Por Thiago de Mello
Das frutas do Amazonas, os
moradores da cidade continuam a ser abençoados pelos seus perfumes, três dos
quais se distinguem dentre todos: o do cupuaçu, o da sapotilha e o do jatobá.
Há, no entanto, um cheiro que já se acabou: o daquelas mariraneiras do meio da
rua. Recordo as que se erguiam na rua Isabel, eram duas, entre a José Paranaguá
e a Quintino Bocayuva. Quando estavam carregados, lá da Joaquim Nabuco a gente
já sentia o cheiro das mariranas.
Cheiro inesquecível era o do
guaraná gasoso, feito com xarope de guaraná, que era vendido, aliás, por um
francês, num quiosque muito limpo ali na desaparecida Estação dos Bondes, onde
também se vendia um refresco de pega-pinto, o melhor rala-rala da cidade.
Outro era o da torração e
moagem do café em Manaus. No Moinho Amazonas, na rua Joaquim Nabuco. Do Café
Moka, quando o bonde fazia a curva ali por detrás da Igreja dos Remédios.
Havia uns cheiros tentadores,
de comestíveis vindos de fora e caros demais, expostos bem rente à porta da
Cosmopolita e da Casa Guerra, as duas melhores antigas casas do ramo, já
desaparecidas. Da Cosmopolita, bem na esquina da Marquês de Santa Cruz com a
Eduardo Ribeiro, saía o cheiro do camarão em coifa, vindo do Maranhão; do bacalhau
português, dos figos do Algarve, das maçãs chilenas. Muitas vezes eu passava
pela Cosmopolita e parava só para olhar e sentir o cheiro daquelas
extravagâncias. Sem dinheiro para ir ao gosto, muitos éramos felizes só com o
cheiro.
Um perfume que se acabou: o
dos lindos e alongados pendões das angélicas, flores brancas que chegavam de
noitinha pelos barcos que faziam a linha do Careiro. As angélicas do Careiro,
encomendadas para casamentos, perfumavam as noites do cais, transportadas pelos
carregadores italianos nos seus carrinhos de mão com rodas de ferro.
Cheiro inconfundível era o do
perfume enjoado que saía dos cabelos das caboclas, que abusavam, para que a
cabeleira ficasse reluzente, da brilhantina Royal Briar, que era a marca
popular de moda, vendida em latinhas de dois tamanhos. Nos arraiais da Praça
14, nas quermesses da praça São Sebastião e até mesmo nos passeios
domingueiros, eram voltas e voltas, pelas calçadas que rodeavam a praça do
Ginásio, predominava, adocicado, o cheiro da brilhantina.
Outro produto de perfumaria
muito em voga, com fama de deixar os cabelos sedosos, era o Óleo de Mutamba,
vendido em pequeninos frascos de vidros alongados. A cabeça oleosa contrastava
com o rosto excessivamente empoado pelo então famoso pó-de-arroz Coty, em cuja
caixinha amarela vinha impressa, ao estilo art-nouveau, a figura de uma
sedutora dama de vestido longo.
Quanto a nós, meninos daquele
tempo, jamais esquecemos o insuportável cheiro dos vermífugos a cujo tormento
éramos submetidos, de tempos em tempos, entre engulhos e chineladas: o Óleo de
Rícino, a dose era de três colheres de sopa seguidas e em jejum, e as
fedorentas pílulas, até que de um bonito dourado, da Panvermina. Ninguém
conseguia dormir em paz, o pensamento no suplício do amanhecer. Além da fome
danada que a gente tinha que aguentar: só se podia comer depois que o purgante
“fizesse efeito”, por sinal recolhido sempre num urinol dos graúdos, a fim de
permitir a avaliação visual dos poderes do vermífugo.
Deixo para o fim o cheiro de
uma mulher inesquecível, o cheiro de dona Adelaide, a bela negra parteira de
Manaus do meu tempo de menino. Vejam que não digo que era a mais perfumada:
digo que era a mulher cheirosa da cidade. Quando dona Adelaide dobrava uma
esquina, o seu cheiro entrava pela rua, penetrava nas casas antes dela. “Minha
comadre Adelaide vem vindo aí, o cheiro dela já chegou”, dizia minha Mãe. Eu
meninote saía correndo para encontra-la. Toda de branco, a saia comprida de
rendas, a blusa bordada de cambraia fina, no seu andar vagaroso e muito digna,
lá vinha ela pela calçada da rua Isabel. Eu lhe pedia a bênção e dona Adelaide
ainda me dava, de quebra, a ternura infinita do seu poderoso sorriso.
Ela entrava lá em casa e a rua
ficava rescendendo a piprioca, patichuli, pau d’Angola, catinga-de-mulata, pó
de baunilha, japana, folha de cuia-mansa e vindica. Dona de alta ciência,
preparava com as suas santas mãos o cheiro-cheiroso que era só dela, com ervas
e plantas que cultivava no jardim encantado da sua casa da 13 de Maio, ali bem
juntinho ao lugar em que, alunos do Ginásio, tomávamos o tacacá da dona
Raymunda e onde hoje se toma o de suas filhas, a Alice e a Hilda, que herdaram
a sabedoria da mãe no preparo do tucupi, de longe o melhor da cidade.
Dona Adelaide era Adelaide
Salgado, do Maranhão. Teve duas filhas, figuras que faziam muito a vista da
cidade: a Zaíma, que morreu cedo, foi mulher do seu Mendonça, por muitos anos
vendedor da drogaria Rosas; só está viva a mais velha, a Eglantina: casou-se
com um tintureiro, tiveram um filho, hoje engenheiro em Minas Gerais. Criada
entre a magia do cheiro e da ternura de dona Adelaide, cresceu linda a Lolita,
sua filha adotiva.
(Do livro “Manaus, Amor e
Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)
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