Por Thiago de Mello
C
do Candoca.
Chorei em Barreirinha quando,
manhã cedinho, ouvi a notícia da morte do Candoca, primavera do ano passado.
Nunca encontrei pessoa mais fina, mais maneira, mais delicada e ao mesmo tempo
mais firme do que esse meu companheiro de ginásio que reunia essas e tantas
outras virtudes, além de uma especial: a de ser negro. De saber ser negro, num
tempo em que era uma raridade se ver um negro em Manaus: “Negro, não, eu sou é
preto mesmo”, me repete sempre meu irmão Joel Rufino dos Santos, historiador do
Brasil de minha predileção, a quem chamo de “El Negro”, só para recordar o
nosso tempo de exílio chileno.
Como o Joel, o Candoca era
orgulhoso da marca mais forte na sua mestiçagem; amava a negritude. Um dia,
depois das aulas da manhã, encostado num poste da calçada do Leão de Ouro, o
Candoca me chamou e disse escuta esse samba, tomou a caixa de fósforo e entoou:
“A primeira vez que te encontrei / alimentei a ilusão de ser feliz.”
Foi quem abriu a mim o caminho
do fascinante universo da música popular brasileira. Mais ainda: ele me iniciou
em Orlando Silva, já me advertindo da genialidade do cantor das multidões, com
quem, anos depois, tive a ventura de conviver e relembrar mais de uma vez o
quanto eu e o Candoca devíamos, cada um a seu modo, ao talento do cantor.
No dia em que, depois do largo
tempo na Europa, voltei a Manaus, o Candoca veio me abraçar, com aquele límpido
riso de menino que sempre conservou. Só que o meu amigo já era o desembargador,
grande mestre da maçonaria, Cândido Honório Ferreira: Candoca.
Por falar em desembargador, o
Ginásio do meu tempo deu grandes figuras do Poder Judiciário do Amazonas de
hoje. A começar pelo atual presidente do Tribunal de Justiça, o nosso Paulo
Jacob, em quem celebro, com alegria, o romancista de primeira água, que sabe ir
às brenhas da existência do homem na floresta. O Jerônimo, o Jesus, o Valmir
Robert, e o Aderson Dutra, caboclo de Barreirinha, como eu. Aí estão eles,
todos trabalhando para (e espero que também pela) justiça entre os homens,
tomara que bem.
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de uma das mais famosas casas de ferragens
do nosso tempo, aliás a mais
antiga da cidade, a Casa Canavarro, que está completando noventa anos de
serviços. O meu gosto maior, quando lá ia eu fazer alguma compra, era ficar
olhando a beleza da arquitetura interior da casa, com suas travessas e “mãos
francesas” de madeira envernizada, as prateleiras altas, a escadaria que levava
para um segundo andar. Além das quatro portas, havia (ainda lá se encontra, na
rua dos Barés) uma vitrina que me seduzia, protegida por uma barra de metal
dourado.
Fundada em 1892 pelo português
José de Souza Canavarro e Francisco Ventilari, italiano, a casa teve, entre os
seus primeiros empregados, na humilde qualidade de “marçano” o português
Antonio Jorge da Silva, que, depois de empregado de balcão chegou (1910) a
gerente da firma e afinal a sócio, com a retirada do fundador Canavarro.
Dois outros empregados da
firma, José Soares e Ascendino de Barros, fundaram já perto de 1905 outra
importante casa de ferragens que até hoje perdura: a J. Soares & Cia. (A
Central de Ferragens S.A. era a outra grande casa do ramo da época de que se
ocupa este trabalho).
A Casa Canavarro, que deu
começo ao comércio de ferragens na cidade, desenvolvia outros ramos de
atividade, inclusive a bancária, como correspondente de bancos europeus, e seus
proprietários dedicavam-se também à criação de cavalos de corrida.
Para a Canavarro, que mantém
até hoje o antigo nome, entraram depois outros sócios, o principal deles,
Prudencio Lopes Venancio, cujo filho é quem hoje dirige a empresa: o
Venancinho, casado com minha querida amiga dos tempos de mocidade, a Ercília,
irmã do Ernane, nosso colega de turma no Ginásio e que morreu tão cedo, ambos
filhos do comerciante, também português, Ermindo Barbosa.
A Casa de Ferragens J. Soares
chegou a montar em 1919 uma filial no Rio de Janeiro, justamente na ocasião em
que entrou para sócio da nova firma o Aníbal Beça, de quem já dei notícia em
outro verbete. Lembro de uma frase que muitas vezes ouvi nos anos 40, quando
meu pai era almoxarife das Águas: “Esse material a gente só encontra no Jota
Soares”. A frase revelava a qualidade e o prestígio da firma, que continuam
firmes até hoje.
Aproveito aquilo que o Plínio
Coelho, quando deputado, num discurso no Congresso, chamou de “ensancha
oportunosa”, frase que ganhou os anais, além dos parlamentares, da boa
inclinação para uma ironia alegre, nada malsã, que Manaus sempre soube cultivar
– para um apelo ao Venancio (e também ao Severiano Porto, mais que arquiteto
notável, grande urbanista e humanista na linha de um Lucio Costa, com quem
acabo de saber que o Venancio anda conversando) para que não toque nem retoque
a fachada do prédio tão bonito da Casa Canavarro.
Não encontrei, na conversa, é
verdade que breve, que tive com ele, nenhuma razão para que as duas portas
centrais fossem unidas e ampliadas numa só. De porta larga, já basta a da loja
construída pelo Issa Abrahão, pai do bom Nagib, feliz demais na escolha do nome
para a casa comercial que até hoje se abre, quase na esquina bem em frente à
Canavarro.
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dos clubes náuticos do tempo,
O Manaus Ruder Klub, fundado
pelos alemães e cuja garage flutuante, armada em zinco, geralmente se abrigava
ao pé do igarapé de Manaus, ali atrás do Palácio Rio Negro; o Clube Amazonense
de Regatas, com sede vasta, armada sobre pilares de pedra cujos escombros ainda
hoje podem ser vistos ali na beira da Escadaria dos Remédios: os barcos
envernizados e compridos desciam a rampa nos ombros dos próprios remadores; e o
Grêmio Náutico Portugal.
As regatas, que atraíam muitos
aficionados, eram disputadas no Rio Negro, em domingos de águas tranquilas, num
percurso que ia do São Raimundo até o Paredão; ou no próprio igarapé dos
Educandos. Grandes remadores e nadadores daquele tempo eram o Miguel Barrela, o
Gunsburg, e o Arram da Loja Colombo. Para eles a travessia do Rio Negro a nado
era uma sopa.
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de Clube da Madrugada
que teve fundação oficial nos
começos de 50, mas cujos integrantes se formaram, como artistas e escritores,
na década de 40, e que hoje reúne, conquanto atravesse um período de escassa
atividade, caboclos os mais bem dotados e que melhor serviço têm prestado à
literatura e às artes plástica do Amazonas. Basta dizer que pertenceu ao Clube
da Madrugada o Hanneman Bacelar, o anúncio gênio da pintura que até hoje o
Amazonas deu ao Brasil. Digo de novo: gênio.
Quando, em 79, Gabriel Garcia
Marquez, o mais importante criador literário latino-americano deste século,
mundialmente famoso pelo seu romance “Cem Anos de Solidão”, me deu a alegria de
sua visita, com a sua linda mulher Mercedes, aqui nos barrancos, mostrei a ele,
que é um apaixonado pela música e pela pintura, dois quadros que minha família,
enquanto eu me extraviava pelos caminhos do exílio, tiveram o cuidado de
guardar, um deles com dedicatória do meninozinho de apenas 16 anos cujo talento
me espantara quando o conheci: “Pero es el Gauguin del Amazonas”, comentou
embasbacado o Gabriel, a quem meu amor premiou os seus olhos compridos, para
enriquecer a pinacoteca que organizou na sua casa colombiana, com um dos
quadros (uma cabocla se penteando, sentada no chão) do menino genial, que
suicidou-se com menos de 25 anos.
O Clube da Madrugada tem sido
apreciado pelos comentaristas apressados, daqui e de fora, como a única
associação de escritores que tem sede numa praça pública. A informação é veraz,
e pode ter o seu lado pitoresco, mas é insignificante e insuficiente. O Clube
cumpriu, com força de vanguarda, papel saliente em nosso movimento criador
artístico e de discussão intelectual; atravessa um instante de sossego; quase
só dá sinal de vida na página dominical de um matutino, na qual a divulgação
das espremidas matérias, cuja qualidade é marcada pela invisível mas indelével
marca da colaboração de favor. São sinais do tempo. Não me afligem nem
desanimam.
Estou seguro de que será o
Clube da Madrugada (de quem Arthur Reis, quando governador, quis se aproximar
para uma ajuda marcada pelo inevitável paternalismo), o corpo de pensamento que
poderá se erguer, em tempos breves, na melhor força catalizadora, capaz de unir
todos os órgãos vinculados, por ofício, obrigação ou vocação, ao exercício da
arte e ao estímulo da capacidade criadora da cidade, no campo da literatura, da
música, do teatro, das artes plásticas, do cinema, e sobretudo todas as
manifestações da arte e da cultura popular – para a definição de uma política
cultural (com a qual nem a Fundação Cultural se preocupou) que seja levada à
prática, com seriedade e amor.
O Clube foi fundado
oficialmente em 1956. O seu primeiro presidente foi o Saul Benchimol, contista,
cujo engenho tenho medo que o comerciante venha mastigando. Dos seus
fundadores, nem todos estão mais aí na plena luz da cidade. A maioria continua
fazendo a sua parte. Com gente de categoria de um Jorge Tufic, de Luiz Bacelar,
Sebastião Norões, Guimarães de Paula, Joaquim Alencar e Silva, Astrid Cabral
(não só fundadora, também musa dos poetas do Clube, autora de um livro de
poemas e outro de contos em que dava alma e fala às plantas e aos bichos da
selva), Aloysio Sampaio, Elson Farias (companheiro de quem sempre digo um
escritor a seu modo profissional, porquanto não vivendo do que lhe dá a
literatura, é um escritor que exerce a profissão, quero dizer, que escreve
todos os dias); o Arthur Engrácio, ficcionista de minha íntima predileção;
artistas plásticos como Moacyr Andrade (companheiro meu de meninice, com quem
cada dia brigo mais quando vejo o seu talento comercializado em produção de
quadros em série); o Afrânio de Castro, pintor e poeta “maldito”, rebelde que
morreu faz pouco tempo nas águas do Rio Negro e cujo nome, dado a uma galeria
de arte, mal redime o escárnio com que em vida foi levado; o José Maciel; o
padre Luiz Ruas; o bom Van Pereira; os músicos Nivaldo Santiago e Pedro Amorim;
o escultor Álvaro Páscoa; o contista Benjamim Sanchez, de quem li uma noite,
emocionado, um conto publicado no suplemento do JB do Rio, “O Touro Guarujá”,
de impressionante beleza; o contista Carlos Gomes, da “A Rosa de Carne”, hoje
mestre em semiologia e mistérios da linguagem literária, e o fino poeta Max
Carpentier.
Até hoje não sei se sou sócio
ou não do Clube da Madrugada. Sei é que participei de algumas tão bonitas de
suas atividades, ao tempo da presidência do Francisco Vasconcelos, o meu irmão
Vascon, aí por 65, quando o Clube mantinha um programa semanal na Rádio Rio-Mar
(“Dimensões”), levado pelo Elson, o Renan de Freitas Pinto (figura da mais fina
qualidade em nosso campo cultural) e sua mulher Neide; e promovia semanalmente,
em praça pública, a Festa do Violão, com música popular e erudita.
A participação minha que
recordo com mais alegria foi a organização de um jogral, ao qual demos o nome
de “Companheiro da Manhã”, composto pelo Farias de Carvalho, o Elson Farias, o
Bacelar, a Neide e minha mana Maria do Céu, cuja apresentação, para casa cheia,
no auditório de uma instituição que se acabou (sua sede ficava ali na Ramos
Ferreira), e que simplesmente nos pedia mais, e mais, ao fim de cada poema.
Eram outros tempos, que, me dizem as estrelas do céu de Barreirinha, estão por
voltar.
Aproveito o verbete (tudo é
pretexto para trabalho pelas boas causas) para um apelo ao Vasconcelos, hoje
superintendente-geral do Banco do Brasil para a Amazônia (onde reparte o seu
labor bancário com escritores do quilates de um Carlos Gomes, de um Carpentier
e do bom Rebouças (que só de vez em quando retira os seus originais lá do fundo
da gaveta) – que trate de concluir logo o seu romance, obra de cuja seriedade
me convenço cada vez que ouço, aqui no meu silêncio da Barreirinha, os
capítulos que ele gravou a pedido deste seu irmão.
O verbete do Clube da
Madrugada vai concluir com uma nota triste, que envolve um de seus membros e
fundador também da UBE, a seção amazonense da União Brasileira da Escritores: o
João Bosco Pantoja Evangelista, caboclo de primeira grandeza, que morreu
atrapado no meio de uns matupás, aqui pertinho de Manaus, no empenho de salvar
a vida da mulher a quem amava, moça do Rio de Janeiro que não sabia nadar.
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