Por Rodrigo Janot (*)
Três anos após a deflagração da Operação Lava Jato, com
todos os desdobramentos que se sucederam, difícil conceber que algum fato novo
ainda fosse capaz de testar tão intensamente os limites das instituições. Mas o
roteiro da vida real é surpreendente.
Em abril deste ano, fui procurado pelos irmãos Batista.
Trouxeram eles indícios consistentes de crimes em andamento – vou repetir:
crimes graves em execução –, praticados em tese por um Senador da República e
por um Deputado Federal.
Os colaboradores, no entanto, tinham outros fatos graves a
revelar. Corromperam um procurador no Ministério Público Federal. Apresentaram
gravações de conversas com o Presidente da República, em uma das quais se
narravam diversos crimes supostamente destinados a turbar as investigações da
Lava Jato.
Além desses fatos aterradores, foram apresentadas dezenas de
documentos e informações concretas sobre contas bancárias no exterior e
pagamento de propinas envolvendo quase duas mil figuras políticas.
Mesmo diante de tais revelações, o foco do debate foi
surpreendentemente deturpado. Da questão central – o estado de putrefação de
nosso sistema de representação política – foi a sociedade conduzida para ponto
secundário do problema – os benefícios concedidos aos colaboradores.
Quanto valeria para a sociedade saber que a principal
alternativa presidencial de 2014, enquanto criticava a corrupção dos
adversários, recebia propina do esquema que aparentava combater e ainda tramava
na sorrelfa para inviabilizar as investigações?
Até onde o país estaria disposto a ceder para investigar a
razão pela qual o Presidente da República recebe, às onze da noite, fora da
agenda oficial, em sua residência, pessoa investigada por vários crimes, para com
ela travar diálogo nada republicano?
Que juízo faria a sociedade do MPF se os demais fatos
delituosos apresentados, como a conta-corrente no exterior que atendia a dois
ex-presidentes, fossem simplesmente ignorados?
Foram as perguntas que precisei responder na solidão do meu
cargo. A gravidade do momento, porém, fez-me compreender claramente que já
tinha em mim as respostas há pelo menos trinta e dois anos, quando disse sim ao
Ministério Público e jurei defender as leis e a Constituição do país.
Embora os benefícios possam agora parecer excessivos, a
alternativa teria sido muito mais lesiva aos interesses do país, pois jamais
saberíamos dos crimes que continuariam a prejudicar os honrados cidadãos
brasileiros, não conheceríamos as andanças do Deputado com sua mala de
dinheiro, nem as confabulações do destacado Senador ou a infiltração criminosa
no MPF.
Como Procurador-Geral da República, não tive outra
alternativa senão conceder o benefício da imunidade penal aos colaboradores,
alicerçado em três fortes premissas: a) a gravidade de fatos, corroborados por
provas consistentes que me foram apresentadas; b) a certeza de que o sistema de
justiça criminal jamais chegaria a todos esses fatos pelos caminhos
convencionais de investigação; e, por fim, c) a situação concreta de que, sem
esse benefício, a colaboração não seria ultimada e, portanto, todas as provas
seriam descartadas.
Para os que acham que saiu barato, anoto as seguintes
considerações pouco conhecidas: no acordo de leniência, o MPF que atua no
primeiro grau propôs o pagamento de multa de 11 bilhões de reais; as punições
da Lei de Improbidade e da Lei Anticorrupção ainda estão em aberto; no que se
refere às operações suspeitas no mercado de câmbio, não estão elas abrangidas
pelo acordo e os colaboradores permanecem sujeitos à integral responsabilização
penal; e, por fim, a colaboração é muito maior que os áudios questionados.
Sem jactância e apesar de opiniões contrárias, estou
serenamente convicto de que tomei, nesse delicado caso, a decisão correta, motivado
apenas pelo desejo de bem cumprir o dever e de servir fielmente ao país.
Finalmente, tivesse o acordo sido recusado, os
colaboradores, no mundo real, continuariam circulando pelas ruas de Nova York,
até que os crimes prescrevessem, sem pagar um tostão a ninguém e sem nada
revelar, o que, aliás, era o usual no Brasil até pouco tempo.
(*) Rodrigo Janot é Procurador-Geral da República
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