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segunda-feira, junho 10, 2019

Os sons da nossa cidade (2)



Por Thiago de Mello

Tenho a certeza de que algum vendedor noturno anunciava a sua passagem com uma sineta, ali pelas bandas da Costa Azevedo e 24 de Maio. Era vendedor de merenda da noite, coisa quente, quem sabe um mungunzá; mas dos pormenores, que na vida são sempre o essencial, já não tenho segurança.

Segurança inteira, já que falei do mungunzá, eu tenho é do pregão do velho Jaú, que chegava ali pelas 9 da noite, atravessava metade de Manaus, com o seu mingau perfumado a cravo-de-cheiro. As duas panelas altas de alumínio, enroladas em alvíssimas toalhas de linho, o negro não anunciava a mercadoria, mas a si próprio, com o grito que era o seu logotipo musical impresso no espaço das nossas noites estreladas: Já-Já-Já-Jaú-ú-ú-ú!

Numa delas, canto da Dr. Almino, o Evilásio e eu ficamos só olhando o Jaú vender mungunzás para umas moças bonitas. Olhando e comendo o cheiro. O bom negro acabou de atende-las, viu os nossos olhos enormes e perguntou com um sorriso de bondade que era só dele: “Vocês querem uma provada?” E deu uma tigela bem cheia pro Evilásio e outra pra mim – e ainda ficou conversando, falando da infância dele, enquanto a gente comia.

O Ruy Lins me relembrou que aos domingos, e só aos domingos, ele ia comprar um quilo de gelo para o seu avô João (João Teófilo de Sá Cavalcanti), que morava na Dr. Moreira. Fiscal da Prefeitura no Mercado, João Teófilo sobrevivia com as ofertas das bancas. Domingo ele gostava de gelar a água do almoço. Só a água, não. Também uma XPTO escura, comprada na mercearia do seu José.

O mungunzá é o mingau feito de milho branco com leite de vaca e sumo de coco, que no Nordeste e no Sul o povo chama de canjica. Só que o nosso mungunzá leva também castanha-do-Pará, bem raladinha. Aproveito para esclarecer que o nome dessa castanha não a faz oriunda só do Estado que deu ao Brasil a Eneida de Moraes, Pará, no caso, é vocábulo indígena e significa coisa em arco, arqueada. A fruta tem denominação oficial, dada por decreto do tempo de Vargas: é “Noz do Brasil”.

Agora que entramos em matéria de pregões, vamos chamar para esta ciranda, feita de amor e memórias, os vendedores de rua, cada qual com a sua música, cada um fazendo a sua parte na construção do universo cultural da cidade.

Escuta, lá vem ele chegando, é o grito de guerra do seu Messias com a sua voz de tenor: “Pajurá-de-racha!” O seu Messias vinha de manhã, mas às vezes também aparecia pela noitinha. Caboclo baixo, forte, amorenado. Equilibrava o taboleiro na cabeça com a ajuda de uma “rodilha” de pano. Na mão direita, um banquinho de madeira. Eram as frutas mais saborosas da cidade: sorva, mari-mari, jambo, manga-rosa, biribá e (nunca mais as provei) as santas sapotilhas que ele trazia lá da Vila Municipal. Tinha noite que o Messias chegava só com pupunhas cozidas, mas de várias qualidades.

Agora é o pregão do cuscuzeiro, que vinha lá dos Educados e atravessava o igarapé de catraia, subia a ladeira gritando: cuscuz de milho no leite, coberto de coco ralado, na folha de bananeira. Do tamanho de um pires de chá a parte superior era convexa, custava mais barato do que o pão.

“Olha o miú-ú-ú-ú-do”. Não me lembro da figura humana do vendedor de miúdos, só lembro do seu taboleiro com tampa e cavalete. Mas guardo até hoje a música, o andamento rítmico e a sequência do seu pregão, que andei repetindo para os meus amigos (os capazes de infância) em tantos lugares deste mundo. Primeiro era o anúncio da mercadoria: “Mi-ú-ú-ú-dos”, o ú demorava até o fim da última reserva de ar no pulmão (eram miúdos de porco e de boi, ele os adquirira no Curro). Depois era a exaltação da qualidade: “Frescos, fresquin-in-in-in-nhos”, e afinava a voz num agudo pianíssimo, entretanto audível a muita distância. E afinal o chamamento, que se repetia em ritmo sincopado: “Quem-vai-querer! Quem-vai-querer!”

Ora, quem é que não queria? Pelo menos lá da nossa rua ele voltava de taboleiro vazio; no dia seguinte (demorava um dia para preparar) era a festa em redor da “panelada” de tripas de boi, minha mãe dava a eles um toque de chouriço, depois de uma noite ao vinha d’alhos, com muito louro, cheiro-verde e chicória.

Acrescentava-se às virtudes do pregão a pressão da criançada sobre os pais. É que o vendedor, entre os miúdos, isto é, as vísceras, trazia também os pés, os mocotós do boi. Depois de bem chupados na mesa, e bem escaldados depois, durante longas horas, numa lata de querosene (marca Jacaré) ao fogo de lenha lá no quintal para perder toda a gordura – os ossos do mocotó eram transformados, com seus formatos extravagantes, nos nossos soldadinhos-de-chumbo.

Tinha um rosto duro, escuro, sofrido (tinha também os dedos muito comprido) o vendedor-ambulante de ervas de Manaus. Em compensação, como eram tenras e suaves, trazendo o âmago perfumado da terra, as folhas e raízes que ele distribuía. Eram ervas sobretudo de cheiro, para banho e para a roupa: piprioca, pau-cheiroso, sândalo, cantiga-da-mulata, pau d’angola, patichuli, japana, louro-rosa, o mucura-caá e até uma, raríssima e cobiçada  a despeito do nome, urubu-caá. Mas também trazia verdes medicinais: a casca da carapanaúba, da manga, da sucuna, a mangarataia, o mastruço, a hortelã, da grossa e da fina. Não havia tosse de guariba nem catarro preso que se aguentassem com o xarope caseiro preparado com essas ervas.

Não faltavam, contudo, as ervas de paladar, indispensáveis ao preparo dos nossos peixes e pratos típicos. O cheiro-verde, o cuentro, a salsa, a cebolinha, a chicória, e acima de todas, a inefável alfavaca. Foi naquele tempo radioso que aprendi com minha mãe que a alma da tartarugada é a alfavaca (e a carne muito trabalhada em limão para tirar o pitiú). O que nunca entendi foi a razão e o significado do monossílabo seco que fechava o pregão bruscamente: “Cheiro-cheirô-ô-ô-so! pá!”

Nos meus anos de Lisboa, tanto tempo depois, cheguei a admitir que a sílaba do pregão da minha infância fosse a mesma que a prosódia portuguesa inclui ao falar cotidiano das ruas – Pá! –, como hoje no Brasil se usa o Pô! Mas não. O vendedor do cheiro-cheiroso era caboclo suburucu como eu. Já ia deixando de contar que ele acompanhava o grito com uma fina e afinada percussão: com a mão esquerda ele sustentava na cabeça o caixote do qual, com uma vareta, ou baqueta, ele tirava uns belos sons com a mão direita: madeira, voz e madeira. Um artista.

Para nós, que ouvimos tanto, não é preciso nem fechar os olhos para outra vez ouvir num canto de rua da memória, o cascalheiro tirando som do seu triângulo de ferro, a caixa de metal, verde, alongada e redonda, dependurada do ombro. É ouvir, sentir a doçura do cascalhinho enrolado, e ser menino de novo.

Buzina engraçada, parecia um pato gritando, era a do triciclo do Pascoal, o vendedor de sorvetes. Foi o primeiro triciclo que apareceu na cidade, ao qual o dono adaptou uma armação de madeira que terminava em forma de proa de navio embandeirado. No interior da caixa, os vasilhames de lata com sorvetes de frutas da terra: cupuaçu, biribá, graviola, tamarindo, goiaba, taperebá. De vez em quando o Pascoal chegava com um sorvete de pitanga simplesmente sensacional. O pessoal dizia que o sorvete era feito com as pitangas lá do cemitério, famosas em Manaus pelo sabor apaixonante, embora houvesse alguma gente metida a sebo que desprezava as lindas frutinhas, só porque eram nascidas em terras de defunto.

Indiferente é que ninguém ficava com os tantos sons alegres que cortavam a cidade de ponta a ponta, sobretudo nos bairros e arrabaldes pobres, anunciadores da presença de figuras conhecidas e sempre bem recebidas: os vendedores autônomos que exerciam sua profissão, oferecendo as suas finas mercâncias ou os seus bons préstimos de rua em rua.

Já que entramos pelas aléias do campo santo, levados pela buzina do Pascoal, cabe fazer trinar aqui o apito de boca do Zé Traíra. Vibrava apagado e soturno, mal ultrapassava as grades de ferro lá do São João Batista. Mas cumpria bem a sua função na vida da cidade, da qual a morte faz parte: era com ele que o Zé Traíra, chefe dos coveiros, chamava os seus companheiros de ofício, duro ofício, que a rotina acaba por impregnar de indiferença.

A começar pelo do “teque-teque”, onomatopeia feliz que o povo achou para designar o mascate andarilho, em virtude do som estalado que ele conseguia, batendo uma contra a outra as duas metades do “metro”, unidas por um pedaço de couro que funcionava como dobradiça. E com uma só mão, não era fácil. O mesmo metro servia para fazer música e medir a fazenda.

O teque-teque era sempre um turco (não dominávamos ainda a sutileza que distingue os povos árabes). Não era nem sírio nem libanês, nem muito menos sírio-libanês. Era turco mesmo, e nenhum se zangava. Vendia de tudo: linhas, agulhas, botões, morins, chitas, brilhantinas, pó-de-arroz (Coty), cordões e brincos de ouro, pelo menos o mascate afirmava que era de ouro com a garantia de que não enferrujava: “Bode combrar, não embaruja”.

Além do “teque-teque”, havia a figura do vendedor de fósforo, o “palita-barata”. Na caixa de estanho, antiga embalagem dos fósforos, o “turco”, com o lucro dos palitos, levava também outras miudezas.

Uma tarde cheia de pessegueiros em Las Condes, bairro de Santiago do Chile bem ao pé da Cordilheira dos Andes, estávamos com Pablo Neruda tomando o nosso bom vinho na casa do fabuloso Rubén Azocar (dois companheiros que já partiram), quando de repente Manaus invade o jardim do meu amigo romancista me chamando pelo nome de infância. Era um realejo daqueles antigos, que nas redondezas começava a tocar a valsa “Sobre as Ondas”, o mesmo som singelo e a mesma música que tantas vezes inesperada se erguia enchendo de encantamento as ruas da Manaus antiga.

Relembrei para os companheiros chilenos, evidentemente sensíveis, por supuesto, ao lirismo dos realejos de rua, o alegre alvoroço que sempre se fazia em torno do vendedor da sorte que parava lá no canto da Quintino Bocayuva com a rua Isabel. Ele chegava com o seu órgão portátil, era uma caixa de madeira com adornos metálicos, movido a manivela. Além do instrumento, ele trazia também um periquito, seu companheiro de trabalho, que atendia solícito pelo nome de João.

Sobre o realejo, o poleiro do periquito com uma gaveta onde, coloridos e bem dobradinhos, estavam os papéis impressos que adivinhavam a sorte dos fregueses, aliás freguesas, moças na maioria. A moça retirava o papel da gaveta, pagava com a sua moedinha e então o homem pedia: “Carimba, João!” O periquito arrancava com o bico uma pontinha do papel – a sorte estava sacramentada, lá vinha a música novamente.

Som que não faltava nenhum dia e que nascia simultâneo nos mais diferentes bairros de Manaus era o do piano. Perdão, dos muitos pianos (os pais faziam sacrifícios mas compravam o instrumento, todas as mocinhas – e muitos rapazes também – estudavam piano, ou violino). Mas de todos se ouvia uma linha melódica, a da escala cromática, o dedilhado ia e voltava, sem parar recomeçava no tom imediato. Era um tal de “Vai-cachorro-vai-cachorro-vem, cachorro vai-cachorro-vem” que não se acabava nunca. Pois parece que também já se acabou.

Outro realejeiro de Manaus apareceu mais tarde, não vinha com periquito nem vendia a sorte. Trazia uma roda movida com o pé, na qual amolava facas, terçados e tesouras. Tinha a sua metodologia de trabalho, que sabia separar o músico do amolador. Tocava um bom tempão enquanto os fregueses iam colocando no batente da calçada os objetos cortantes mas desamolados. Quando via que já se acumulava material suficiente para boa jornada, deixava o realejo e ia para a roda de amolar. O que não quer dizer que se acabasse a música. As valsas de Strauss eram substituídas pelo grito áspero, chega dava arrepio, das lâminas afiadas no ferro da roda.



(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)

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