Por Jefferson Peres
Para um jovem da minha geração era muito difícil manter
relações íntimas com moças de família, de qualquer classe social, entendidas
como tais as que viviam em companhia dos pais. A violação do tabu da virgindade
tinha sérias implicações, que iam do casamento forçado ao processo por crime de
sedução.
Não era fácil mesmo com as moças faladas, isto é, as
suspeitas de não serem virgens, que davam preferência a forasteiros, como
aviadores civis e caixeiros-viajantes, por temerem a indiscrição da rapaziada
local. Apenas os mais ousados conseguiam vencer essas barreiras, dispostos a
enfrentar as consequências.
A grande maioria tinha de recorrer mesmo às profissionais
para satisfazer os reclamos da natureza. Frequentar prostitutas era uma prática
exercida com habitualidade por jovens de todas as classes.
Com tão grande clientela, não é de estranhar que a Zona do
Meretrício, ou simplesmente Zona, ocupasse uma área tão ampla, considerando as
dimensões da cidade. Reduzida hoje, ao que parece, à Rua Henrique Antony, à
época abrangia, também, a Itamaracá, parte da Frei José dos Inocentes e alguns
quarteirões da Saldanha Marinho, da Lobo
d’ Almada e da Joaquim Sarmento.
Embora não houvesse uma separação nítida e precisa, pode-se
dizer que as três primeiras ruas constituíam o que o povo chamava de zona
estragada, onde viviam mulheres decadentes, algumas em deploráveis condições
físicas. Moravam em quartinhos precários, à porta dos quais ficavam a chamar os
fregueses e a oferecer seus serviços por qualquer preço.
Nas demais ruas predominavam as pensões, ou sejam, bordeis
dirigidos por ex-prostitutas, que cobravam aluguel das pensionistas e
exploravam o serviço de bar. Só por exceção um cliente entrava diretamente para
o quarto, sem a pausa obrigatória para uma cerveja ou uma dose de whisky.
Alguns desses prostíbulos eram bem instalados, limpos, com
assoalhos encerados e cortinas nas janelas. Geralmente, a dona ocupava a sala
da frente, que seria a de visitas, e as meninas utilizavam a alcova e os
quartos da puxada. Na sala de jantar, transformada em bar, era recebida a
clientela.
As pensões mais famosas e concorridas do meu tempo eram a da
Lola e a da Maria da Luz, vizinhas, na Rua Saldanha Marinho, e a Royal, na
Joaquim Sarmento, a única que tinha nome, dirigida pela Hortência, uma mulher
já velhusca, alta, educada e de aparência respeitável, que muitas vezes sentava
à mesa para conversar com os frequentadores.
Essas senhoras eram muito zelosas do conceito de seus
estabelecimentos. Por isso, exerciam permanente vigilância sobre a saúde das
suas pensionistas, que eram obrigadas a lhes comunicar sem demora o
aparecimento de qualquer doença venérea, para tratamento imediato, antes que os
clientes fossem contaminados. O que nem sempre podia ser evitado, porque
algumas dessas moléstias, como a gonorreia, por exemplo, são transmissíveis
durante o período de incubação, que se estende por vários dias. Assim, esses
cuidados diminuíam mais não eliminavam a propagação de tais doenças, que
apresentavam incidência muito elevada.
Os homens da minha geração bem que poderiam pedir à Santa Sé
a canonização de sir Alexandre Fleming, pois têm para com ele uma dívida de
gratidão irresgatável. Antes da penicilina, o tratamento dessas doenças,
segundo depoimento dos mais velhos, era penoso e muitos desmaiavam de dor nos
consultórios médicos. Pior ainda, algumas eram de cura difícil e incerta,
podendo deixar sequelas terríveis. Não poucos se arruinaram fisicamente.
Quando iniciei minha vida sexual já havia penicilina, mas
era um remédio caro e de conservação difícil, pois tinha de ser mantida em
geladeira para não perder suas propriedades curativas. Somente na década de
cinquenta seu preço barateou e passou a ser adquirida facilmente em qualquer
farmácia. E, só então, as doenças venéreas deixaram de ser os fantasmas que
tanto nos perturbavam o sono.
Essas profissionais do sexo sofriam uma forte discriminação,
motivo por que viviam confinadas na Zona como num gueto, do qual pouco se
afastavam, a não ser para cabarés e certos balneários exclusivos. Quando
frequentavam lugares públicos, comportavam-se discretamente e procuravam passar
despercebidas, receosas de serem convividas a ser retirar.
Sua presença podia liquidar um estabelecimento, já que
senhoras respeitáveis não admitiam dividir o mesmo espaço com raparigas, que
era a palavra usualmente empregada para designá-las. É curioso como esse
vocábulo, que em bom vernáculo significa apenas o feminino de rapaz, pôde
adquirir um sentido tão pejorativo.
Mas, semântica à parte, vale assinalar que essas mulheres,
apesar de viverem exclusivamente da profissão, e depois de tão machucadas pela
vida, ainda podiam ter, muitas vezes, o comportamento de adolescentes
românticas. Quase todas, ou pelo menos uma boa parte delas, tinham os seus
xodós, ou seja, os homens por quem morriam de amores. Às vezes, literalmente,
porque podiam ir ao suicídio quando abandonadas.
Tive alguns amigos que, embora desfrutassem do privilégio da
entrada franca no quarto dos seus xodós, não chegavam propriamente a ser
invejados. Ciumentas e exclusivistas, elas armavam cenas desagradáveis e
transformavam as vidas dos seus amados num purgatório.
Em compensação, com os clientes comuns o relacionamento era
puramente profissional, com pagamento em dinheiro, e à vista. Quando enganadas,
tornavam-se ferozes, o que não impedia que o calote, ou xexo, fosse aplicado
com relativa frequência. Havia até aqueles useiros e vezeiros nessa prática,
apesar dos riscos. Conheço alguns casos dos quais fui praticamente testemunha,
porque tiveram como protagonistas amigos meus e me foram narrados horas depois
de ocorridos.
Um dos meus companheiros de roda, mais tarde ilustre membro
do Ministério Público, era à época um duro, que vivia do magérrimo salário de
repórter. Um dia, sem um tostão no bolso, resolveu farrear na pensão da Lola.
Chegou muito cedo, antes da abertura do expediente. Ainda assim, foi admitido
por uma das mulheres, que o conhecia. Sentou-se no bar, onde já se encontravam
cinco ou seis pensionistas.
Uma delas lhe perguntou se pagaria uma dose de whisky, ao
que ele assentiu, sendo logo assediado pelas outras, às quais generosamente
também atendeu. Logo depois patrocinou uma segunda rodada, mesmo sabendo que
seu plano estava prejudicado, porque teria de pagar a conta do bar antes de ir
para o quarto. Resolveu, então, bater em retirada.
A pretexto de ir ao mictório, dirigiu-se aos fundos, seguido
por uma das mulheres, já desconfiada, desceu a escada, ganhou o saguão, onde
escorregou, sujando-se todo, mas ainda assim conseguiu saltar o muro para a
casa vizinha. Era outra pensão, em cuja sala irrompeu, em meio a um grande
alvoroço das mulheres, saindo pela porta da frente. Na rua, foi perseguido por
um guarda até à Praça da Matriz, onde conseguiu despistá-lo. Mas a aventura
ainda não havia terminado.
Na fuga ele perdera um dos sapatos, e agora surgia o
problema do retorno a casa, pois morava com uma tia, sua mãe adotiva e senhora
dos rígidos costumes. Aflito, pediu socorro ao nosso amigo comum José Oliva, o
Pítias, que lhe emprestou um par de sapatos brancos. Ao chegar à casa, a
brancura dos sapatos chamou atenção, de imediato, obrigando-o a um puxado
exercício de imaginação para inventar uma história com um mínimo de
verossimilhança.
Esse mesmo personagem não demoraria a se meter em outra
enrascada. Em fins dos anos quarenta a Zona foi enriquecida com uma cara nova,
que gerou enorme interesse no nosso grupo. Chamava-se Zilpa e morava numa
estância que se estendia da Frei José dos Inocentes à Saldanha Marinho.
Morena clara, alta, lábios suculentos, olhos ligeiramente
amendoados, revelando a ascendência quíchua ou aymará, lembrava um pouco a
deusa Ava Gadner. Segundo versão corrente, fora seduzida por um moço de família
libanesa, que em seguida a abandonara, abrindo-lhe o caminho da prostituição,
como já fizera com meia dúzia de outras jovens suburbanas. Mas o certo é que o
amigo de quem falo, sem dinheiro, como sempre, logo engendrou uma farsa para
conquistar a bela Zilpa sem fazer desembolso.
Um dia bateu-lhe à porta e, falando um espanhol de péssima
qualidade, apresentou-se como agente do FBI, de nacionalidade colombiana, que
procurava um perigoso gangster. E exibiu a fotografia do meu amigo Mário Rocha,
mais tarde representante do Itamaraty em Manaus, que somente anos depois tomou
conhecimento do episódio.
Daí a conversa enveredou por outros rumos, foi mencionada de
passagem uma polpuda quantia em dólares que o nosso amigo estaria prestes a
receber e, como era de esperar, Zilpa acabou cedendo. Nesse dia e nos
subsequentes. No terceiro dia, como ela reclamasse por dinheiro, deu-lhe por
conta um cordão de outo, de pequeno valor, que trazia ao pescoço.
No sexto dia, já impaciente, ela fez uma cobrança mais
incisiva, e ele, sorrindo e em bom português, resolveu contar a verdade. Mas a
mulher não achou nenhuma graça. Armada de um tamborete, perseguiu-o pelo
pequeno quarto, até que ele conseguiu destrancar a portar e fugir, livrando-se
de um sufoco que poderia ter-lhe custado muito caro.
Mas Zilpa, ao que parece, tinha uma grande reserva de
boa-fé, pois foi enganada novamente por outro companheiro nosso, hoje
funcionário aposentado no Basa. Este conseguiu enrolar a morena com a história
de uma herança, que estava na iminência de receber. E foi tão persuasivo, que
se instalou em seu quarto com mala e tudo, vivendo no paraíso durante uma
semana. No sétimo dia, ao perceber que a situação era insustentável, decidiu
sair à francesa. De manhã bem cedo pegou a mala e se esgueirou sem fazer ruído,
mas no meio da passagem da estância foi notado por uma vizinha, que deu o
alarme, O jeito foi correr, perseguido pelas mulheres, aos gritos de xexeiro e
sob o bombardeio de sapatos, vassoura e outros petardos, dos quais se defendeu
como pôde, fazendo a maleta do escudo.
Esse companheiro, incorrigível como o outro, quando ainda
servia ao Exército, entrou um dia numa pensão na Lobo d’Almada, igualmente
disposto a escapulir sem pagar. Mas se deu mal. A mulher percebeu a tempo a
manobra e exigiu pagamento. Sem outra saída, viu-se obrigado a deixar o capote
militar como garantia. No dia seguinte, arranjou dinheiro e foi resgatá-lo, a
fim de escapar de um inevitável xadrez.
Um terceiro membro do grupo, mais tarde respeitável
integrante do Poder Judiciário, certa vez se meteu em apuros por motivo
semelhante. Seu alvo foi uma das meninas da Zona, que ganhara fama por ter
bezerro, particularidade anatômica raríssima, muito apreciada pelos homens, e
que, por isso mesmo, elevava a cotação das mulheres que a possuíam.
Esse amigo procurou-a, tiveram o encontro, num quarto da
Frei José dos Inocentes e, antes de efetuado o pagamento, se dirigiram, juntos,
para o reservado do bar Americano, que em sua fase decadente era frequentado
por prostitutas. Sentaram-se, tomando cerveja quando, a certa altura, sempre
com o velho pretexto de ir ao mictório, ele se levantou e empreendeu a fuga.
Perseguido pela mulher, subiu a Eduardo Ribeiro, correndo,
debaixo da chuva, no momento em que acabava a sessão do Avenida. Em meio à curiosidade
dos passantes, a perseguição continuou até as proximidades do Tribunal, quando
a mulher afinal desistiu. Poucos depois o nosso amigo chegava à sua casa, na
Praça da Saudade, com a roupa ensopada e o coração aos pulos, de cansaço e de
susto.
Poderia mencionar ainda outras passagens, para mostrar os
expedientes a que tinha de recorrer a rapaziada para exercer uma atividade que
podia sair bastante onerosa. Principalmente quando tínhamos de procurar as
mulheres mais cotadas, em cabarés distantes, como o Bar da Panair e o
Quitandinha. Somados a cachê da mulher, a despesa do bar, o aluguel do quarto e
a corrida de carro, ida e volta, o montante dos gastos podia ser proibitivo
para a grande maioria.
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