Por Thiago de Mello
É de justiça começar com o som
do apito que chamava os operários para o trabalho, às 7 horas da manhã, na
serraria do Monte Cristo. Os trabalhadores entravam por porta pequenina,
encravada na banda direita do enorme e pesado portão, de dobradiças de quase
meio metro. Alguns eram já idosos, ombros curvos, como o seu Venturino, que
tinha as mãos enormes e nos contava a vida das madeiras, sabia o nome de todas
e as conhecia de relance, os olhos apertados a puxar pela ciência, mesmo de
longe quando elas ainda vinham na jangada, lá na boca do igarapé. “Aquilo é
cedro do melhor”.
O apito – era grosso, zangado
– tocava mais três vezes: às onze, à uma e às cinco da tarde. Os operários já
conheciam a jornada de oito horas, com duas para almoço; todos iam à casa e
voltavam, com exceção do Modestino, trabalhador da serra, que aproveitava as
horas de folga para empinar papagaio, depois comia um jaraqui ali na estância
do fim da rua Isabel, onde morava a namorada, não me lembro o nome dela, tinha
pernas altas, ajudava a mãe a lavar roupa, o ouvido atento no apito.
Era triste e prolongado o
apito da Fábrica de Cerveja. Subia lá no São Raimundo e a gente ouvia lá na Zé
Paranaguá. Um velho caboclo, que lá trabalhou mais de trinta anos, a quem
conheci adolescente e reencontrei tempos depois, me garantiu que o último apito
soava às seis da tarde, aumentando a jornada em uma hora. Também me garantiu
que a XPTO era muito mais saborosa do que a cerveja fabricada pelos atuais
donos da fábrica, cujo apito não sei se ainda funciona.
O apito da Sub-Usina de Luz na
Cachoeirinha, que era também o lugar onde os bondes dormiam. Esse apito tinha
uma generosa singularidade: era o primeiro que se ouvia na cidade, às seis
horas da manhã. Não para indicar o início dos trabalhos, mas para acordar os
operários. Prestava, de resto, um serviço aos moradores da vizinhança: era
também um aviso de que dez minutos depois partiria o primeiro bonde da
Cachoeirinha.
Já a principal usina de luz,
que ficava ali no Tocos, tinha um apito que era um verdadeiro uivo, e não
existe outro adjetivo que lhe caiba a não ser este: lancinante. O apito tinha
os seus especiais timbres, para significados e funções diferentes. Quase
ninguém se apercebia dele quando, sóbrio, conquanto sempre roufenho, dizia à
turma da eletricidade e ao pessoal da lenha na caldeira (os olhos dos operários
eram tochas de fogo) que estava na hora do rojão.
Mas a cidade inteira se
sacudia, inquieta, quando a usina da luz dava “aquele” seu apito, chamando os
bombeiros para apagar um incêndio. Havia um timbre intermediário, que os mais
antigos sabiam distinguir: o que chamava os empregados da usina para alguma
anormalidade no funcionamento das máquinas. “Não, isso não é incêndio” – ouvi o
seu Félix Bayma dizer sentado ao portão da casa, uma noite de São Pedro, a
fogueira ardia no meio da rua Isabel. – “Isso é alguma válvula da caldeira que
quebrou”.
O historiador amazonense Mário
Ypiranga Monteiro (que me fez alguns bons reparos ao texto da primeira edição e
deu mais de um quinau a muita memória encardida) me garante que a Fábrica de
Cerveja não tinha apito. Ele nasceu e viveu no Tocos até 1924, tem bons motivos
para saber o que diz: “O único apito (aliás era proibido pelo Código de
Posturas o barulho de sinos e de apitos indiscriminadamente) era o da Usina de
Luz, invariavelmente às seis da manhã e às seis da tarde em ponto: três apitos
com pequenos intervalos.”
Trago também a canção áspera
do apito da Fábrica de Castanha, do Sabá, ali no Monte Cristo, onde os
operários quebravam e secavam as castanhas nas estufas. E também merece um
lugar o apito do Forno do Lixo, lá no Tocos.
Vamos continuar com a vida
vivida pelo som dos apitos, só que agora é com os dos barcos, mágica matéria
sonora da cultura daquela cidade que se acabou. “Eu acho que aquilo é a Onza”,
dizia o seu Emídio, na sua taberna da rua Isabel.
“Pois que Onza que nada, esse
apito é da Obidense”, discordava o seu Orlando Medeiros, a voz grossona, o
cotovelo apoiado no balcão de itaúba. A Onza, da firma Bastos & Cia., a
Obidense, da Marques & Cia, firmas portuguesas ambas – eram lanchas
boiadeiras. Iam buscar no Rio Branco e traziam para Manaus depois de uma
temporada de engorda nos campos dos baixios do Careiro, do Curari, do Janauacá,
do Paraná, do Xiborena – o gado para o abate lá no velho Curro, o antigo
Matadouro Municipal. O apito da Onza era trinado, agudo e repetido, e tentava
imitar a tosse do felino: um longo, seguido de vários, bem breves. Os
familiares da tripulação e dos poucos passageiros recebiam o aviso, que
atravessava praças e ruas, ia bater lá no bairro do Céu.
Nas casas da orla dos
Educandos, quando a Xiborena apitava atravessando o rio, muito caboclo
respondia com a cantiga que o povo inventou: “A Xiborena / Quando vem lá do
Careiro / Vem fazendo fumaceiro / Com vontade de chegar.”
Certas memórias guardam a
estrofe com um verso diferente: em vez de fumaceiro a Xiborena fazia
tuque-tuque. Fazia as duas coisas, o povo está certo.
Os dois apitos de largada dos
navios que faziam a linha do Médio e do Baixo Amazonas. As “Chatas”, os
“Gaiolas” e os “Vaticanos”; o Ajudante, o Cuiabá, o Júpiter, o Tejo, o Distrito
Federal, o Belo Horizonte. Primeiro era o som da sineta badalada por um
taifeiro de bordo, que ia e voltava da proa à popa, avisando que o navio em
quinze minutos ia partir, que descessem as pessoas que não iam viajar. Depois eram
os dois graves e prolongados apitos de despedida. A gente chega estremecia:
neles como que falava toda a alma encantada dos barcos, cujo comandante, no seu
engomado uniforme branco, se despedia da cidade com um largo e digno gesto do
braço estendido.
Quem se lembra do apito da
Aranha? A Aranha era um rebocador todo negro que servia às manobras de
atracação dos grandes navios europeus. Um episódio dramático perdura ligado ao
som estridente, agudo, agressivo do apito desse rebocador que certa manhã deu
de proa com uma canoa que vinha pelo Rio Negro lá da Ponta do Ismael,
bordejando a boca do Igarapé de Manaus. Na canoa vinham a Engrácia e a
Quintina, eram irmãs, filhas da dona Biló, as duas remando, quando viram foi a
Aranha apitando e vindo em cima delas. Tentaram escapar puxando
desesperadamente pelo remo.
A canoa foi atingida pelo
meio: só a Engrácia se salvou, a Quintina não apareceu nunca mais. Na moça sobrevivente
nasceu pela Aranha um ódio de morte. Quando a avistava se transtornava, aos
brados de “Assassina, assassina!” E durante muitos anos acordava no meio da
noite sobressaltada com os apitos terríveis do rebocador, que incessantes lhe
ressoavam no sonho.
Os sinos da Igreja da Matriz
sempre dobraram bonito nas matinas e no Angelus. Nos domingos e dias
santificados o sineiro se esmerava. A Matriz, repicando forte e aflita, também
ajudava a chamar os bombeiros quando havia incêndio.
Mas durante muitos anos foi a
Igreja de São Sebastião que prestou a Manaus um serviço inestimável, com o som
do sino do seu relógio. Anunciava não somente as horas, mas também as meias e
os quartos de hora, com sinos de amálgamas e timbres diferentes. Lá das alturas
da praça, o som se espalhava, chegava longe, companheiro do dia e da noite dos
moradores da cidade. O relógio ainda está lá na torre da Igreja, só que
silencioso, parado, marcando a hora do entardecer de um tempo que se acabou.
Outros sinos mais modestos,
mas de muita e louvada serventia, eram ingredientes sonoros da nossa cultura.
O do carro da Assistência, que
ainda não era chamado de ambulância e que não tinha sirene. Era sino mesmo, de
som possante, vibrado pelo funcionário que viajava ao lado do motorista, o braço
para fora, badalando o sino.
Já bem distinto – na qualidade
do som e sobretudo no ritmo – era o da sineta arrogante do carro policial, o
vulgar “camburão” de hoje, ao qual naqueles anos o povo chamava de
“Manduquinha”, que aliás ganhou sirene em pouco tempo. Cedo o som da
Manduquinha se ligaria em nosso espírito de adolescentes pobres à ideia de
repressão e violência policial.
Inconfundível, mesmo de longe,
era a harmonia formada pelo badalar simultâneo das várias sinetas do Gelo
Cristal, do Miranda Correia. Era uma carroça de rodas altas, puxada a cavalo, a
caixa verde com os dizeres pintados em dourado, onde o geleiro (havia mais de
um; lá na rua Isabel o que chegava era seu Felipe) trazia acumuladas as pedras
transparentes que nos fascinavam, produzidas na fábrica lá do Plano Inclinado.
Tempo ainda distante dos
eletrodomésticos e das Frigidaire, a geladeira era um móvel de madeira com dois
compartimentos verticais, portinholas com dobradiças de metal (isso nas casas
ricas) ou uma caixa de madeira com tampa onde se guardava o gelo conservado em
serragem. Em cima e ao redor, as garrafas de guaraná Andrade, de cerveja
amazonense; na geladeira do seu José Grosso, na Padaria Modelo, em 1937, vi
pela primeira vez uma garrafa de vinho Casal Garcia branco.
Bem: as sinetas eram presas em
lâminas de aro de barrica, fixada à direita do assento do guieiro, de sorte que
balançavam quando a carroça caminhava. Mas o geleiro não ficava só nos
sininhos, que serviam apenas para avisar que ele vinha vindo. Para dizer que já
chegara, ele mudava de som: tocava então uma buzina de boca dourada e fole de
borracha preta.
Apitos de impor silêncio,
gravíssimos e solenes, eram os dos navios do Loide do Brasil, quando
desatracavam do Roadway. Do Almirante Alexandrino (no qual Machadinho e eu
viajamos para estudar no Rio de Janeiro em 1942), do Baipendi (que foi para o
fundo, dias depois de deixar Manaus, bombardeado no Atlântico por um submarino
alemão, durante a Segunda Guerra. Morreram muitos filhos da cidade. Um deles o
meu valente amigo Edgar Rodrigues, irmão do João Batista e da Doralice. Bom de
nado e de sorte, salvou-se o Jacaúna Maia, nosso contemporâneo do Ginásio).
Não me lembro dos apitos dos
transatlânticos da Booth Line. Em compensação recordo perfeitamente o som da
orquestra de cordas e metais do Hilary, os músicos todos de branco no mais alto
convés da popa, tocando peças europeias no instante da partida, o cais cheio de
gente, o barco enorme se afastando devagarinho.
A montagem deste livro ganhava
o caminho do fim quando tivemos a alegria de ouvir de novo o sino da São
Sebastião. A poluição sonora da cidade já não lhe permite atravessar grandes
espaços. Tornou-se um som digamos doméstico, da intimidade das redondezas da
velha praça.
Quem uma vez teve de bancar o geleiro
e saiu-se até que muito bem foi o Silvio Moura Tapajós, quando aluno acho que
da 4ª série do nosso Ginásio, já o Machado e Silva era o diretor.
Organizava-se, manhã cedinho, a partida para um banho no Igarapé do Mindu:
alguém conseguira um carro para levar os comes-e-bebes, o grosso da turma iria
de bonde.
De repente dá-se com uma pedra
de gelo no batente da porta fechada de uma casa ali na Lauro Cavalcanti. Era o
que estava faltando para completar a festa. O Silvio é indicado para recolher o
gelo e não se faz de rogado. Sucede que no instante mesmo em que ele, já
agachado, tentava segurar a pedra escorregadia, eis que a porta se abre, o dono
da casa aparece de corpo inteiro. Silvio Moura Tapajós não se deu por achado.
Na melhor imitação do sotaque lusitano do seu Felipe, ele anunciou: “Olha o
geleiro!”
(Do livro “Manaus, Amor e
Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)
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