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terça-feira, junho 04, 2019

Manaus, amor e memória



Por Thiago de Mello

Este livro é um gesto simples de amor. Pela cidade que pode não ser das mais lindas do mundo, que até ultimamente deu de ficar o seu tanto ou quanto feiosa, mas, em compensação, ficou também famosa, porque foi transformada em zona franca. Cidade onde nem mesmo nasci: orgulho que não consigo esconder é o de ter nascido no Bom Socorro, nome do lugar do meu avô no meio da floresta de Barreirinha. E, sem embargo, é a cidade à qual estou essencialmente mais agarrado. Pois foi ela que de mim fez o que sou.

Isso quer dizer que tudo devo a Manaus? Claro que não. Muito ganhei de todos os tantos lugares deste chão humano chamado Terra por onde venho aprendendo a viver e a conviver, quero dizer, a amar. A algumas cidades sei que devo demais. A nenhuma cidade sei que devo demais. A nenhuma talvez tanto como ao Rio de Janeiro, aonde cheguei aos quinze anos; o Rio me deu de comer, na palma de sua mão atlântica, o fel e o mel da existência humana. É uma das poucas cidades cuja alma posso dizer que conheço.

O coração me pede a justiça de dizer quais são as outras. As outras são: Santiago do Chile, banhada pela eterna luz das neves da Cordilheira, onde vivi talvez los más hermosos e também os mais terríveis momentos de minha vida; a pequenina Ilha de Páscoa, perdida na imensidão do oceano Pacífico, a cujo redor estão as maiores distâncias marítimas, onde morei tão pouco tempo, entre as suas misteriosas esculturas gigantescas, com homens, mulheres e crianças, poetas, pescadores e dançarinos, irmãos do vento, parentes dos pássaros – com os quais aprendi, definitivamente, que a convivência fraterna é possível entre os seres humanos: ilha da qual me despedi com as lágrimas escorrendo, abraçado aos meus inesquecíveis amigos pascuenses, eles também chorando, só que choravam cantando e dançando diante do mar. 

A outra fica na Alemanha: é Mogúncia, Mainz, mein liebes Mainz, a pequenina cidade que me deu exílio, onde ainda se resguarda, com os mais civilizados cuidados, a impressora que Guttermberg, natural de Mainz, construiu com as próprias mãos e onde, nos meus primeiros dias de forçada cidadania só tinha por companheiro de conversa o poeta Schiller, em cujo monumento eu depositava, agradecido, uma tulipa orvalhada. Em Mainz aprendi as mais duras lições da solidão humana.

Só eu sei a importância que certas cidades tiveram e continuaram a ter na minha vida sobretudo pelo que nelas vivi e encontrei, mas também pelo que elas são, pelo que guardam dentro delas, enquanto urbe edificada pela mão humana. De todas as que habitei, Paris, como todo mundo sabe, é a mais bela. O meu maior encantamento em Paris sempre foi andar a pé, sem rumo pelas suas ruas, principalmente quando chegava a primavera: acabava sempre dando com o Sena, as suas águas esverdeadas lambendo as falésias da Notre Dame.

Jamais poderei me esquecer de Berlim, a moça dourada avançando de perfil no entardecer de inverno na sua avenida Central, em direção às ruínas da catedral bombardeada. Às vezes sonho com a Grand Place de Bruxelas, levado para uma cerveja espessa pela boa mão do meu camarada José Ibrahim; e confesso que sinto saudades físicas de Lisboa, uma das cidades que mais amo, e me distraio em refazer de memória o percurso do Chiado ao Rossio, descendo e subindo as ladeiras do cesario da Alfama ou a contemplação do mar do alto do Farol do Cabo, a visita aos túmulos de Camões e de Vasco da Gama, nos Jerônimos, de braço dado ao meu amigo, o escritor Jacinto Baptista, português da melhor cepa.

Fazem parte da minha substância humana mais íntima, e me ajudaram à formação de uma concepção de mundo e de vida – tantos descobrimentos culturais que fiz nos mais diversos espaços trabalhados pelo homem para lhe servir de morada. Atenas e sobretudo Roma me ensinaram mais do que todos os livros do mundo sobre os poderes do gênero humano em matéria de arte e de engenho, de invenção e do gosto de domínio. Posso viver setecentos anos e resguardei intacta a emoção e límpidos os detalhes de tudo que vi e vivi em Trento e em Verona, aonde fui levado pelo coração do caboclo meu irmão Araujo Neto. 

Ciudad de Mexico, Cuernavaca, Guadalajara (onde em 67 estive com Guimarães Rosa pela última vez), Madrid e Barcelona, Ibiza, com os seus muros brancos e as camponesas vestidas de negro. A impressionante Praga, com a gente cativante, as suas pontes solenes e a imensa praça de São Stanislaw, onde num anoitecer com os poetas companheiros Cesar Calvo, peruano, e Henrique Lihn, chileno, quase morremos de frio. 

A linda La Paz com o rosado Himani e os seus índios miseráveis, que me abriram a porta do fantástico universo do altiplano dos Andes, onde o frio é azul como a pele dos mortos. E Havana, La Habana do meu coração, onde encontrei o povo mais parecido ao nosso e vi com estes meus olhos, que ainda queimam, o milagre real da construção de um homem novo. A Montevideo de Antonio Grompone, Fernando Pareda e Mario Benedetti. A Buenos Aires de Luiz Felipe Noé. Valparaiso do Pancho e da Maria Martner.

Não posso dar nem cabe aqui o nome das centenas de cidades brasileiras sem cujo conhecimento eu não poderia nunca compreender bem a história do meu país e a vida do meu povo. Mas faço questão de dizer o nome do Recife, de Salvador, de São Luiz do Maranhão e de Belém do Pará, de Porto Alegre, de São Paulo e de Belo Horizonte. Ainda que a grande e verdadeira cara brasileira eu a tenha encontrado nas pequenas vilas e lugarejos do interior. E em poucos lugares do mundo encontrei tanta beleza criada pelo engenho humano (beleza descuidada e ameaçada) como em Congonhas do Campo, Ouro Preto, Alcântara.

Não devo concluir este ligeiro rol de cidades, em cujas ruas e casas acabo por me perder, sem gravar aqui o nome da cidade-cidadela dos Incas, Macchu Picchu, que me feriu para sempre, na altura da sua solitária majestade de pedra, com a sua espada de sol e de silêncio.

Pois ora. Se por lugares andei, se em tantas cidades vivi e de todas muito gastei, por que então digo que foi Manaus que me fez o que sou? Simplesmente porque de Manaus ganhei o principal: os alicerces da vida do homem, que se edificaram na minha meninice, toda ela vivida em Manaus, chão e céu de minha adolescência inteira. Tão rica, tão bonita e tão bem vivida foi a minha infância de menino pobre, que o seu poder – o poder de ser menino – nunca me abandonou: até hoje perdura dentro do meu peito.

Foi em Manaus que pela primeira vez senti, queimando profundas, as solicitações do amor, da arte e da justiça. Aqui nas beiradas dos nossos igarapés a vida me abriu os olhos para as desigualdades sociais, cujas causas só mais tarde eu viria a enxergar. Esta cidade me plantou a perplexidade perante a pobreza, e me ensinou a valorizar o sentimento da amizade como um dos mais belos dons da condição humana. 

Aqui descobri a força do sentimento solidário e a certeza de que o ser humano nunca está sozinho. Aqui descobri o sortilégio das palavras, o poder mágico da música e fui conquistado definitivamente para uma forma fascinante de alegria que só o esporte – e em particular o futebol – proporciona ao homem. Quando sai de Manaus para percorrer no Rio os caminhos de minha mocidade, já levava comigo, abertas e irresistíveis, as vertentes fundamentais da minha vida.



(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)

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