la por
empatada.
Ainda pude assistir a outra demonstração de ferocidade de
Ugo, quando uma de suas irmãs, que estudava à noite no Ginásio, chegou em casa chorando
porque um professor a tratara grosseiramente. Eu estava no Café do Pina e vi
quando, à aproximação do Ugo, o mestre, avisado, desembestou numa carreira
digna de campeão olímpico, atravessou toda a Praça da Polícia e embarafustou
pela Marcílio Dias, perdendo-se de vista. Ugo logo desistiu da perseguição,
menos por cansaço, talvez, do que por sentir vingado em submeter o homenzinho
àquele vexame perante toda a comunidade ginasiana.
A turma do Pedro II se reunia na Praça da Prefeitura e era
comandada pelos irmãos Abdalla e Mamede Jezini, filhos do dono da Casa Jezini,
que funcionava na esquina da Sete de Setembro com Joaquim Sarmento. Eram ambos
muito fortes e bons de briga. Mais tarde, Abdalla se integrou à turma do
Moderno, que era de paz e amor. A princípio, desambientado e privado de sua
diversão predileta, introduziu como sucedâneo uma brincadeira chamada de “revista”.
Consistia em reunir um grupo de oito a nove participantes, aos quais se
atribuíam postos militares, de soldado raso a coronel.
Essa tropa era passada em revista por um general, quase
sempre o Abdalla, que proclamava ter dado pela falta, digamos, do tenente. Este
teria que replicar de pronto que não fora ele e sim outro qualquer. Este, por
sua vez, teria de atribuir a falta de outro, e assim sucessivamente. Se o
detentor de qualquer dos postos demorasse a responder ou se atrapalhasse na
resposta, era submetido ao sabacu, o castigo físico aplicado ao infeliz, na
forma de pancadas de mão aberta, dadas por todo o grupo, nas costas e na cabeça.
Muitos ficavam com os olhos cheios de lágrimas.
Mas antes de se juntar a nós, quando ainda pertencia à turma
do Pedro II, Abdalla e outros tiveram um atrito com alguns integrantes da turma
da Major Gabriel, e resolveram tirar a coisa a limpo. Seria o confronto
definitivo a ser travado num local ermo, livre da interferência da polícia ou
de testemunhas. E acertaram a luta para uma hora determinada, à noite, nas
proximidades do Clube Amazonense de Regatas.
E lá realmente teve lugar a grande
batalha campal, que terminou com a derrota das hostes de Ugo. Este, excelente
nadador, escapou atirando-se ao rio Negro e voltou para casa pelo Igarapé de
Manaus. Foi a última guerra de turmas de que tive notícia.
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