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segunda-feira, junho 10, 2019

Os sons da nossa cidade (1)



Por Thiago de Mello

É de justiça começar com o som do apito que chamava os operários para o trabalho, às 7 horas da manhã, na serraria do Monte Cristo. Os trabalhadores entravam por porta pequenina, encravada na banda direita do enorme e pesado portão, de dobradiças de quase meio metro. Alguns eram já idosos, ombros curvos, como o seu Venturino, que tinha as mãos enormes e nos contava a vida das madeiras, sabia o nome de todas e as conhecia de relance, os olhos apertados a puxar pela ciência, mesmo de longe quando elas ainda vinham na jangada, lá na boca do igarapé. “Aquilo é cedro do melhor”.

O apito – era grosso, zangado – tocava mais três vezes: às onze, à uma e às cinco da tarde. Os operários já conheciam a jornada de oito horas, com duas para almoço; todos iam à casa e voltavam, com exceção do Modestino, trabalhador da serra, que aproveitava as horas de folga para empinar papagaio, depois comia um jaraqui ali na estância do fim da rua Isabel, onde morava a namorada, não me lembro o nome dela, tinha pernas altas, ajudava a mãe a lavar roupa, o ouvido atento no apito.

Era triste e prolongado o apito da Fábrica de Cerveja. Subia lá no São Raimundo e a gente ouvia lá na Zé Paranaguá. Um velho caboclo, que lá trabalhou mais de trinta anos, a quem conheci adolescente e reencontrei tempos depois, me garantiu que o último apito soava às seis da tarde, aumentando a jornada em uma hora. Também me garantiu que a XPTO era muito mais saborosa do que a cerveja fabricada pelos atuais donos da fábrica, cujo apito não sei se ainda funciona.

O apito da Sub-Usina de Luz na Cachoeirinha, que era também o lugar onde os bondes dormiam. Esse apito tinha uma generosa singularidade: era o primeiro que se ouvia na cidade, às seis horas da manhã. Não para indicar o início dos trabalhos, mas para acordar os operários. Prestava, de resto, um serviço aos moradores da vizinhança: era também um aviso de que dez minutos depois partiria o primeiro bonde da Cachoeirinha.

Já a principal usina de luz, que ficava ali no Tocos, tinha um apito que era um verdadeiro uivo, e não existe outro adjetivo que lhe caiba a não ser este: lancinante. O apito tinha os seus especiais timbres, para significados e funções diferentes. Quase ninguém se apercebia dele quando, sóbrio, conquanto sempre roufenho, dizia à turma da eletricidade e ao pessoal da lenha na caldeira (os olhos dos operários eram tochas de fogo) que estava na hora do rojão.

Mas a cidade inteira se sacudia, inquieta, quando a usina da luz dava “aquele” seu apito, chamando os bombeiros para apagar um incêndio. Havia um timbre intermediário, que os mais antigos sabiam distinguir: o que chamava os empregados da usina para alguma anormalidade no funcionamento das máquinas. “Não, isso não é incêndio” – ouvi o seu Félix Bayma dizer sentado ao portão da casa, uma noite de São Pedro, a fogueira ardia no meio da rua Isabel. – “Isso é alguma válvula da caldeira que quebrou”.

O historiador amazonense Mário Ypiranga Monteiro (que me fez alguns bons reparos ao texto da primeira edição e deu mais de um quinau a muita memória encardida) me garante que a Fábrica de Cerveja não tinha apito. Ele nasceu e viveu no Tocos até 1924, tem bons motivos para saber o que diz: “O único apito (aliás era proibido pelo Código de Posturas o barulho de sinos e de apitos indiscriminadamente) era o da Usina de Luz, invariavelmente às seis da manhã e às seis da tarde em ponto: três apitos com pequenos intervalos.”

Trago também a canção áspera do apito da Fábrica de Castanha, do Sabá, ali no Monte Cristo, onde os operários quebravam e secavam as castanhas nas estufas. E também merece um lugar o apito do Forno do Lixo, lá no Tocos.

Vamos continuar com a vida vivida pelo som dos apitos, só que agora é com os dos barcos, mágica matéria sonora da cultura daquela cidade que se acabou. “Eu acho que aquilo é a Onza”, dizia o seu Emídio, na sua taberna da rua Isabel.

“Pois que Onza que nada, esse apito é da Obidense”, discordava o seu Orlando Medeiros, a voz grossona, o cotovelo apoiado no balcão de itaúba. A Onza, da firma Bastos & Cia., a Obidense, da Marques & Cia, firmas portuguesas ambas – eram lanchas boiadeiras. Iam buscar no Rio Branco e traziam para Manaus depois de uma temporada de engorda nos campos dos baixios do Careiro, do Curari, do Janauacá, do Paraná, do Xiborena – o gado para o abate lá no velho Curro, o antigo Matadouro Municipal. O apito da Onza era trinado, agudo e repetido, e tentava imitar a tosse do felino: um longo, seguido de vários, bem breves. Os familiares da tripulação e dos poucos passageiros recebiam o aviso, que atravessava praças e ruas, ia bater lá no bairro do Céu.

Nas casas da orla dos Educandos, quando a Xiborena apitava atravessando o rio, muito caboclo respondia com a cantiga que o povo inventou: “A Xiborena / Quando vem lá do Careiro / Vem fazendo fumaceiro / Com vontade de chegar.”

Certas memórias guardam a estrofe com um verso diferente: em vez de fumaceiro a Xiborena fazia tuque-tuque. Fazia as duas coisas, o povo está certo.

Os dois apitos de largada dos navios que faziam a linha do Médio e do Baixo Amazonas. As “Chatas”, os “Gaiolas” e os “Vaticanos”; o Ajudante, o Cuiabá, o Júpiter, o Tejo, o Distrito Federal, o Belo Horizonte. Primeiro era o som da sineta badalada por um taifeiro de bordo, que ia e voltava da proa à popa, avisando que o navio em quinze minutos ia partir, que descessem as pessoas que não iam viajar. Depois eram os dois graves e prolongados apitos de despedida. A gente chega estremecia: neles como que falava toda a alma encantada dos barcos, cujo comandante, no seu engomado uniforme branco, se despedia da cidade com um largo e digno gesto do braço estendido.

Quem se lembra do apito da Aranha? A Aranha era um rebocador todo negro que servia às manobras de atracação dos grandes navios europeus. Um episódio dramático perdura ligado ao som estridente, agudo, agressivo do apito desse rebocador que certa manhã deu de proa com uma canoa que vinha pelo Rio Negro lá da Ponta do Ismael, bordejando a boca do Igarapé de Manaus. Na canoa vinham a Engrácia e a Quintina, eram irmãs, filhas da dona Biló, as duas remando, quando viram foi a Aranha apitando e vindo em cima delas. Tentaram escapar puxando desesperadamente pelo remo.

A canoa foi atingida pelo meio: só a Engrácia se salvou, a Quintina não apareceu nunca mais. Na moça sobrevivente nasceu pela Aranha um ódio de morte. Quando a avistava se transtornava, aos brados de “Assassina, assassina!” E durante muitos anos acordava no meio da noite sobressaltada com os apitos terríveis do rebocador, que incessantes lhe ressoavam no sonho.

Os sinos da Igreja da Matriz sempre dobraram bonito nas matinas e no Angelus. Nos domingos e dias santificados o sineiro se esmerava. A Matriz, repicando forte e aflita, também ajudava a chamar os bombeiros quando havia incêndio.

Mas durante muitos anos foi a Igreja de São Sebastião que prestou a Manaus um serviço inestimável, com o som do sino do seu relógio. Anunciava não somente as horas, mas também as meias e os quartos de hora, com sinos de amálgamas e timbres diferentes. Lá das alturas da praça, o som se espalhava, chegava longe, companheiro do dia e da noite dos moradores da cidade. O relógio ainda está lá na torre da Igreja, só que silencioso, parado, marcando a hora do entardecer de um tempo que se acabou.

Outros sinos mais modestos, mas de muita e louvada serventia, eram ingredientes sonoros da nossa cultura.

O do carro da Assistência, que ainda não era chamado de ambulância e que não tinha sirene. Era sino mesmo, de som possante, vibrado pelo funcionário que viajava ao lado do motorista, o braço para fora, badalando o sino.

Já bem distinto – na qualidade do som e sobretudo no ritmo – era o da sineta arrogante do carro policial, o vulgar “camburão” de hoje, ao qual naqueles anos o povo chamava de “Manduquinha”, que aliás ganhou sirene em pouco tempo. Cedo o som da Manduquinha se ligaria em nosso espírito de adolescentes pobres à ideia de repressão e violência policial.

Inconfundível, mesmo de longe, era a harmonia formada pelo badalar simultâneo das várias sinetas do Gelo Cristal, do Miranda Correia. Era uma carroça de rodas altas, puxada a cavalo, a caixa verde com os dizeres pintados em dourado, onde o geleiro (havia mais de um; lá na rua Isabel o que chegava era seu Felipe) trazia acumuladas as pedras transparentes que nos fascinavam, produzidas na fábrica lá do Plano Inclinado.

Tempo ainda distante dos eletrodomésticos e das Frigidaire, a geladeira era um móvel de madeira com dois compartimentos verticais, portinholas com dobradiças de metal (isso nas casas ricas) ou uma caixa de madeira com tampa onde se guardava o gelo conservado em serragem. Em cima e ao redor, as garrafas de guaraná Andrade, de cerveja amazonense; na geladeira do seu José Grosso, na Padaria Modelo, em 1937, vi pela primeira vez uma garrafa de vinho Casal Garcia branco.

Bem: as sinetas eram presas em lâminas de aro de barrica, fixada à direita do assento do guieiro, de sorte que balançavam quando a carroça caminhava. Mas o geleiro não ficava só nos sininhos, que serviam apenas para avisar que ele vinha vindo. Para dizer que já chegara, ele mudava de som: tocava então uma buzina de boca dourada e fole de borracha preta.

Apitos de impor silêncio, gravíssimos e solenes, eram os dos navios do Loide do Brasil, quando desatracavam do Roadway. Do Almirante Alexandrino (no qual Machadinho e eu viajamos para estudar no Rio de Janeiro em 1942), do Baipendi (que foi para o fundo, dias depois de deixar Manaus, bombardeado no Atlântico por um submarino alemão, durante a Segunda Guerra. Morreram muitos filhos da cidade. Um deles o meu valente amigo Edgar Rodrigues, irmão do João Batista e da Doralice. Bom de nado e de sorte, salvou-se o Jacaúna Maia, nosso contemporâneo do Ginásio).

Não me lembro dos apitos dos transatlânticos da Booth Line. Em compensação recordo perfeitamente o som da orquestra de cordas e metais do Hilary, os músicos todos de branco no mais alto convés da popa, tocando peças europeias no instante da partida, o cais cheio de gente, o barco enorme se afastando devagarinho.

A montagem deste livro ganhava o caminho do fim quando tivemos a alegria de ouvir de novo o sino da São Sebastião. A poluição sonora da cidade já não lhe permite atravessar grandes espaços. Tornou-se um som digamos doméstico, da intimidade das redondezas da velha praça.

Quem uma vez teve de bancar o geleiro e saiu-se até que muito bem foi o Silvio Moura Tapajós, quando aluno acho que da 4ª série do nosso Ginásio, já o Machado e Silva era o diretor. Organizava-se, manhã cedinho, a partida para um banho no Igarapé do Mindu: alguém conseguira um carro para levar os comes-e-bebes, o grosso da turma iria de bonde.

De repente dá-se com uma pedra de gelo no batente da porta fechada de uma casa ali na Lauro Cavalcanti. Era o que estava faltando para completar a festa. O Silvio é indicado para recolher o gelo e não se faz de rogado. Sucede que no instante mesmo em que ele, já agachado, tentava segurar a pedra escorregadia, eis que a porta se abre, o dono da casa aparece de corpo inteiro. Silvio Moura Tapajós não se deu por achado. Na melhor imitação do sotaque lusitano do seu Felipe, ele anunciou: “Olha o geleiro!”



(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)

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