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sábado, maio 27, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (22)


Por Jefferson Peres

Eram poucas as quadras e piscinas, e precários os estádios, mas seria um erro supor quase inexistente a prática de esportes. Ao contrário, eu diria que, considerando o tamanho da população e a pobreza do meio, as atividades esportivas surpreendiam pela variedade e intensidade. Como hoje, o futebol já era de longe o esporte mais popular.

Os jogos oficiais se realizavam em dois estádios, o Campo do Luso, nos Bilhares, que conheci em seus últimos momentos, e o Parque Amazonense, no Dispensário Maçônico da Rua Belém, hoje em ruínas, um antigo hipódromo, onde se realizavam corridas de cavalos que os mais velhos recordavam com saudade. Havia ainda o General Osório, do 27º BC, utilizado apenas para treinos e amistosos porque, inteiramente aberto, não permitia a cobrança de ingressos.

Os times eram todos amadores, mas já haviam formas disfarçadas de semiprofissionalismo, que consistiam em dar aos atletas empregos sem obrigações, ou em regime de meio expediente, que lhes permitiam dedicação integral ao futebol. Participavam do campeonato estadual apenas clubes de Manaus.

Havia três grandes, os velhos rivais Rio Negro e Nacional, e mais o Olímpico, fundado no final dos anos trinta e transformado logo numa grande potência do futebol. Em segundo plano, como clubes médicos, o Fast e a União, com algumas glórias passadas. Finalmente, dois clubes pequenos, eternos perdedores, o Independência, de José Caitete, e o Genral Osório, formado por militares do 27.º BC. Mais tarde apareceram outros, como o Tijuca, o Barés e o Eldorado.


O palco dos grandes acontecimentos futebolísticos era o Parque Amazonense, ao qual tínhamos acesso através dos velhos bondes, que passavam à sua porta. Nos dias de jogos importantes saíamos de casa depois do almoço para pegarmos transporte, e ao término das partidas, nem sempre sendo possível tomar o bonde em frente ao estádio, às vezes tínhamos de caminhar até o Entroncamento, no Boulevard Amazonas. Voltávamos pra casa depois das sete horas da noite.

Pouco seguro, com muros baixos em suas partes laterais e traseiras, o estádio era um convite aos furões. Muitas vezes ocorriam verdadeiras invasões, com centenas de pessoas saltando o muro ao mesmo tempo e provocando cargas de cavalaria da Polícia Militar. Muitos pagavam caro a ousadia, ao terem as costas espaldeiradas por lâminas de sabre dos cavalarianos.

Certa vez, o velho Parque, em tarde de gala, foi palco de uma proeza praticada pelo meu saudoso amigo Wilson Câmara. Gaiatíssimo, Wilson gozava tudo e todos, inclusive a si próprio. Sempre que era apresentado a alguém fazia um impagável duplo sentido com as iniciais do seu nome: “W.C., às suas ordens”. Pois foi esse gozador que, num domingo de estádio cheio para assistir a uma partida entre o Nacional e um time de fora, conseguiu paralisar o jogo com uma grande molecagem.

No momento em que o atacante do time adversário, após driblar o zagueiro nacionalino, se preparava para finalizar, Wilson meteu dois dedos na boca e simulou com perfeição o trilo do apito do juiz. Jogo paralisado, confusão, o autor da façanha, descoberto, foi detido por policiais e, mais tarde, liberado por influência de amigos.


Em campo, os times adotavam a formação clássica: dois zagueiros, três médios e cinco atacantes, todos com posições fixas. A terminologia era toda inglesa, sem tradução para o vernáculo. Assim, goleiro era goal-keeper, zagueiro, back; médio, half; comandante de ataque, center-forward; escanteio, corner; falta, foul; impedimento, off-side; locutor, speaker; e até o árbitro era chamado de referee.

O nível do futebol local era modestíssimo até o começo dos anos quarenta. Os jogadores, além de amadores, eram amazonenses, quase não havia intercâmbio, de forma que o desempenho da nossa seleção, no Campeonato Brasileiro, era sempre decepcionante. Nas eliminatórias nunca passávamos pela seleção do Pará, que nos aplicou algumas goleadas históricas.

O panorama começou a mudar com a vinda do Santa Cruz de Recife, uma verdadeira máquina, como dizem os cronistas esportivos. Tinha craques com nível de seleção nacional, além de um conjunto entrosadíssimo. Foi, talvez, o melhor time de futebol que vi atuar em campos locais. Nessa excursão o Santa Cruz se desfez. Dois jogadores morreram de tifo, em Belém, e cinco ficaram em Manaus: Omar, Pelado, Sidinho, França e Pinhegas, este, mais tarde, ponta esquerda do Fluminense do Rio. Sorte nossa, porque, enfim, pudemos formar uma seleção altamente competitiva.

Com os cinco ex-jogadores do time pernambucano, o selecionado ficou assim constituído: Téo, Periquito e Marcílio; Omar, Pelado e Emanuel; Oliveira, França, Marcos, Sidinho e Pinhegas. Partimos, então, para Belém, onde disputaríamos dois jogos. No primeiro, derrotamos a seleção paraense, pela primeira vez em muitos anos, por 2x0.

No segundo, perdemos pelo mesmo escore. Foi necessária uma prorrogação de trinta minutos. Próximo ao final, Pelado, paraense de nascimento, inesperadamente atrasou a bola com um violento chute, marcando um gol contra. Assim, foi eliminado o Amazonas, que poderia, talvez, disputar as finais com Rio de Janeiro e São Paulo. Foi a nossa maior frustração esportiva. Pelado ficou em Belém. Se voltasse a Manaus, provavelmente seria linchado.


De qualquer maneira, a qualidade do nosso futebol melhorou consideravelmente a partir daí, inclusive com o surgimento de craques amazonenses, como os irmãos Onety, Benjamim, Luiz e Paulo. Até hoje, não entendo por que Paulo não se transferiu para o sul do país, onde seguramente teria feito uma bela carreira.

Mas o futebol não era apenas apreciado como espetáculo. Também era praticado intensamente por garotos e adultos em inúmeros campos de peladas. Em pleno centro da cidade havia, por exemplo, a Baixa do JG, no terreno hoje ocupado pelo edifício Palácio do Rádio; os dois campos de Manaus, entre a Lauro Cavalcanti e a Ipixuna, que ficavam descobertos quando as águas baixavam; um campinho situado em terreno baldio, no Alto de Nazaré; o Campo Grande, atrás do Colégio Maria Auxiliadora; e mais as ruas sem calçamento, utilizadas pela molecada tranquilamente, sem risco de atropelamento, como a Avenida Floriano Peixoto.

Mais afastados, tínhamos o campo do S. Raimundo, o da Labor, em Educandos, o da Casa Amarela, na Cachoeirinha, onde hoje se ergue o Palácio Rodoviário, e o da Maria Monassa, na Vila Municipal, entre as ruas Natal e Fortaleza. Eram campos abertos, sem muros ou cercas, em terrenos públicos ou particulares, franqueados a qualquer pessoa, mediante simples permissão verbal do proprietário ou do vigia. Às vezes nem isso, como acontecia com os campos da Baixa do JG e do Igarapé de Manaus. Joguei em quase todos, sempre demostrando uma completa ausência de talento para o futebol. Basta dizer que, atuando como apoiador ou ponta-direita, nunca consegui fazer um mísero gol. Um recorde difícil de ser igualado.

Nesse tempo as partidas eram disputadas com as bolas antigas, que na verdade eram duas, uma de borracha, que se enchia com bomba de bicicleta, dentro de outra, de couro, que era o seu revestimento externo. O bico era empurrado, entre uma bola e outra, e a abertura da bola de couro amarrada com um cordão, à semelhança de cadarço de sapato. O cabeceio era uma temeridade, porque a testa podia acertar exatamente na parte amarrada, e doía muito.
Nas peladas, dava-se preferência às bolas de sernambi, compradas no Mercado, que podiam ficar inutilizadas no primeiro dia se caíssem num caco de garrafa ou numa ponta de prego. Além disso, com o tempo iam murchando, até ficarem do tamanho de um coco. Quando o dinheiro não dava para comprar uma bola, fazia-se uma de meia, recheada de pano ou de papel, que era chutada até se desfazer. Mas sem a pelada é que não ficávamos. Com chuva ou com sol. Quase todos os dias.

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