Por Thiago de Mello
A
dos árabes
Que, a partir do comecinho do
século, vieram para o Amazonas, oriundos principalmente da Síria e do Líbano, e
tão ricamente contribuíram, eles que chegaram de bolsos vazios, no processo de
aculturação que resultou no jeito de viver da nossa cidade.
Já me referi, no capítulo dos
sons de Manaus, à figura do mascate árabe, o teque-teque, atividade comercial
pela qual a maioria começava. O degrau seguinte era a do armarinho. A não ser,
e foram muitos, os que partiam para o interior da floresta, primeiro como
regatões, os mascates fluviais, depois, negociantes de fato, como proprietários
de castanhais e seringais. Do armarinho, o passo maior era o da loja de
tecidos, ramo predileto dos turcos, como a cidade chamava indistintamente a
todos os árabes, todos eles muitos unidos e solidários. Fizeram da rua dos
Barés e imediações o seu reduto comercial, onde sempre é possível regatear o
preço com êxito.
São numerosas as famílias que
aqui chegaram para permanecer, hoje com três e quatro gerações, culturalmente
caboclas. Sem embargo da fidelidade ao trigo, ao grão de bico, à carne e ao hortelã,
ingredientes maiores de sua maravilhosa culinária, já carregam na alma o gosto
do jaraqui e da farinha de mandioca.
Este verbete se quer de
homenagem a todos os Abrahão, Abrahim, Nasser, Said, Cheuan, Azize, Haddad,
Chible, Gorayeb, Bichara, Hauache, Chamma, Mussa, Mansur e tantos outros, com
menção de muito carinho para os Alauzo, família libanesa à qual pertence a
minha querida velhinha Farid, mãe do poeta Jorge Tufic, bom irmão. Verbete que
se valoriza com a transcrição literal de fragmento de uma conversa com Nagibe
Isaac Abrahão, filho do finado Issa Abrahão, o fundador d’A Porta Larga, casa
tradicional do comércio árabe em Manaus, e de dona Jamilia, muito lúcida os
seus quase noventa anos; mãe de muitos filhos, netos e bisnetos, todos
amazonenses. O bom Nagibe, a quem conheci de menino, dá a sua ajuda à memória
da cidade:
– Tu te lembras. Nagibe, dos
teques-teques de antigamente?
– Teque-teque é do tempo do
meu pai.
– Como era o nome dele?
– Issa Abrahão. Veio de uma
cidade da Síria onde ele nasceu, chamada Hama. O nome Issa quer dizer Jesus.
Ele aqui chegou e primeiro se hospedou na casa de uns amigos. Veio do Pará, sem
nenhum tostão no bolso. Um libanês emprestou dez tostões para ele, naquela
época, mil novecentos e pouco, era dinheiro pra burro. Então ele começou a trabalhar.
Comprava uma barra de sabão por dez tostões e a cortava em 12 pedaços. Saía
pelas ruas gritando: “Sabão, sabão tostão!”, o velho meu pai. Ele vendia a
barra toda, o pedaço a um tostão, tinha dois tostões de ganho. Com um tostão
ele comia pão com café, o outro ele juntava para vencer na vida. Comprava outra
barra e saía vendendo. Naquela época a vida era muito dura para os árabes que
chegavam. Até que ele conseguiu comprar uma caixa para botar teque-teque. Saía
carregando a caixa com uns duzentos quilos e ia a pé às vezes até Flores, ia e
voltava, com aquele peso todo. Tinha dia que só vendia um carretel de linha,
uma pasta de dente, vida dura, mas ele era solteiro.
– Quem aviava o teque-teque
dele?
– Um comerciante árabe. Não me
lembro do nome. Falavam que ele era um ricaço, era dono de onde hoje é a
Capitania dos Portos. Tinha uma grande casa de comércio, era libanês.
– Quanto tempo o velho Issa
foi teque-teque?
– Muito tempo, demorou para
ele vencer, eu ainda nem era nascido.
– De teque-teque ele foi ser regatão?
– Não. Meu pai nunca foi
regatão.
– Abriu então um armarinho?
– É. Ele construiu esta casa.
Quando eu nasci já estava quase pronta, foi em 1913.
– Só com o dinheiro do
teque-teque?
– Com a economia, meu irmão.
Ele soube fazer economia. Ele ganhava dois e só gastava um. Quer dizer que ele
não passava bem, não. A vida deles, dos sírios que vieram para cá, se a gente
for ver, foi uma miséria. Mas venceram. Hoje muita gente chega aqui e já está
com o pai rico, fica herdeiro de tudo. No nosso tempo era a economia dos
tostões. Mas também tu compravas uma libra por dez tostões.
– Em que ano tu nascente?
– Em 1913. Quando eu nasci o
velho pai estava construindo A Porta Larga. Gastou sete contos de réis na
construção. Mas não fui o primeiro, quem nasceu primeiro foi meu irmão que
morreu atropelado, o João. Um grande advogado daqui, o dr. Bernardino Paiva,
pegou ele com o carro, ele estava brincando na calçada, tinha sete para oito
anos, a gente se lembra dele sempre. O meu pai sempre contava a vida dele para os
filhos, gostava de conversar e contar. Ele morreu analfabeto, quase sem saber
assinar o nome. Mas quando venceu, mandou buscar os irmãos dele lá da Síria e
deu sociedade para todos.
– Quando ele morreu?
– Faz uns quatro anos, com
noventa e oito de idade.
A
de Agnello Bittencourt,
nosso inesquecível professor
no Gymnasio Amazonense Pedro II. Homem que exerceu várias e importantes funções
públicas em nosso Estado, dele só quero guardar aqui o respeito e o carinho que
conquistou de todos os seus alunos, aos quais ele tratava, antes de tudo, como
pessoas jovens a quem ele devia ajudar a preparar para os caminhos da vida.
Professor de Geografia, era um
sábio em muitas matérias, entre elas a bondade. A numerosos ginasianos do meu
tempo perguntei quais os professores que mais influência tiveram em duas vidas,
quais os mais queridos. Todos distinguiram o nome do professor Agnello.
Quero enriquecer este livro
com um fragmento da mensagem que Agnello Bittencourt dedicou aos seus amigos
que, nos últimos dias de 1966, fomos abraçá-lo na sua casa da Lagoa Rodrigo de
Freitas, no Rio de Janeiro, num encontro promovido por seu filho (que também foi
meu professor e em quem hoje tenho um irmão), Ulysses Bittencourt, para
celebrar os noventa anos do magnífico varão que assim nos ensinou:
“Quero me referir à palavra
Fraternidade e seus efeitos e dizer que no Amazonas é a Natureza que ensina os
homens a serem fraternais, a serem grandes, a serem nobres; é a própria terra,
o próprio rio, pela própria largueza de toda a vasta planície. No Amazonas
observamos que ali está um livro aberto para quem deseje, para quem queira
aprender. Neste particular, então, as lições são eloquentes.
Nos rios, por exemplo, nós
observamos, nos cardumes, a grande quantidade de peixes que sobem a correnteza,
uma multidão de espécies diferentes, como que uma heterogeneidade para procurar
lugar, a fim de realizar uma defesa própria na busca de uma praia para o que
eles chamam por lá a desova. Como é possível que tantas entidades diferentes
possam se reunir para uma finalidade certa? Lá está. Como que os cardumes,
ensinando aos homens, ainda que sejam de raças e de crenças diferentes, como se
fossem uma unidade só, como se fossem todos da mesma espécie.
Nós volvemos a nossa vista
para a floresta, para outro exemplo de fraternidade. Contornando-a, nós
observamos que há o que chamam em agronomia a pestana da floresta, que é aquele
mato arbustivo, mas compacto, que contorna toda a praia, toda aquela extensão
em que o rio sobe para fazer sua invasão. Ninguém pode penetrar naquela
pestana, embora ela não seja alta, porque ela é compacta, entrançada, sobretudo
por vegetais que cortam, sobressaindo entre eles o que se chama tiririca. É
preciso então abrir a facão uma vereda por onde se possa chegar à floresta.
E chegando lá o que se vê?
Aqueles troncos imensos, altos, de 20 a 30 metros, esgalhando-se para todos os
lados e, nesse esgalhamento, entrançando-se com as outras árvores, de modo que
constituem todas uma só umbela, uma só camada que mal deixa a penetração dos
raios solares, senão aquelas aberturas por onde transitam os rios, onde
pontilham os lagos e as lagoas. Que é aquilo senão a solidariedade entre as
árvores? Tanto assim que o madeireiro, isto é, o coletor de árvores próprias
para as indústrias, tem o maior trabalho para retirar dali um tronco.
Procura ele, por exemplo, um
cedro; encontra a árvore gigantesca de cerca de 80cm de diâmetro, dois ou três
homens cortam o tronco, o gigante não vem abaixo, está defendido pelo
entrelaçado de seus galhos com as outras árvores, e, além disso, contorcem-se
cipós, alguns dos quais chegam a 4 ou 5cm de diâmetro. Então, para botar abaixo
essa árvore, é preciso cortar quantas a estejam segurando para que o gigante
venha abaixo. O que é isso senão o espírito de solidariedade na defesa de um
vegetal a respeito do outro?
Não é somente isso; os bandos
de pássaros que nós encontramos ali. Bandos, entre muitos, de garças e maguaris
e de outros se estendem nas praias. Quando um se levanta, todos se levantam ao
mesmo tempo. Há, ainda, no Amazonas, uma espécie de rouxinol que os naturais
chamam soldado, porque eles usam o chão procurando o que comer e quando um ouve
qualquer ruído que julgue perigoso, todos se reúnem como se houvesse uma voz de
comando e aguardam o momento de partir. O que é isso senão o espírito de
solidariedade?
A respeito do homem ainda
embrionário, do homem primitivo, do caboclo que sabe pronunciar algumas
palavras, eles se reúnem e se ajudam para fazer as suas roças com espírito de
solidariedade. Portanto, meus amigos, eu devo dizer que é a natureza que ensina
o homem do Amazonas a ser fraternal, a ser bom, a auxiliar os seus companheiros
e realizar alguma coisa na vida que condiga com a necessidade de todos”.
A
do Dr. Araújo Lima,
médico famoso ao tempo, de
quem diziam ser o rei do diagnóstico. Guardo-lhe respeito agradecido justamente
pelo diagnóstico oportuno que fez de uma lesão que estava roendo um pulmão de
minha Mãe, submetendo-a a um período de repouso com medicamentos que a
recuperaram definitivamente. Sua casa, reduto que abrigava a alta roda,
belíssima casa, aliás, hoje triste e abandonada ali na 24 de Maio, bem que
poderia ser adquirida pelo poder municipal e aberta ao povo, transformada em
Centro de Arte. Seria até a mais delicada maneira de cultivar a memória do seu
dono (que desenvolveu obra notável e de bom gosto quando prefeito de Manaus),
que em sua residência costumava promover constantes reuniões de artistas,
literatos, músicos, ao costume dos saraus lítero-musicais da época.
(Do livro “Manaus, Amor e
Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)
Nenhum comentário:
Postar um comentário