Por Thiago de Mello
Todos
os do nosso tempo
vão concordar que o primeiro B
só pode ser o do Bombalá. Para ele vale o lugar comum: figura que marcou uma
época. Oriundo de família conceituada e querida – os Daou –, criado com muito
carinho pelas irmãs, forte de corpo e dono de uma invencível alegria de viver,
o Bombalá era, porém, um deficiente mental: não ultrapassou nunca, já adulto, a
idade mental de um menino de dez anos. Mas que maravilhoso menino!
Durante muitos anos ele
repartiu ternura e festa pelas ruas da cidade, com o seu amor pela música, sua
paixão pelos dobrados e (como me observou sagazmente lá no Rio o Alexandre
Carvalho Leal, pai) com um notável gosto pela ordem do trânsito público. Claro
que para alguns apressados (conquanto a pressa nem de longe fora, como hoje,
ingredientes da alma da cidade), Bombalá era apenas um doido, porventura o mais
ostensivo doido de Manaus, porque o seu campo de ação era a rua.
“Tengo la cara de tonto de la
paróquia”, comentava Pablo Neruda sempre que uma foto sua não lhe dizia bem aos
olhos. Pois o Bombalá não tinha cara de leso. Tinha a cara de um bravo, de um
condutor de gentes, seguro do seu chão e de sua missão.
Naqueles anos, era costumeiro
o desfile das bandas militares do 27 BC e da PM pelas ruas centrais, além dos
concertos domingueiros no coreto da praça do Ginásio. Banda Militar tocando, a
gente já sabia: lá vinha o Bombalá à frente dela; com precisos e elegantes
gestos dos dois braços, abrindo, ao ritmo marcial, o caminho dos músicos que
por ele já guardavam afeição, a começar pelo regente, que não se sentia ferido
no ofício por ter à sua frente, bem uns seis, oito metros à frente, aquele que
para a cidade, era o verdadeiro comandante da banda. Bombalá estava sempre
limpo; calças pelo joelho, sapato de tênis e meia branca. Não articulava
palavras, mas emitia fonemas inteligíveis. O sorriso perdido, mas carinhoso, no
carão avermelhado de sol.
Aí pelos seus trinta anos, foi
atropelado, ele a quem tantas vezes vi ordenando o trânsito ali no Canto do
Quintela. Não foi grave o acidente. Mas o Bombalá passou a viver amedrontado.
Quase não saía de casa, vigiado pela família. Perdeu contato com a música e as
crianças. Morreu de tristeza, por volta dos 40 anos. Chamava-se Alexandre. A
última vez que o vi, ano 50 e tantos, ele estava debruçado na sua janela da
Joaquim Nabuco. Atravessei a rua para falar com ele. Fiquei feliz porque o Bombalé
me reconheceu – e sorriu.
B
dos bondes de Manaus,
que marcaram quase meio século
da vida e da cultura da cidade. Único meio de transporte, durante largo tempo,
de toda a população. 200 réis a passagem: o condutor recebia a moeda e
entregava ao passageiro um cupom numerado, em cujo verso vinha impresso um
adágio, um pensamento. Embora muita gente andasse mesmo era a pé, porque não
tinha o dinheirinho para tomar o “rangedor”.
Conto do que vivi: manhã de
domingo saíamos da Quintino Bocayuva para o culto na Joaquim Nabuco. Minha Mãe
à frente conduzindo meu pai e os filhos todos; na verdade, levada pela
milagrosa força da fé, para minha mãe aquela já era uma caminhada para o céu.
Tomávamos o bonde de Nazareth ali na parada da Padaria Modelo. Mas o dinheiro
só dava para a ida. Na volta, a família vinha caminhando. Minha Mãe caminhando
e cantando.
Mas o bonde não era apenas
meio de transporte. As suas engrenagens também davam movimento à sociologia da
cidade. Passear de bonde, dar uma volta no Saudade, fazer o Circular era mais
que divertimento domingueiro: era o costume, virou moda. As famílias
tradicionais não transigiam: primeiro era a missa da Matriz, a das dez, que era
a mais elegante; depois o passeio pelo Roadway; e para fechar a manhã, uma
volta na linha dos Remédios, que ao seu retorno à estação da Manaus Tramways
mudava a placa para Saudade, muitos passageiros nem desciam. Ou então
aproveitavam a parada para tomar um refresco de guaraná gasoso, servido no
quiosque sempre muito limpo, montado por um francês, onde também se podia tomar
um excelente pega-pinto, também chamado pela criançada de rala-rala.
A rapaziada pobre se divertia
a seu modo, inventando um esporte novo e perigoso, que demandava agilidade e
coragem e que deu origem a um verbo só nosso: morcegar. Morcegar consistia em
tomar o bonde em movimento e logo em seguida saltar. Quando o veículo vinha em
marcha moderada, alguns (como o Osmar, do Alto de Nazareth) eram capazes de
tomar e saltar do “bonde andando” mais de uma vez.
O segredo da proeza perfeita
era a simultaneidade: as mãos no balaústre e os pés na plataforma; no salto nem
calculado, as mãos já iam em concha. Rapaz que se prezasse só saltava de
costas, principalmente se a namorada andasse por perto: corria dois ou três
passos na plataforma e se lançava ao ar na direção oposta do bonde; mal tocava
o chão, o corpo iniciava a corrida, também de costas, amortecendo o impulso em
sentido inverso.
Mas proeza que poucos
dominavam, porque exigia perícia de punhos de aço – era pegar o bonde em sua
velocidade máxima: nos nove pontos. Faziam-se apostas, competições. Havia prêmios.
Mas também havia mortes. Como a do Orlando, meu alegre e bom camarada, filho do
famoso seu Cabral – dava jeito em qualquer tipo de fratura óssea – e da dona
Sabá, lá da Vila Pedrosa.
O danado era franzino, mas era
um morcegador sensacional. Saltava de costas dando no ar um giro completo de
corpo. Os seus pulsos finos tinham tutano, as mãos tinham grude quando se
agarravam ao balaústre. Só gostava de pegar o bonde quando o bicho vinha mesmo
desabalado, a chave dos pontos toda aberta. Um dia os pulsos do bom Orlando
falharam, ele não tinha nem quinze anos, as rodas de ferro lhe estraçalharam o
peito.
Num dia gelado de janeiro de
76, cheguei a Wuperthal, levado pelo meu editor, mais que editor, meu irmão
Hermann Schultz. Wuperthal é uma das mais lindas cidades da Alemanha Ocidental,
e a sua gente se orgulha sobretudo de três coisas:
1. Nela nasceu Friedrich
Engels. Numa pedra enorme num ângulo da praça que leva o seu nome, li as
palavras gravadas: “Aqui nasceu Friedrich Engels, o criador do socialismo científico”.
2. Lá se produz, caseiramente,
um “wurst”, salsicha de porco, que vem gente de longe só para saboreá-la.
3. Os seus bondes. São bondes
aéreos, que sobrepercorrem a cidade dependurados não de cabos, mas de
impressionantes estruturas metálicas. Está claro que o bom Hermann me levou a
passear no seu bonde. Aproveitei a viagem (saltamos na parada do zoológico,
onde ursos polares brincavam qual meninos) para falar dos meus bondes de
Manaus, da importância que tiveram na vida da minha cidade.
No dia seguinte, o editor me
estendeu um livro que recolhera na Biblioteca da editora, e perguntou: Você
conhece? Eu não conhecia. Era um livro (guardo o exemplar aqui comigo em
Barreirinha) do Mavignier de Castro: “Síntese Histórica da Evolução de Manaus”.
Não é livro de valor literário, mas emociona pelo amor de Mavignier à nossa
cidade. Li na mesma noite o volume inteiro, relembrando a figura alta do amor
que encontrei pela primeira vez uma noite no Restaurante Central, ali na
Eduardo Ribeiro, conversando com meu Pai.
Deste livro (que uma
Biblioteca estrangeira resguardou, mas tenho dúvidas de que possa ser
encontrado hoje em Biblioteca Pública de nossa cidade) recolhi a informação
minuciosa: Manaus teve “45 bondes, 10 reboques, 6 vagões para carga e condução
de lenha, 2 locomotivas para reparos e um carro-salão denominado “Amazonas, de
uso privativo do Governador do Estado”. Além de uma notícia impressionante: as
caldeiras de usina geradora de luz e energia consumiam diariamente 140
toneladas de lenha, isto é, de floresta.
Mas o bonde era também um
instrumento do amor. Posso garantir que, da minha geração, nenhum namoro chegou
a noivado, nenhum noivado deu em casamento, sem a ajuda do bonde. Boa fase do
namoro consistia simplesmente em (o rapaz) passar de bonde em frente da casa da
namorada, que na janela esperava: era um aceno de mão, um adeusinho, como então
se dizia e que era dado só com dois dedos, e estávamos namorados.
Quando se chegava à fase do
“compromisso”, quer dizer, o rapaz pedia aos pais permissão para namorar a
filha, duas coisas lhe eram permitidas: conversar no portão (mas com a mãe na
janela) e dar uma volta de bonde com a moça, desde que em companhia de irmãs,
de irmãos, de tias enchapeladas. De mão na mão nem esperanças; só quando o bonde
ajudava com uma curva fechada, e almejada (como aquela da descida da rampa dos
Remédios para dobrar pela Barés ou a dos Andradas para a Joaquim Nabuco) – é
que os noivos experimentavam a delícia do aconchego fugaz.
Os casais mais antigos podem
dizer que não estou inventando. Não é verdade, Gilda? Gilda é Gilda Limongi
Batista, foi a namorada, a noiva, a mulher e a companheira – durante trinta e
sete anos – e hoje viúva do meu amado amigo Djalma Batista, um dos grandes
brasileiros do nosso tempo, já vou contar mais dele. Pois ai do amor de Gilda e
Djalma se não fosse o bonde! Sucede que o Djalma era o Djalma e logo do bonde
ele desceu.
É a própria Gilda quem conta:
“Conheci o Djalma numa festa do Rio Negro, quando a sede era ainda na Rua
Barroso. Era a festa do Chitão, tu te lembras? Todas as moças iam vestidas de
chita, foi num novembro. Fui com um vestido estampado de flores azuis, amarelas
e vermelhas, fui com minha mãe dona Filomena e minha irmã Rosa, hoje viúva do
Jackson Cabral. Lá eu conheci o Djalma. Eu já o conhecia de vista. Veja você
essas coisas que acontecem. Eu morava lá na Epaminondas, e ele foi tirar sangue
de dona Teté, na casa ao lado, da família Caminha. Aí nós nos olhamos bem.
Quando ele saiu me lembro que minha irmã me disse: Ah, esse cara é que era bom
pra ti, porque combina bem contigo em temperamento e tudo. Aí foi, me encontrei
com ele na festa do Chitão. Ele me viu e veio logo falar comigo, eu estava
sentada, pediu licença à mamãe (naquele tempo as mães acompanhavam as filhas) para
dançar comigo, todo educado, o Djalma era um gentleman, você sabe bem. Aí
brincamos, dançamos a noite toda, isso foi em novembro.
Na véspera do Natal me
encontrei com ele na Lobrás, na Lobrás não, naquele tempo era o 4 e 400, ele
tinha ido lá para comprar uma bola para um afilhado, eu tinha saído para fazer
compras com a Mamãe. Isso era umas quatro e meia da tarde, foi nosso terceiro
encontro. Da festa do Chitão a gente não saiu ainda namorados. Bem, então ele
veio, falou comigo e com minha Mãe. Daí ele começou a passar no bonde, era no
bonde da Saudade e no da Vila Municipal, passava mais de uma vez de tardinha.
Só aquele negócio, passava e dava adeus. Era o flerte, a gente chamava flerte,
hoje chamam de paquera, não é? Aí de repente ele desceu; desceu no dia 27 de
dezembro. Eu estudava no Auxiliadora, ele veio conversar comigo (eu já estava
gostando dele, eu gostei do Djalma desde o primeiro dia) e então me falou de
namoro.
Eu disse pra ele que sim, mas
que tinha que namorar na porta, minha mãe ficava sentada na cadeira ali do
lado. A gente passeava na calçada da Epaminondas, em frente ao Dom Bosco, e um
dia ou outro a gente dava uma volta de bonde, tinha o Remédios, o Saudade, mas
eu nunca ia só com ele não, ia com a Rosa, com a vizinha amiga; com a minha
futura sogra, dona Edith Castro, a gente então fazia um passeio na linha de
Flores. Com o Djalma eu acho que dei volta foi em todos os bondes de Manaus; no
Vila Municipal, no Instalação, mas nunca saí só, me cansei de ir com a Amine
Daou, ainda solteira, e com a Olga Marques.
No dia 31 fomos ao baile de
réveillon no Ideal, lá ele me deu de presente o seu anel de formatura de
médico. Um ano depois estávamos casados. Mas só porque o Djalma desceu logo do
bonde”.
Além de um ser social, o homem
daquela Manaus que se acabou, a dos tempos do bonde, era essencialmente um ser
cordial. As pessoas não padeciam do mal moderno da desconfiança e do temor ao
próximo. O relacionamento era generoso, de índole inclinada ao diálogo. De
resto, a população era pequena, pouco mais de cinquenta mil habitantes. Por
assim dizer, todo mundo se conhecia, pelo menos de vista ou, como observou
Machado, de vista e de chapéu.
Pois outra virtude do bonde é
que aproximava ainda mais as pessoas. A viagem era um exercício de cordialidade.
Os passageiros do veículo em movimento acenavam para as pessoas nas janelas; os
homens, respeitosos, tiravam o chapéu. O primeiro banco chamava-se cara dura;
os demais eram volteados quando se chegava ao final da linha e os que ali se
sentavam fronteavam a todos os passageiros, particularmente aos que viajavam no
assento seguinte, entre os quais logo se alastrava a prosa de viagem.
Em dias festivos, os
estudantes ganhavam um bonde para passear gratuitamente. Durante duas horas os
ginasianos (às vezes até as normalistas, mas em outro veículo) varavam as ruas
da cidade, tirando cantorias. Alguns motorneiros gostavam de cantar, tiravam as
modinhas. Houve um que, manhã de Sete de Setembro, depois da “parada” escolar
na Praça da Saudade, de repente parou o bonde ali na estrada da Cachoeirinha e
desceu correndo na direção de um casebre de palha e madeira. De primeiro, foi a
reclamação geral. Mas alguns de nós decidimos ir até à casa, lembro que a meu
lado estavam o Cavalo Velho e o Tarzan. A mulher do motorneiro, estendida numa
rede, pele e ossos, convulsivamente dava golfadas de sangue no chão. O bonde
entregou a cabocla na Santa Casa, levada pelos ginasianos.
Lenise, em compensação, nunca
desceu.
Foi num bonde, sentada na
ponta do banco da frente, que eu vi Lenise pela primeira vez. Perdão: que eu vi
os olhos de Lenise pela primeira vez. Eu estava parado na porta de casa, na rua
Silva Ramos, quando o bonde Cachoeirinha passou: nunca mais esquecerei a emoção
daquele momento, meu peito palpitando forte, dominado pelo deslumbramento.
Lenise, eu ainda nem sabia o nome dela, com o seu uniforme azul e branco,
voltava do Colégio Maria Auxiliadora, onde só estudava gente rica. A partir
daquele dia eu tudo fazia para chegar em casa a tempo de não perder a passagem do
bonde que trazia a moça dos olhos estrelados. Para contemplá-la por mais
adiante, onde havia uma parada obrigatória.
O bonde ia embora e em mim
ficavam gravados não só os olhos, mas todo o rosto e os cabelos longos,
levemente ondulados, daquela moça adolescente, quase da minha idade. Vim a
descobrir, algum tempo depois, onde Lenise morava: na Praça da Saudade, num
belo palacete, em cuja varanda, debruçada, eu a via, de tardezinha. Nunca
frequentei tanto a Praça da Saudade. Fiquei sabendo que ela era Rezende e tinha
duas irmãs, a Violeta e a Crisólida, todas de grande beleza.
Às vezes, num banco da Praça,
fronteiro a seu palácio, eu a via rodeada de rapazes, todos maiores do que eu.
Eu ficava só olhando. Nunca falei com Lenise. Para contar toda a verdade,
Lenise nunca nem me olhou. Mas graças a ela – e ao bonde – conheci um dos mais
poderosos sortilégios do coração humano. Pouco tempo depois viajei para o Rio
de Janeiro, aos 15 anos de idade. Quase quinze anos após, na redação do Correio
da Manhã (onde eu publicara na véspera uma crônica em que recordava, não com
todos os detalhes que aqui publicamente entrego, aquele acontecimento da minha
vida) – me chamam ao telefone. O leitor já adivinhou: era Lenise.
Os bondes eram bem cuidados,
limpos, os bancos envernizados. As sanefas de lona marrom, descidas quando a
chuva chegava, funcionavam à maravilha: nos azeites. A campainha não falhava,
armada lá na frente, redonda, em metal reluzente, era acionada por uma corda,
um centímetro de grossura, também marrom: pelos passageiros, para dar o sinal
de parada; pelo condutor, para dar o sinal de partida. Motorneiros permitiam
que os meninos, ao final da linha, virassem a lança na direção oposta:
demandava perícia encaixar a roldana do extremo da lança na altura do fio de
cobre da corrente elétrica. A manivela tinha dois controles de metal dourado,
ligados à misteriosíssima “chave das agulhas”.
As linhas serviam à população
de todo o perímetro urbano. Só deixavam mesmo de fora os moradores de São
Raimundo e dos Educandos, mas só em parte. Porque os primeiros ficavam na
metade do caminho, tomando o “Plano Inclinado”, que depois virou “Fábrica de
Cerveja”. Desciam do bonde e tomavam a catraia para atravessar o igarapé. O
pessoal dos Educandos descia ali na sub-estação da Cachoeirinha e tinha que
gramar a escalada da ladeira.
Os bondes tinham ainda uma
grande serventia: moíam o vidro para o cerol da linha com que empinávamos os
nossos papagaios. De princípio, os motorneiros nem se importavam, acho que até
ficavam contentes: sabiam que os filhos deles também amavam a arte do brinquedo
colorido no vento. Aí por volta dos quarenta e um, ou dois, a repressão
começou. Os guardas batiam, estou dizendo batiam, porrada mesmo, de cassete, em
quem surpreendiam botando cacos de vidro nos trilhos do bonde.
Sucede que de menino ninguém
ganha, não importa se o menino já é grandão de vinte, de cinquenta. Então a
gente esperava o bonde na curva: quando, antes de aparecer, o ruído dele se
abrandava para dobrar, os vidros eram rapidamente colocados nos trilhos e o
motorneiro não tinha tempo de frear. O Paulo Bode, de Pedro Botelho, apanhava o
vidro moído, finíssimo, numa vasilhazinha especial inventada por ele.
Numa noite da Praça 14, um
velho motorneiro me contou (o Boi Caprichoso lá no terreiro dançava como um
danado) que tinha ordens para frear o bonde e chamar a polícia sempre que visse
vidro nos trilhos. “Vidro pra cerol nunca descarrilhou bonde nenhum; o que eles
têm é implicância com os meninos”. “Eles” eram os ingleses da Manaus Tramways,
e os altos funcionários caboclos que queriam ser ainda mais ingleses do que os
donos da Companhia.
O prédio sofisticado da Manaus
Tramways ficava ao centro, espécie de frontão, de um dos conjuntos
arquitetônicos mais belos da cidade (hoje finalmente desfigurado). À sua
direita, o edifício da Booth Line, que se conserva; e à esquerda, a famosa
Leitaria Bolsa Universal, que o tempo comeu. Leitaria era um modo de dar nome
às casas que serviam o café com leite, mas onde também se tomavam a cerveja e o
vinho.
Dia de São João, no Natal e no
último dia do ano, os bondes apareciam com um aviso impresso colado em cada
branco: “Hoje os bondes trafegarão a noite inteira”.
A década de 50 já não conheceu
mais o elétrico, denominação dada ao bonde pelos portugueses de Manaus, trazida
lá da boa terra. Nos começos de 40 apareceram os primeiros ônibus, três ou
quatro, pequenos, trazidos por iniciativa particular. Circularam pouco tempo.
Logo a companhia estrangeira os adquiriu. Para quê? Para retirá-los de
circulação, é claro; e deixá-los apodrecer num saguão da sub-usina da luz, ali
na Cachoeirinha.
“A Manaus Tramways – comentou
um jornal da época – compreendeu que só ela podia explorar o povo, em matéria
de transporte, ou seja, só os seus miseráveis calhambeques poderiam atrapalhar
a nossa vida, tomar o nosso tostão, aborrecer a nossa paciência”.
Os bondes prestaram grandes
serviços, eram asseados e incrivelmente pontuais. Mas aí pelo final da Segunda
Guerra os serviços começaram a entrar em decadência, gerada pela crise da
energia elétrica. Com frequência a cidade ficava completamente às escuras e sem
nenhum transporte, a não ser os carros de praça, cujas “garagens” tinham nomes
e estacionavam atravessados no Centro da Eduardo Ribeiro.
Os fornecedores de lenha exigiam
e a Companhia negava a elevação do preço da tonelada. Mas a verdade é que a
concessionária deixou que o material da empresa se estragasse, os bondes caíram
no desleixo, bancos partidos, o teto cheio de goteiras. A Manaus Tramways
anunciava a aquisição de bondes novos, mas os carros nunca chegavam. Certa
manhã os estudantes da Faculdade de Direito incendiaram um bonde de Nazareth em
plena Praça dos Remédios. Botaram logo a culpa nos comunas. Foi aberto o
competente inquérito.
Em 46 começou a discutir-se no
Congresso Constituinte, e principalmente em Manaus, a nacionalização da
Tramways (já sob intervenção federal militar). Foi quando veio a Manaus o
presidente da The Manaus Tramways and Light Company Limited, Mr. George Booth,
tratar de assuntos com o Governo e os poucos industriais amazonenses.
Demorou-se muito pouco. Faço questão de transcrever fragmentos do noticiário
publicado a respeito pela “A Crítica”, junho de 1946. Não só porque acrescentou
boa substância à memória dos bondes como porque também dá um claro testemunho
do que era a nossa imprensa naqueles dias.
Manchete e sub manchete:
Seguiu
hoje o burguês britânico para os confortos lá da sua terra!
Riquíssimo,
dono de bens e mais bens no Brasil, Mr. Booth é o dono da Tramways – por aí se
tira...
Texto:
Viajando pela carreira, esteve
em Manaus, procedente de Londres, o presidente da The Manaus Tramays And Light
Company, Sr. George Booth, o qual veio a nossos pagos conferenciar com o chefe
do Executivo, a propósito da nacionalização da companhia inglesa.
O dr. Aristides Rocha preparou
uma longa exposição que foi distribuída aos jornalistas.
Espera
a pronta nacionalização
Revelou-nos mr. Booth, o qual
seguiu, hoje, pelo avião da Panair, com destino à capital britânica, via Nova
Iorque, que espera o apoio dos acionistas da Tramways, em Londres, no sentido
da nacionalização da companhia, nos moldes ditados pela Interventoria Federal e
de acordo com a deliberação recentemente formulada pelo Congresso Constituinte.
A
Tramways deu prejuízo
O presidente da Companhia
inglesa adiantou, a uma nossa pergunta, que a Tramways deu prejuízo...
Disse que o capital investido
na empresa foi de 48 milhões de cruzeiros, dos quais apenas 17 milhões são
reembolsados, e assim mesmo em ações.
Esqueceu-se o imperialista britânico,
que é também diretor do London Bank, em Londres, bem como de várias e
importantes companhias de navegações intercontinentais, de mencionar a
enormidade de lucros da concessionária, durante o largo interregno de
administração estrangeira.
É
de família tradicional...
Mr. Booth é de família
tradicional e que fez fortuna do suor do seringueiro amazônico, nos áureos
tempos do ouro negro. É filho do velho Charles Booth, que fundou a Manaus
Harbour e construiu o prédio da Alfândega. É de linhagem azul, possuindo na
cúpula britânica grande prestígio nos arraiais conservadores e públicos, bem
como um rico palácio nos arrabaldes de Liverpool... “Maginem”!
Os
diretores da Pará Eletric fazem o mesmo
Os diretores da Pará Eletric
estão igualmente negociando com o governo paraense, a nacionalização da
empresa. O plano é continental. Todas as empresas estrangeiras da América
Latina estão sendo nacionalizadas, com vantagens é claro, para os capitalistas
adventícios.
Mr. Booth concluiu por referir
o seu possível retorno a Manaus, para o ano vindouro. Diabos te levem corujão, e
não te tragam mais aqui!!!...
(fim da matéria)
Estas eram as linhas de bonde
da cidade: Flores, Circular, Cachoeirinha-Circular, Avenida-Circular, Vila
Municipal, Saudade, Remédio, Alto de Nazareth, Bilhares, Entroncamento, Plano
Inclinado (depois Fábrica de Cerveja).
Os bondes
Bonde de Flores
é bem melhor,
o dos Remédio
não é tão bom,
mas todo bonde
leva em seus bancos
o dia limpo, o sol e o luar,
o bonde passa
na Circular.
Firme no estribo
toma-se o bonde
e as longas lanças
correm nos fios
e suas rodas
rilham nos trilhos
trituram vidros
de papagaios.
Pisca a faísca
nas curvas curtas,
toca a sineta
o condutor,
passa o cupom
o cobrador.
E o bonde leva
amor, amor.
Elson Farias (De Roteiro
Lírico de Manaus em 1900)
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