Por
Thiago de Mello
Este
livro é um gesto simples de amor. Pela cidade que pode não ser das mais lindas
do mundo, que até ultimamente deu de ficar o seu tanto ou quanto feiosa, mas,
em compensação, ficou também famosa, porque foi transformada em zona franca.
Cidade onde nem mesmo nasci: orgulho que não consigo esconder é o de ter
nascido no Bom Socorro, nome do lugar do meu avô no meio da floresta de
Barreirinha. E, sem embargo, é a cidade à qual estou essencialmente mais
agarrado. Pois foi ela que de mim fez o que sou.
Isso
quer dizer que tudo devo a Manaus? Claro que não. Muito ganhei de todos os
tantos lugares deste chão humano chamado Terra por onde venho aprendendo a
viver e a conviver, quero dizer, a amar. A algumas cidades sei que devo demais.
A nenhuma cidade sei que devo demais. A nenhuma talvez tanto como ao Rio de
Janeiro, aonde cheguei aos quinze anos; o Rio me deu de comer, na palma de sua
mão atlântica, o fel e o mel da existência humana. É uma das poucas cidades
cuja alma posso dizer que conheço.
O
coração me pede a justiça de dizer quais são as outras. As outras são: Santiago
do Chile, banhada pela eterna luz das neves da Cordilheira, onde vivi talvez
los más hermosos e também os mais terríveis momentos de minha vida; a pequenina
Ilha de Páscoa, perdida na imensidão do oceano Pacífico, a cujo redor estão as
maiores distâncias marítimas, onde morei tão pouco tempo, entre as suas
misteriosas esculturas gigantescas, com homens, mulheres e crianças, poetas,
pescadores e dançarinos, irmãos do vento, parentes dos pássaros – com os quais
aprendi, definitivamente, que a convivência fraterna é possível entre os seres
humanos: ilha da qual me despedi com as lágrimas escorrendo, abraçado aos meus
inesquecíveis amigos pascuenses, eles também chorando, só que choravam cantando
e dançando diante do mar.
A
outra fica na Alemanha: é Mogúncia, Mainz, mein liebes Mainz, a pequenina
cidade que me deu exílio, onde ainda se resguarda, com os mais civilizados
cuidados, a impressora que Guttermberg, natural de Mainz, construiu com as
próprias mãos e onde, nos meus primeiros dias de forçada cidadania só tinha por
companheiro de conversa o poeta Schiller, em cujo monumento eu depositava,
agradecido, uma tulipa orvalhada. Em Mainz aprendi as mais duras lições da
solidão humana.
Só eu
sei a importância que certas cidades tiveram e continuaram a ter na minha vida
sobretudo pelo que nelas vivi e encontrei, mas também pelo que elas são, pelo
que guardam dentro delas, enquanto urbe edificada pela mão humana. De todas as
que habitei, Paris, como todo mundo sabe, é a mais bela. O meu maior
encantamento em Paris sempre foi andar a pé, sem rumo pelas suas ruas,
principalmente quando chegava a primavera: acabava sempre dando com o Sena, as
suas águas esverdeadas lambendo as falésias da Notre Dame.
Jamais
poderei me esquecer de Berlim, a moça dourada avançando de perfil no entardecer
de inverno na sua avenida Central, em direção às ruínas da catedral
bombardeada. Às vezes sonho com a Grand Place de Bruxelas, levado para uma
cerveja espessa pela boa mão do meu camarada José Ibrahim; e confesso que sinto
saudades físicas de Lisboa, uma das cidades que mais amo, e me distraio em
refazer de memória o percurso do Chiado ao Rossio, descendo e subindo as
ladeiras do cesario da Alfama ou a contemplação do mar do alto do Farol do
Cabo, a visita aos túmulos de Camões e de Vasco da Gama, nos Jerônimos, de
braço dado ao meu amigo, o escritor Jacinto Baptista, português da melhor cepa.
Fazem
parte da minha substância humana mais íntima, e me ajudaram à formação de uma
concepção de mundo e de vida – tantos descobrimentos culturais que fiz nos mais
diversos espaços trabalhados pelo homem para lhe servir de morada. Atenas e
sobretudo Roma me ensinaram mais do que todos os livros do mundo sobre os
poderes do gênero humano em matéria de arte e de engenho, de invenção e do
gosto de domínio. Posso viver setecentos anos e resguardei intacta a emoção e
límpidos os detalhes de tudo que vi e vivi em Trento e em Verona, aonde fui
levado pelo coração do caboclo meu irmão Araujo Neto.
Ciudad
de Mexico, Cuernavaca, Guadalajara (onde em 67 estive com Guimarães Rosa pela
última vez), Madrid e Barcelona, Ibiza, com os seus muros brancos e as
camponesas vestidas de negro. A impressionante Praga, com a gente cativante, as
suas pontes solenes e a imensa praça de São Stanislaw, onde num anoitecer com
os poetas companheiros Cesar Calvo, peruano, e Henrique Lihn, chileno, quase
morremos de frio.
A
linda La Paz com o rosado Himani e os seus índios miseráveis, que me abriram a
porta do fantástico universo do altiplano dos Andes, onde o frio é azul como a
pele dos mortos. E Havana, La Habana do meu coração, onde encontrei o povo mais
parecido ao nosso e vi com estes meus olhos, que ainda queimam, o milagre real
da construção de um homem novo. A Montevideo de Antonio Grompone, Fernando
Pareda e Mario Benedetti. A Buenos Aires de Luiz Felipe Noé. Valparaiso do
Pancho e da Maria Martner.
Não
posso dar nem cabe aqui o nome das centenas de cidades brasileiras sem cujo
conhecimento eu não poderia nunca compreender bem a história do meu país e a
vida do meu povo. Mas faço questão de dizer o nome do Recife, de Salvador, de
São Luiz do Maranhão e de Belém do Pará, de Porto Alegre, de São Paulo e de
Belo Horizonte. Ainda que a grande e verdadeira cara brasileira eu a tenha
encontrado nas pequenas vilas e lugarejos do interior. E em poucos lugares do
mundo encontrei tanta beleza criada pelo engenho humano (beleza descuidada e
ameaçada) como em Congonhas do Campo, Ouro Preto, Alcântara.
Não
devo concluir este ligeiro rol de cidades, em cujas ruas e casas acabo por me
perder, sem gravar aqui o nome da cidade-cidadela dos Incas, Macchu Picchu, que
me feriu para sempre, na altura da sua solitária majestade de pedra, com a sua
espada de sol e de silêncio.
Pois
ora. Se por lugares andei, se em tantas cidades vivi e de todas muito gastei,
por que então digo que foi Manaus que me fez o que sou? Simplesmente porque de
Manaus ganhei o principal: os alicerces da vida do homem, que se edificaram na
minha meninice, toda ela vivida em Manaus, chão e céu de minha adolescência
inteira. Tão rica, tão bonita e tão bem vivida foi a minha infância de menino
pobre, que o seu poder – o poder de ser menino – nunca me abandonou: até hoje
perdura dentro do meu peito.
Foi em
Manaus que pela primeira vez senti, queimando profundas, as solicitações do
amor, da arte e da justiça. Aqui nas beiradas dos nossos igarapés a vida me
abriu os olhos para as desigualdades sociais, cujas causas só mais tarde eu
viria a enxergar. Esta cidade me plantou a perplexidade perante a pobreza, e me
ensinou a valorizar o sentimento da amizade como um dos mais belos dons da
condição humana.
Aqui
descobri a força do sentimento solidário e a certeza de que o ser humano nunca
está sozinho. Aqui descobri o sortilégio das palavras, o poder mágico da música
e fui conquistado definitivamente para uma forma fascinante de alegria que só o
esporte – e em particular o futebol – proporciona ao homem. Quando sai de
Manaus para percorrer no Rio os caminhos de minha mocidade, já levava comigo,
abertas e irresistíveis, as vertentes fundamentais da minha vida.
(Do
livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes
Ltda., em 1984)
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