Por Thiago de Mello
Tenho a certeza de que algum
vendedor noturno anunciava a sua passagem com uma sineta, ali pelas bandas da
Costa Azevedo e 24 de Maio. Era vendedor de merenda da noite, coisa quente,
quem sabe um mungunzá; mas dos pormenores, que na vida são sempre o essencial,
já não tenho segurança.
Segurança inteira, já que
falei do mungunzá, eu tenho é do pregão do velho Jaú, que chegava ali pelas 9
da noite, atravessava metade de Manaus, com o seu mingau perfumado a
cravo-de-cheiro. As duas panelas altas de alumínio, enroladas em alvíssimas
toalhas de linho, o negro não anunciava a mercadoria, mas a si próprio, com o
grito que era o seu logotipo musical impresso no espaço das nossas noites
estreladas: Já-Já-Já-Jaú-ú-ú-ú!
Numa delas, canto da Dr. Almino,
o Evilásio e eu ficamos só olhando o Jaú vender mungunzás para umas moças
bonitas. Olhando e comendo o cheiro. O bom negro acabou de atende-las, viu os
nossos olhos enormes e perguntou com um sorriso de bondade que era só dele:
“Vocês querem uma provada?” E deu uma tigela bem cheia pro Evilásio e outra pra
mim – e ainda ficou conversando, falando da infância dele, enquanto a gente
comia.
O Ruy Lins me relembrou que
aos domingos, e só aos domingos, ele ia comprar um quilo de gelo para o seu avô
João (João Teófilo de Sá Cavalcanti), que morava na Dr. Moreira. Fiscal da
Prefeitura no Mercado, João Teófilo sobrevivia com as ofertas das bancas.
Domingo ele gostava de gelar a água do almoço. Só a água, não. Também uma XPTO
escura, comprada na mercearia do seu José.
O mungunzá é o mingau feito de
milho branco com leite de vaca e sumo de coco, que no Nordeste e no Sul o povo
chama de canjica. Só que o nosso mungunzá leva também castanha-do-Pará, bem
raladinha. Aproveito para esclarecer que o nome dessa castanha não a faz
oriunda só do Estado que deu ao Brasil a Eneida de Moraes, Pará, no caso, é
vocábulo indígena e significa coisa em arco, arqueada. A fruta tem denominação
oficial, dada por decreto do tempo de Vargas: é “Noz do Brasil”.
Agora que entramos em matéria
de pregões, vamos chamar para esta ciranda, feita de amor e memórias, os
vendedores de rua, cada qual com a sua música, cada um fazendo a sua parte na
construção do universo cultural da cidade.
Escuta, lá vem ele chegando, é
o grito de guerra do seu Messias com a sua voz de tenor: “Pajurá-de-racha!” O
seu Messias vinha de manhã, mas às vezes também aparecia pela noitinha. Caboclo
baixo, forte, amorenado. Equilibrava o taboleiro na cabeça com a ajuda de uma “rodilha”
de pano. Na mão direita, um banquinho de madeira. Eram as frutas mais saborosas
da cidade: sorva, mari-mari, jambo, manga-rosa, biribá e (nunca mais as provei)
as santas sapotilhas que ele trazia lá da Vila Municipal. Tinha noite que o
Messias chegava só com pupunhas cozidas, mas de várias qualidades.
Agora é o pregão do
cuscuzeiro, que vinha lá dos Educados e atravessava o igarapé de catraia, subia
a ladeira gritando: cuscuz de milho no leite, coberto de coco ralado, na folha
de bananeira. Do tamanho de um pires de chá a parte superior era convexa,
custava mais barato do que o pão.
“Olha o miú-ú-ú-ú-do”. Não me
lembro da figura humana do vendedor de miúdos, só lembro do seu taboleiro com
tampa e cavalete. Mas guardo até hoje a música, o andamento rítmico e a
sequência do seu pregão, que andei repetindo para os meus amigos (os capazes de
infância) em tantos lugares deste mundo. Primeiro era o anúncio da mercadoria:
“Mi-ú-ú-ú-dos”, o ú demorava até o fim da última reserva de ar no pulmão (eram
miúdos de porco e de boi, ele os adquirira no Curro). Depois era a exaltação da
qualidade: “Frescos, fresquin-in-in-in-nhos”, e afinava a voz num agudo
pianíssimo, entretanto audível a muita distância. E afinal o chamamento, que se
repetia em ritmo sincopado: “Quem-vai-querer! Quem-vai-querer!”
Ora, quem é que não queria?
Pelo menos lá da nossa rua ele voltava de taboleiro vazio; no dia seguinte
(demorava um dia para preparar) era a festa em redor da “panelada” de tripas de
boi, minha mãe dava a eles um toque de chouriço, depois de uma noite ao vinha
d’alhos, com muito louro, cheiro-verde e chicória.
Acrescentava-se às virtudes do
pregão a pressão da criançada sobre os pais. É que o vendedor, entre os miúdos,
isto é, as vísceras, trazia também os pés, os mocotós do boi. Depois de bem
chupados na mesa, e bem escaldados depois, durante longas horas, numa lata de
querosene (marca Jacaré) ao fogo de lenha lá no quintal para perder toda a
gordura – os ossos do mocotó eram transformados, com seus formatos
extravagantes, nos nossos soldadinhos-de-chumbo.
Tinha um rosto duro, escuro,
sofrido (tinha também os dedos muito comprido) o vendedor-ambulante de ervas de
Manaus. Em compensação, como eram tenras e suaves, trazendo o âmago perfumado
da terra, as folhas e raízes que ele distribuía. Eram ervas sobretudo de
cheiro, para banho e para a roupa: piprioca, pau-cheiroso, sândalo,
cantiga-da-mulata, pau d’angola, patichuli, japana, louro-rosa, o mucura-caá e
até uma, raríssima e cobiçada a despeito
do nome, urubu-caá. Mas também trazia verdes medicinais: a casca da
carapanaúba, da manga, da sucuna, a mangarataia, o mastruço, a hortelã, da
grossa e da fina. Não havia tosse de guariba nem catarro preso que se
aguentassem com o xarope caseiro preparado com essas ervas.
Não faltavam, contudo, as
ervas de paladar, indispensáveis ao preparo dos nossos peixes e pratos típicos.
O cheiro-verde, o cuentro, a salsa, a cebolinha, a chicória, e acima de todas,
a inefável alfavaca. Foi naquele tempo radioso que aprendi com minha mãe que a
alma da tartarugada é a alfavaca (e a carne muito trabalhada em limão para
tirar o pitiú). O que nunca entendi foi a razão e o significado do monossílabo
seco que fechava o pregão bruscamente: “Cheiro-cheirô-ô-ô-so! pá!”
Nos meus anos de Lisboa, tanto
tempo depois, cheguei a admitir que a sílaba do pregão da minha infância fosse
a mesma que a prosódia portuguesa inclui ao falar cotidiano das ruas – Pá! –,
como hoje no Brasil se usa o Pô! Mas não. O vendedor do cheiro-cheiroso era
caboclo suburucu como eu. Já ia deixando de contar que ele acompanhava o grito
com uma fina e afinada percussão: com a mão esquerda ele sustentava na cabeça o
caixote do qual, com uma vareta, ou baqueta, ele tirava uns belos sons com a
mão direita: madeira, voz e madeira. Um artista.
Para nós, que ouvimos tanto,
não é preciso nem fechar os olhos para outra vez ouvir num canto de rua da
memória, o cascalheiro tirando som do seu triângulo de ferro, a caixa de metal,
verde, alongada e redonda, dependurada do ombro. É ouvir, sentir a doçura do
cascalhinho enrolado, e ser menino de novo.
Buzina engraçada, parecia um
pato gritando, era a do triciclo do Pascoal, o vendedor de sorvetes. Foi o
primeiro triciclo que apareceu na cidade, ao qual o dono adaptou uma armação de
madeira que terminava em forma de proa de navio embandeirado. No interior da
caixa, os vasilhames de lata com sorvetes de frutas da terra: cupuaçu, biribá,
graviola, tamarindo, goiaba, taperebá. De vez em quando o Pascoal chegava com
um sorvete de pitanga simplesmente sensacional. O pessoal dizia que o sorvete
era feito com as pitangas lá do cemitério, famosas em Manaus pelo sabor
apaixonante, embora houvesse alguma gente metida a sebo que desprezava as
lindas frutinhas, só porque eram nascidas em terras de defunto.
Indiferente é que ninguém
ficava com os tantos sons alegres que cortavam a cidade de ponta a ponta,
sobretudo nos bairros e arrabaldes pobres, anunciadores da presença de figuras
conhecidas e sempre bem recebidas: os vendedores autônomos que exerciam sua
profissão, oferecendo as suas finas mercâncias ou os seus bons préstimos de rua
em rua.
Já que entramos pelas aléias
do campo santo, levados pela buzina do Pascoal, cabe fazer trinar aqui o apito
de boca do Zé Traíra. Vibrava apagado e soturno, mal ultrapassava as grades de
ferro lá do São João Batista. Mas cumpria bem a sua função na vida da cidade,
da qual a morte faz parte: era com ele que o Zé Traíra, chefe dos coveiros,
chamava os seus companheiros de ofício, duro ofício, que a rotina acaba por
impregnar de indiferença.
A começar pelo do
“teque-teque”, onomatopeia feliz que o povo achou para designar o mascate
andarilho, em virtude do som estalado que ele conseguia, batendo uma contra a
outra as duas metades do “metro”, unidas por um pedaço de couro que funcionava como
dobradiça. E com uma só mão, não era fácil. O mesmo metro servia para fazer
música e medir a fazenda.
O teque-teque era sempre um
turco (não dominávamos ainda a sutileza que distingue os povos árabes). Não era
nem sírio nem libanês, nem muito menos sírio-libanês. Era turco mesmo, e nenhum
se zangava. Vendia de tudo: linhas, agulhas, botões, morins, chitas,
brilhantinas, pó-de-arroz (Coty), cordões e brincos de ouro, pelo menos o
mascate afirmava que era de ouro com a garantia de que não enferrujava: “Bode
combrar, não embaruja”.
Além do “teque-teque”, havia a
figura do vendedor de fósforo, o “palita-barata”. Na caixa de estanho, antiga
embalagem dos fósforos, o “turco”, com o lucro dos palitos, levava também
outras miudezas.
Uma tarde cheia de pessegueiros
em Las Condes, bairro de Santiago do Chile bem ao pé da Cordilheira dos Andes,
estávamos com Pablo Neruda tomando o nosso bom vinho na casa do fabuloso Rubén
Azocar (dois companheiros que já partiram), quando de repente Manaus invade o
jardim do meu amigo romancista me chamando pelo nome de infância. Era um
realejo daqueles antigos, que nas redondezas começava a tocar a valsa “Sobre as
Ondas”, o mesmo som singelo e a mesma música que tantas vezes inesperada se
erguia enchendo de encantamento as ruas da Manaus antiga.
Relembrei para os companheiros
chilenos, evidentemente sensíveis, por supuesto, ao lirismo dos realejos de
rua, o alegre alvoroço que sempre se fazia em torno do vendedor da sorte que
parava lá no canto da Quintino Bocayuva com a rua Isabel. Ele chegava com o seu
órgão portátil, era uma caixa de madeira com adornos metálicos, movido a
manivela. Além do instrumento, ele trazia também um periquito, seu companheiro
de trabalho, que atendia solícito pelo nome de João.
Sobre o realejo, o poleiro do
periquito com uma gaveta onde, coloridos e bem dobradinhos, estavam os papéis
impressos que adivinhavam a sorte dos fregueses, aliás freguesas, moças na
maioria. A moça retirava o papel da gaveta, pagava com a sua moedinha e então o
homem pedia: “Carimba, João!” O periquito arrancava com o bico uma pontinha do
papel – a sorte estava sacramentada, lá vinha a música novamente.
Som que não faltava nenhum dia
e que nascia simultâneo nos mais diferentes bairros de Manaus era o do piano.
Perdão, dos muitos pianos (os pais faziam sacrifícios mas compravam o
instrumento, todas as mocinhas – e muitos rapazes também – estudavam piano, ou
violino). Mas de todos se ouvia uma linha melódica, a da escala cromática, o
dedilhado ia e voltava, sem parar recomeçava no tom imediato. Era um tal de
“Vai-cachorro-vai-cachorro-vem, cachorro vai-cachorro-vem” que não se acabava
nunca. Pois parece que também já se acabou.
Outro realejeiro de Manaus
apareceu mais tarde, não vinha com periquito nem vendia a sorte. Trazia uma
roda movida com o pé, na qual amolava facas, terçados e tesouras. Tinha a sua
metodologia de trabalho, que sabia separar o músico do amolador. Tocava um bom
tempão enquanto os fregueses iam colocando no batente da calçada os objetos
cortantes mas desamolados. Quando via que já se acumulava material suficiente
para boa jornada, deixava o realejo e ia para a roda de amolar. O que não quer
dizer que se acabasse a música. As valsas de Strauss eram substituídas pelo
grito áspero, chega dava arrepio, das lâminas afiadas no ferro da roda.
(Do livro “Manaus, Amor e
Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)
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