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sexta-feira, junho 14, 2019

ABCedário íntimo para uso público (4)



Por Thiago de Mello
Todos os do nosso tempo
vão concordar que o primeiro B só pode ser o do Bombalá. Para ele vale o lugar comum: figura que marcou uma época. Oriundo de família conceituada e querida – os Daou –, criado com muito carinho pelas irmãs, forte de corpo e dono de uma invencível alegria de viver, o Bombalá era, porém, um deficiente mental: não ultrapassou nunca, já adulto, a idade mental de um menino de dez anos. Mas que maravilhoso menino! 
Durante muitos anos ele repartiu ternura e festa pelas ruas da cidade, com o seu amor pela música, sua paixão pelos dobrados e (como me observou sagazmente lá no Rio o Alexandre Carvalho Leal, pai) com um notável gosto pela ordem do trânsito público. Claro que para alguns apressados (conquanto a pressa nem de longe fora, como hoje, ingredientes da alma da cidade), Bombalá era apenas um doido, porventura o mais ostensivo doido de Manaus, porque o seu campo de ação era a rua. 
“Tengo la cara de tonto de la paróquia”, comentava Pablo Neruda sempre que uma foto sua não lhe dizia bem aos olhos. Pois o Bombalá não tinha cara de leso. Tinha a cara de um bravo, de um condutor de gentes, seguro do seu chão e de sua missão. 
Naqueles anos, era costumeiro o desfile das bandas militares do 27 BC e da PM pelas ruas centrais, além dos concertos domingueiros no coreto da praça do Ginásio. Banda Militar tocando, a gente já sabia: lá vinha o Bombalá à frente dela; com precisos e elegantes gestos dos dois braços, abrindo, ao ritmo marcial, o caminho dos músicos que por ele já guardavam afeição, a começar pelo regente, que não se sentia ferido no ofício por ter à sua frente, bem uns seis, oito metros à frente, aquele que para a cidade, era o verdadeiro comandante da banda. Bombalá estava sempre limpo; calças pelo joelho, sapato de tênis e meia branca. Não articulava palavras, mas emitia fonemas inteligíveis. O sorriso perdido, mas carinhoso, no carão avermelhado de sol.
Aí pelos seus trinta anos, foi atropelado, ele a quem tantas vezes vi ordenando o trânsito ali no Canto do Quintela. Não foi grave o acidente. Mas o Bombalá passou a viver amedrontado. Quase não saía de casa, vigiado pela família. Perdeu contato com a música e as crianças. Morreu de tristeza, por volta dos 40 anos. Chamava-se Alexandre. A última vez que o vi, ano 50 e tantos, ele estava debruçado na sua janela da Joaquim Nabuco. Atravessei a rua para falar com ele. Fiquei feliz porque o Bombalé me reconheceu – e sorriu.
B dos bondes de Manaus,
que marcaram quase meio século da vida e da cultura da cidade. Único meio de transporte, durante largo tempo, de toda a população. 200 réis a passagem: o condutor recebia a moeda e entregava ao passageiro um cupom numerado, em cujo verso vinha impresso um adágio, um pensamento. Embora muita gente andasse mesmo era a pé, porque não tinha o dinheirinho para tomar o “rangedor”. 
Conto do que vivi: manhã de domingo saíamos da Quintino Bocayuva para o culto na Joaquim Nabuco. Minha Mãe à frente conduzindo meu pai e os filhos todos; na verdade, levada pela milagrosa força da fé, para minha mãe aquela já era uma caminhada para o céu. Tomávamos o bonde de Nazareth ali na parada da Padaria Modelo. Mas o dinheiro só dava para a ida. Na volta, a família vinha caminhando. Minha Mãe caminhando e cantando.
Mas o bonde não era apenas meio de transporte. As suas engrenagens também davam movimento à sociologia da cidade. Passear de bonde, dar uma volta no Saudade, fazer o Circular era mais que divertimento domingueiro: era o costume, virou moda. As famílias tradicionais não transigiam: primeiro era a missa da Matriz, a das dez, que era a mais elegante; depois o passeio pelo Roadway; e para fechar a manhã, uma volta na linha dos Remédios, que ao seu retorno à estação da Manaus Tramways mudava a placa para Saudade, muitos passageiros nem desciam. Ou então aproveitavam a parada para tomar um refresco de guaraná gasoso, servido no quiosque sempre muito limpo, montado por um francês, onde também se podia tomar um excelente pega-pinto, também chamado pela criançada de rala-rala.
A rapaziada pobre se divertia a seu modo, inventando um esporte novo e perigoso, que demandava agilidade e coragem e que deu origem a um verbo só nosso: morcegar. Morcegar consistia em tomar o bonde em movimento e logo em seguida saltar. Quando o veículo vinha em marcha moderada, alguns (como o Osmar, do Alto de Nazareth) eram capazes de tomar e saltar do “bonde andando” mais de uma vez. 
O segredo da proeza perfeita era a simultaneidade: as mãos no balaústre e os pés na plataforma; no salto nem calculado, as mãos já iam em concha. Rapaz que se prezasse só saltava de costas, principalmente se a namorada andasse por perto: corria dois ou três passos na plataforma e se lançava ao ar na direção oposta do bonde; mal tocava o chão, o corpo iniciava a corrida, também de costas, amortecendo o impulso em sentido inverso.
Mas proeza que poucos dominavam, porque exigia perícia de punhos de aço – era pegar o bonde em sua velocidade máxima: nos nove pontos. Faziam-se apostas, competições. Havia prêmios. Mas também havia mortes. Como a do Orlando, meu alegre e bom camarada, filho do famoso seu Cabral – dava jeito em qualquer tipo de fratura óssea – e da dona Sabá, lá da Vila Pedrosa. 
O danado era franzino, mas era um morcegador sensacional. Saltava de costas dando no ar um giro completo de corpo. Os seus pulsos finos tinham tutano, as mãos tinham grude quando se agarravam ao balaústre. Só gostava de pegar o bonde quando o bicho vinha mesmo desabalado, a chave dos pontos toda aberta. Um dia os pulsos do bom Orlando falharam, ele não tinha nem quinze anos, as rodas de ferro lhe estraçalharam o peito.
Num dia gelado de janeiro de 76, cheguei a Wuperthal, levado pelo meu editor, mais que editor, meu irmão Hermann Schultz. Wuperthal é uma das mais lindas cidades da Alemanha Ocidental, e a sua gente se orgulha sobretudo de três coisas: 
1. Nela nasceu Friedrich Engels. Numa pedra enorme num ângulo da praça que leva o seu nome, li as palavras gravadas: “Aqui nasceu Friedrich Engels, o criador do socialismo científico”. 
2. Lá se produz, caseiramente, um “wurst”, salsicha de porco, que vem gente de longe só para saboreá-la. 
3. Os seus bondes. São bondes aéreos, que sobrepercorrem a cidade dependurados não de cabos, mas de impressionantes estruturas metálicas. Está claro que o bom Hermann me levou a passear no seu bonde. Aproveitei a viagem (saltamos na parada do zoológico, onde ursos polares brincavam qual meninos) para falar dos meus bondes de Manaus, da importância que tiveram na vida da minha cidade. 
No dia seguinte, o editor me estendeu um livro que recolhera na Biblioteca da editora, e perguntou: Você conhece? Eu não conhecia. Era um livro (guardo o exemplar aqui comigo em Barreirinha) do Mavignier de Castro: “Síntese Histórica da Evolução de Manaus”. Não é livro de valor literário, mas emociona pelo amor de Mavignier à nossa cidade. Li na mesma noite o volume inteiro, relembrando a figura alta do amor que encontrei pela primeira vez uma noite no Restaurante Central, ali na Eduardo Ribeiro, conversando com meu Pai. 
Deste livro (que uma Biblioteca estrangeira resguardou, mas tenho dúvidas de que possa ser encontrado hoje em Biblioteca Pública de nossa cidade) recolhi a informação minuciosa: Manaus teve “45 bondes, 10 reboques, 6 vagões para carga e condução de lenha, 2 locomotivas para reparos e um carro-salão denominado “Amazonas, de uso privativo do Governador do Estado”. Além de uma notícia impressionante: as caldeiras de usina geradora de luz e energia consumiam diariamente 140 toneladas de lenha, isto é, de floresta.
Mas o bonde era também um instrumento do amor. Posso garantir que, da minha geração, nenhum namoro chegou a noivado, nenhum noivado deu em casamento, sem a ajuda do bonde. Boa fase do namoro consistia simplesmente em (o rapaz) passar de bonde em frente da casa da namorada, que na janela esperava: era um aceno de mão, um adeusinho, como então se dizia e que era dado só com dois dedos, e estávamos namorados. 
Quando se chegava à fase do “compromisso”, quer dizer, o rapaz pedia aos pais permissão para namorar a filha, duas coisas lhe eram permitidas: conversar no portão (mas com a mãe na janela) e dar uma volta de bonde com a moça, desde que em companhia de irmãs, de irmãos, de tias enchapeladas. De mão na mão nem esperanças; só quando o bonde ajudava com uma curva fechada, e almejada (como aquela da descida da rampa dos Remédios para dobrar pela Barés ou a dos Andradas para a Joaquim Nabuco) – é que os noivos experimentavam a delícia do aconchego fugaz. 
Os casais mais antigos podem dizer que não estou inventando. Não é verdade, Gilda? Gilda é Gilda Limongi Batista, foi a namorada, a noiva, a mulher e a companheira – durante trinta e sete anos – e hoje viúva do meu amado amigo Djalma Batista, um dos grandes brasileiros do nosso tempo, já vou contar mais dele. Pois ai do amor de Gilda e Djalma se não fosse o bonde! Sucede que o Djalma era o Djalma e logo do bonde ele desceu.
É a própria Gilda quem conta: “Conheci o Djalma numa festa do Rio Negro, quando a sede era ainda na Rua Barroso. Era a festa do Chitão, tu te lembras? Todas as moças iam vestidas de chita, foi num novembro. Fui com um vestido estampado de flores azuis, amarelas e vermelhas, fui com minha mãe dona Filomena e minha irmã Rosa, hoje viúva do Jackson Cabral. Lá eu conheci o Djalma. Eu já o conhecia de vista. Veja você essas coisas que acontecem. Eu morava lá na Epaminondas, e ele foi tirar sangue de dona Teté, na casa ao lado, da família Caminha. Aí nós nos olhamos bem. Quando ele saiu me lembro que minha irmã me disse: Ah, esse cara é que era bom pra ti, porque combina bem contigo em temperamento e tudo. Aí foi, me encontrei com ele na festa do Chitão. Ele me viu e veio logo falar comigo, eu estava sentada, pediu licença à mamãe (naquele tempo as mães acompanhavam as filhas) para dançar comigo, todo educado, o Djalma era um gentleman, você sabe bem. Aí brincamos, dançamos a noite toda, isso foi em novembro. 
Na véspera do Natal me encontrei com ele na Lobrás, na Lobrás não, naquele tempo era o 4 e 400, ele tinha ido lá para comprar uma bola para um afilhado, eu tinha saído para fazer compras com a Mamãe. Isso era umas quatro e meia da tarde, foi nosso terceiro encontro. Da festa do Chitão a gente não saiu ainda namorados. Bem, então ele veio, falou comigo e com minha Mãe. Daí ele começou a passar no bonde, era no bonde da Saudade e no da Vila Municipal, passava mais de uma vez de tardinha. Só aquele negócio, passava e dava adeus. Era o flerte, a gente chamava flerte, hoje chamam de paquera, não é? Aí de repente ele desceu; desceu no dia 27 de dezembro. Eu estudava no Auxiliadora, ele veio conversar comigo (eu já estava gostando dele, eu gostei do Djalma desde o primeiro dia) e então me falou de namoro. 
Eu disse pra ele que sim, mas que tinha que namorar na porta, minha mãe ficava sentada na cadeira ali do lado. A gente passeava na calçada da Epaminondas, em frente ao Dom Bosco, e um dia ou outro a gente dava uma volta de bonde, tinha o Remédios, o Saudade, mas eu nunca ia só com ele não, ia com a Rosa, com a vizinha amiga; com a minha futura sogra, dona Edith Castro, a gente então fazia um passeio na linha de Flores. Com o Djalma eu acho que dei volta foi em todos os bondes de Manaus; no Vila Municipal, no Instalação, mas nunca saí só, me cansei de ir com a Amine Daou, ainda solteira, e com a Olga Marques.
No dia 31 fomos ao baile de réveillon no Ideal, lá ele me deu de presente o seu anel de formatura de médico. Um ano depois estávamos casados. Mas só porque o Djalma desceu logo do bonde”.
Além de um ser social, o homem daquela Manaus que se acabou, a dos tempos do bonde, era essencialmente um ser cordial. As pessoas não padeciam do mal moderno da desconfiança e do temor ao próximo. O relacionamento era generoso, de índole inclinada ao diálogo. De resto, a população era pequena, pouco mais de cinquenta mil habitantes. Por assim dizer, todo mundo se conhecia, pelo menos de vista ou, como observou Machado, de vista e de chapéu. 
Pois outra virtude do bonde é que aproximava ainda mais as pessoas. A viagem era um exercício de cordialidade. Os passageiros do veículo em movimento acenavam para as pessoas nas janelas; os homens, respeitosos, tiravam o chapéu. O primeiro banco chamava-se cara dura; os demais eram volteados quando se chegava ao final da linha e os que ali se sentavam fronteavam a todos os passageiros, particularmente aos que viajavam no assento seguinte, entre os quais logo se alastrava a prosa de viagem.
Em dias festivos, os estudantes ganhavam um bonde para passear gratuitamente. Durante duas horas os ginasianos (às vezes até as normalistas, mas em outro veículo) varavam as ruas da cidade, tirando cantorias. Alguns motorneiros gostavam de cantar, tiravam as modinhas. Houve um que, manhã de Sete de Setembro, depois da “parada” escolar na Praça da Saudade, de repente parou o bonde ali na estrada da Cachoeirinha e desceu correndo na direção de um casebre de palha e madeira. De primeiro, foi a reclamação geral. Mas alguns de nós decidimos ir até à casa, lembro que a meu lado estavam o Cavalo Velho e o Tarzan. A mulher do motorneiro, estendida numa rede, pele e ossos, convulsivamente dava golfadas de sangue no chão. O bonde entregou a cabocla na Santa Casa, levada pelos ginasianos.
Lenise, em compensação, nunca desceu.
Foi num bonde, sentada na ponta do banco da frente, que eu vi Lenise pela primeira vez. Perdão: que eu vi os olhos de Lenise pela primeira vez. Eu estava parado na porta de casa, na rua Silva Ramos, quando o bonde Cachoeirinha passou: nunca mais esquecerei a emoção daquele momento, meu peito palpitando forte, dominado pelo deslumbramento. Lenise, eu ainda nem sabia o nome dela, com o seu uniforme azul e branco, voltava do Colégio Maria Auxiliadora, onde só estudava gente rica. A partir daquele dia eu tudo fazia para chegar em casa a tempo de não perder a passagem do bonde que trazia a moça dos olhos estrelados. Para contemplá-la por mais adiante, onde havia uma parada obrigatória. 
O bonde ia embora e em mim ficavam gravados não só os olhos, mas todo o rosto e os cabelos longos, levemente ondulados, daquela moça adolescente, quase da minha idade. Vim a descobrir, algum tempo depois, onde Lenise morava: na Praça da Saudade, num belo palacete, em cuja varanda, debruçada, eu a via, de tardezinha. Nunca frequentei tanto a Praça da Saudade. Fiquei sabendo que ela era Rezende e tinha duas irmãs, a Violeta e a Crisólida, todas de grande beleza. 
Às vezes, num banco da Praça, fronteiro a seu palácio, eu a via rodeada de rapazes, todos maiores do que eu. Eu ficava só olhando. Nunca falei com Lenise. Para contar toda a verdade, Lenise nunca nem me olhou. Mas graças a ela – e ao bonde – conheci um dos mais poderosos sortilégios do coração humano. Pouco tempo depois viajei para o Rio de Janeiro, aos 15 anos de idade. Quase quinze anos após, na redação do Correio da Manhã (onde eu publicara na véspera uma crônica em que recordava, não com todos os detalhes que aqui publicamente entrego, aquele acontecimento da minha vida) – me chamam ao telefone. O leitor já adivinhou: era Lenise.
Os bondes eram bem cuidados, limpos, os bancos envernizados. As sanefas de lona marrom, descidas quando a chuva chegava, funcionavam à maravilha: nos azeites. A campainha não falhava, armada lá na frente, redonda, em metal reluzente, era acionada por uma corda, um centímetro de grossura, também marrom: pelos passageiros, para dar o sinal de parada; pelo condutor, para dar o sinal de partida. Motorneiros permitiam que os meninos, ao final da linha, virassem a lança na direção oposta: demandava perícia encaixar a roldana do extremo da lança na altura do fio de cobre da corrente elétrica. A manivela tinha dois controles de metal dourado, ligados à misteriosíssima “chave das agulhas”.
As linhas serviam à população de todo o perímetro urbano. Só deixavam mesmo de fora os moradores de São Raimundo e dos Educandos, mas só em parte. Porque os primeiros ficavam na metade do caminho, tomando o “Plano Inclinado”, que depois virou “Fábrica de Cerveja”. Desciam do bonde e tomavam a catraia para atravessar o igarapé. O pessoal dos Educandos descia ali na sub-estação da Cachoeirinha e tinha que gramar a escalada da ladeira.
Os bondes tinham ainda uma grande serventia: moíam o vidro para o cerol da linha com que empinávamos os nossos papagaios. De princípio, os motorneiros nem se importavam, acho que até ficavam contentes: sabiam que os filhos deles também amavam a arte do brinquedo colorido no vento. Aí por volta dos quarenta e um, ou dois, a repressão começou. Os guardas batiam, estou dizendo batiam, porrada mesmo, de cassete, em quem surpreendiam botando cacos de vidro nos trilhos do bonde. 
Sucede que de menino ninguém ganha, não importa se o menino já é grandão de vinte, de cinquenta. Então a gente esperava o bonde na curva: quando, antes de aparecer, o ruído dele se abrandava para dobrar, os vidros eram rapidamente colocados nos trilhos e o motorneiro não tinha tempo de frear. O Paulo Bode, de Pedro Botelho, apanhava o vidro moído, finíssimo, numa vasilhazinha especial inventada por ele.
Numa noite da Praça 14, um velho motorneiro me contou (o Boi Caprichoso lá no terreiro dançava como um danado) que tinha ordens para frear o bonde e chamar a polícia sempre que visse vidro nos trilhos. “Vidro pra cerol nunca descarrilhou bonde nenhum; o que eles têm é implicância com os meninos”. “Eles” eram os ingleses da Manaus Tramways, e os altos funcionários caboclos que queriam ser ainda mais ingleses do que os donos da Companhia.
O prédio sofisticado da Manaus Tramways ficava ao centro, espécie de frontão, de um dos conjuntos arquitetônicos mais belos da cidade (hoje finalmente desfigurado). À sua direita, o edifício da Booth Line, que se conserva; e à esquerda, a famosa Leitaria Bolsa Universal, que o tempo comeu. Leitaria era um modo de dar nome às casas que serviam o café com leite, mas onde também se tomavam a cerveja e o vinho.
Dia de São João, no Natal e no último dia do ano, os bondes apareciam com um aviso impresso colado em cada branco: “Hoje os bondes trafegarão a noite inteira”.
A década de 50 já não conheceu mais o elétrico, denominação dada ao bonde pelos portugueses de Manaus, trazida lá da boa terra. Nos começos de 40 apareceram os primeiros ônibus, três ou quatro, pequenos, trazidos por iniciativa particular. Circularam pouco tempo. Logo a companhia estrangeira os adquiriu. Para quê? Para retirá-los de circulação, é claro; e deixá-los apodrecer num saguão da sub-usina da luz, ali na Cachoeirinha. 
“A Manaus Tramways – comentou um jornal da época – compreendeu que só ela podia explorar o povo, em matéria de transporte, ou seja, só os seus miseráveis calhambeques poderiam atrapalhar a nossa vida, tomar o nosso tostão, aborrecer a nossa paciência”.
Os bondes prestaram grandes serviços, eram asseados e incrivelmente pontuais. Mas aí pelo final da Segunda Guerra os serviços começaram a entrar em decadência, gerada pela crise da energia elétrica. Com frequência a cidade ficava completamente às escuras e sem nenhum transporte, a não ser os carros de praça, cujas “garagens” tinham nomes e estacionavam atravessados no Centro da Eduardo Ribeiro.
Os fornecedores de lenha exigiam e a Companhia negava a elevação do preço da tonelada. Mas a verdade é que a concessionária deixou que o material da empresa se estragasse, os bondes caíram no desleixo, bancos partidos, o teto cheio de goteiras. A Manaus Tramways anunciava a aquisição de bondes novos, mas os carros nunca chegavam. Certa manhã os estudantes da Faculdade de Direito incendiaram um bonde de Nazareth em plena Praça dos Remédios. Botaram logo a culpa nos comunas. Foi aberto o competente inquérito.
Em 46 começou a discutir-se no Congresso Constituinte, e principalmente em Manaus, a nacionalização da Tramways (já sob intervenção federal militar). Foi quando veio a Manaus o presidente da The Manaus Tramways and Light Company Limited, Mr. George Booth, tratar de assuntos com o Governo e os poucos industriais amazonenses. Demorou-se muito pouco. Faço questão de transcrever fragmentos do noticiário publicado a respeito pela “A Crítica”, junho de 1946. Não só porque acrescentou boa substância à memória dos bondes como porque também dá um claro testemunho do que era a nossa imprensa naqueles dias.
Manchete e sub manchete: 
Seguiu hoje o burguês britânico para os confortos lá da sua terra! 
Riquíssimo, dono de bens e mais bens no Brasil, Mr. Booth é o dono da Tramways – por aí se tira...
Texto:
Viajando pela carreira, esteve em Manaus, procedente de Londres, o presidente da The Manaus Tramays And Light Company, Sr. George Booth, o qual veio a nossos pagos conferenciar com o chefe do Executivo, a propósito da nacionalização da companhia inglesa.
O dr. Aristides Rocha preparou uma longa exposição que foi distribuída aos jornalistas.
Espera a pronta nacionalização
Revelou-nos mr. Booth, o qual seguiu, hoje, pelo avião da Panair, com destino à capital britânica, via Nova Iorque, que espera o apoio dos acionistas da Tramways, em Londres, no sentido da nacionalização da companhia, nos moldes ditados pela Interventoria Federal e de acordo com a deliberação recentemente formulada pelo Congresso Constituinte.
A Tramways deu prejuízo
O presidente da Companhia inglesa adiantou, a uma nossa pergunta, que a Tramways deu prejuízo...
Disse que o capital investido na empresa foi de 48 milhões de cruzeiros, dos quais apenas 17 milhões são reembolsados, e assim mesmo em ações.
Esqueceu-se o imperialista britânico, que é também diretor do London Bank, em Londres, bem como de várias e importantes companhias de navegações intercontinentais, de mencionar a enormidade de lucros da concessionária, durante o largo interregno de administração estrangeira.
É de família tradicional...
Mr. Booth é de família tradicional e que fez fortuna do suor do seringueiro amazônico, nos áureos tempos do ouro negro. É filho do velho Charles Booth, que fundou a Manaus Harbour e construiu o prédio da Alfândega. É de linhagem azul, possuindo na cúpula britânica grande prestígio nos arraiais conservadores e públicos, bem como um rico palácio nos arrabaldes de Liverpool... “Maginem”!
Os diretores da Pará Eletric fazem o mesmo
Os diretores da Pará Eletric estão igualmente negociando com o governo paraense, a nacionalização da empresa. O plano é continental. Todas as empresas estrangeiras da América Latina estão sendo nacionalizadas, com vantagens é claro, para os capitalistas adventícios.
Mr. Booth concluiu por referir o seu possível retorno a Manaus, para o ano vindouro. Diabos te levem corujão, e não te tragam mais aqui!!!...
(fim da matéria)
Estas eram as linhas de bonde da cidade: Flores, Circular, Cachoeirinha-Circular, Avenida-Circular, Vila Municipal, Saudade, Remédio, Alto de Nazareth, Bilhares, Entroncamento, Plano Inclinado (depois Fábrica de Cerveja).
Os bondes
Bonde de Flores 
é bem melhor, 
o dos Remédio 
não é tão bom, 
mas todo bonde 
leva em seus bancos 
o dia limpo, o sol e o luar, 
o bonde passa 
na Circular.
Firme no estribo 
toma-se o bonde 
e as longas lanças 
correm nos fios 
e suas rodas 
rilham nos trilhos 
trituram vidros 
de papagaios.
Pisca a faísca 
nas curvas curtas, 
toca a sineta 
o condutor, 
passa o cupom 
o cobrador.
E o bonde leva 
amor, amor.
Elson Farias (De Roteiro Lírico de Manaus em 1900)

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