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domingo, junho 23, 2019

ABCedário íntimo para uso público (17)



Por Thiago de Mello
Da casa em que moravam dona Lídia e seu Sebastião Brito, trabalhador da turma de encanadores da rede hidráulica (populares figuras da cidade), restam só os resíduos dos escombros. Também em ruínas estão as paredes que serviram de moradia a um dos casais mais queridos e respeitados de toda a redondeza: os velhos Bayma, seu Felix e dona Maria. O belo jardim de dona Maria, a cujo cuidado ela dedicava um pedaço grande de suas manhãs, atualmente é um chão de cimento que serve de garagem. 
Os Bayma eram um casal de negros pobres chegados do Maranhão antes da Primeira Guerra Mundial. Trouxeram o filho primogênito, o João, com 4 anos e foram morar na Cachoeirinha. Aqui nasceu a Jória, nasceu e viveu, e até hoje vive com o bom do seu marido Godofredo. Porque entre João e Jória nasceram e morreram sete filhos. Seu Felix já chegou à rua Isabel para ser, como o foi até morrer, o zelador da Usina de Esgotos, erguida com talento pelos ingleses no começo do século e que nunca chegou a funcionar; sólida e imponente construção que ainda hoje, posto que inteiramente devastada, pode ser contemplada atrás da rua Isabel, de frente para o igarapé, com a sua elegantíssima chaminé de ladrilhos refratários vermelhos, a boca adornada por uma renda de ferro.
A chaminé, nos dias da nossa adolescência, já não funcionava: era morada de andorinhas (aquelas andorinhas em cujo estremecer das asas meu avô materno Joaquim Mitouso, cego de catarata, sabia reconhecer, valendo-se das informações que eu lhe transmitia, prenúncios de chuvarada.). Mas no interior do edifício, guarnecidos por grossas paredes de pedra de cantaria e entrevistos através dos espessos cristais dos harmoniosos janelões, lá estavam – intactos, perfeitos, reluzentes de limpos – os metais das máquinas do seu Felix. 
Porque era assim que o velho negro as chamava – “as minhas máquinas”, expressão da responsabilidade e do carinho que tinha no trato cotidiano com elas. Era vasto o terreno que circundava a Usina, todo cercado de altas grades de ferro, de acesso interditado a estranhos. Mas o zelador, de andar sossegado, com um inseparável boné que lhe protegia a calva lisa cobreada, fazia vista grossa, para a criançada da rua, cujos quintais faziam limite com o Almoxarifado. Porque era este, para nós, o nome do lugar, jamais foi Usina, e cuja entrada principal, um largo portão de itauba, ficava lá para o fim do quarteirão. 
O portão só se abria quando saía ou chegava o automóvel do diretor, um Ford de bigodes e capota de lona creme, que ali tinha a sua garage e a moradia do seu chofer: o seu Josias, mulato finíssimo de trato. Um filho dele, caboquinho troncudo, uma tarde caiu dentro de um dos tanques enormes e fundos, revestidos de chapas de ferro, eram uns quatro ou cinco tanques daqueles, retangulares, com maquinarias lá por baixo, suponho que bombas; eram destampados, porém grossas correntes serviam de grades; ficar espiando lá de cima o fundo deles, um tempão grande sem nenhuma palavra, era um de nossos encantamentos. 
Jamais esquecerei a operação de salvamento, sob o comando do velho Felix. Amarrou uma corda no peito largo e por debaixo dos bíceps de aço do seu filho João Bayma, também operário de encanação de água, que foi se arriando rente à parede, sustentado pelos pulsos do velho e do pai do menino, logo alcançou a água onde aflito se debatia, já cansado, o nosso companheirinho. Para alçar o homem e o menino abraçados foi muito mais difícil e mais demorado; em compensação já eram muitas, as mãos, muitos eram os músculos e os corações que de repente foram chegando, e num único empenho solidário, juntos forcejavam para erguê-los até a borda. 
Não há cinza de tempo que embace a limpidez da emocionada alegria iluminando o semblante de todos no momento em que o negro João Bayma entregou a criança ao seu Josias e, em seguida, estendeu um braço para fixar a mão no batente externo da borda: mas foi a mão, foram as duas mãos cheias de amor do velho Felix Bayma que agarraram a do filho para ajudá-lo a subir. Retiradas as cordas, os braços e o peito do negro corpulento sangravam escalavrados. 
Eu conseguira me aproximar da beira do tanque, com esse dom que criança sempre tem para inventar brechas, e olhava espantado as feridas do seu João, nosso vizinho de quintal na Quintino Bocayuva, quando de repente me dei com os olhos presos ao rosto do seu Felix: ele ofegava compassado, mas sorria silencioso; o corpo bem plantado, sem nem enxugar as lágrimas orgulhosas que porventura havia muitos anos não lhe nasciam do peito.
O bando de meninos e meninas também – andávamos entrando na casa dos dez – festejamos a aventura com uma de nossas brincadeiras prediletas ali nos domínios do Almoxarifado: apostar corrida sobre os enormes canos negros de ferro, uns dez metros de comprido por um, eu calculo que mais, de diâmetro, dispostos um ao lado do outro perpendicularmente ao rio, quase todos bem encostadinhos, só uns três ou quatro é que guardavam entre si espaços maiores, meio metro se tanto, a não ser o penúltimo, que, já bem próximo ao portão de ferro que se abria para a ladeira do igarapé, tinha depois dele o vão mais avantajado, que pedia canela arisca para atingir o cano final, onde a competição findava em brados de novo desafio. Mas nem todos chegavam à ultrapassagem da meta. 
Sucedia que precisamente essa última tubulação, termo que aliás ainda ninguém conhecia, tinha, além do vão maior a separá-la da penúltima, duas outras particularidades que agravaram a dificuldade dos lances finais: não só era mais alta que todos os outros canos, como ainda estava um tanto inclinada. A queda de algum camarada no vão fazia parte da nossa alegria, dentro de cuja frágil casca, a infância sabe dissolver humilhação, a raiva e a mofa. A corrida daquela tarde quem ganhou foi o Tamar, já conto dele, que era o mais engenhoso da turma da rua Isabel. 
Eu, de regresso à casa, ganhei uma sova daquelas em que meu pai se esmerava (era o seu jeito de amar), as lambadas seguidas do tormento maior de um sermão infindável, inspirado na hipótese de que poderia perfeitamente ter sido eu, seu filho, quem tivesse caído no tanque do Almoxarifado e como eu então não era bom de nado, certamente teria morrido afogado; e tome faca de couro.
Seu Felix Bayma já morreu faz tempo. Mas posso garantir, e comigo a rua inteira, que ele, por mais que as amasse, não pediu que lhe botasse no caixão as suas máquinas, que lá permaneceram na Usina. Como lá ficaram as centenas de negros canos enormes e os tanques com as suas aparelhagens que jamais estiveram emperradas.
Nos primeiros dias de 78 chamei o poeta Bacelar para que me acompanhasse a uma visita ao Almoxarifado e percorrer aquele campo de antigas descobertas. Entramos pelo portão já sem portão, apressei o passo para rever os misteriosos tanques escuros. Não existiam mais; foram simplesmente entupidos com terra. Dobrei para o edifício da Usina e logo me deparei com as vidraças das janelas rompidas, todas elas, uma a uma, estilhaçadas a gosto perverso. Entrei pela porta escancarada do primeiro salão, onde esteve montado o conjunto maior dos motores, dos quais só restavam, além de pequenas peças inutilizadas pelos cantos, grandes rombos no chão. 
No salão central encontrei pessoas andrajosas dormindo no chão, uma mulher jovem e suja preparava um café: só não encontrei as máquinas. O terceiro salão, em cujo ângulo esquerdo se abria a boca de ingresso para a chaminé, era um depósito de detritos metálicos, monturo apodrecido. Deixei o casarão devastado, tomei pela direita, na direção da Quintino Bocayuva, quando de súbito a memória me devolveu os canos que por ali se alastravam. Não havia mais nenhum para contar a história. História que os moradores das cercanias também não sabem contar. 
A muitos deles, gente do meu tempo, indaguei quem retirara ou quem mandara arrancar as máquinas, para onde tinham ido os canos, quando e como foram levados, já que pesavam às toneladas, quando é que entupiram os tanques, quem são as pessoas que habitam o prédio abandonado. Ninguém me deu resposta nem explicação. O bom Adelson, aliás casado com uma Bayma e que nunca perde o humor desde adolescente, quando iniciamos uma camaradagem que até hoje se mantém, o jeito que achou foi achar graça: “Levaram tudo, meu mano. Mas quem foi, ninguém sabe, ninguém viu”.
Despedia-me contemplando em silêncio a velha e digna chaminé, que só por um milagre se mantém erguida, quando o poeta Luiz Bacelar me dá a notícia, quem sabe no intuito de serenar minha perplexidade, de que existe um projeto para restaurar as instalações da Usina e destiná-la a um teatro popular. 
Confesso que me animei, pelo menos se lavava a mancha vandálica com um serviço ao campo das artes, nesta cidade para a qual nenhum governo teve uma política cultural. Logo, no entanto, o cético Luiz, revelava que o projeto era já de muitos anos, de vez quando voltava a ser vaga notícia em jornal, ou uma frase em discurso, mas de real mesmo ele só mantinha o nome: Projeto Chaminé.
Imperturbável e inútil, a chaminé hoje compõe, com os seus tijolos, apenas um marco, envergonhado, que recorda e denuncia para a cidade, a incompetência, o descaso e o desrespeito dos seus admiradores. (Não me contenho e decido anunciar, com a humildade que convém mas com a determinação de que me sei capaz, que vou me empenhar como puder para que vingue o Projeto Chaminé. Não tenho função pública nem disponho de recursos. Mas acho que sempre vale a pena ajudar a fazer o que vale a pena ser feito, principalmente quando se trata de servir ao povo. Aos meus companheiros de meninice no universo do Almoxarifado, não prometo descobrir quem deu fim naqueles preciosos bens do Estado. Prometo só o que nosso cumprir: fazer a minha parte para que as crianças da rua, as grandes de permeio, tenham um teatro, que também é universo mágico, de arte popular.)
Releio as últimas linhas, pondero vagaroso os adjetivos que ficaram ligados ao triunfo do Tamar e ao castigo que meu pai me infligiu, e aproveito para dizer (acho que mal não faz e quem sabe pode até ser de serventia a algum leitor que não padeça de pressa) que faz tempo já convenci minha memória das virtudes da moderação, indispensável a esse seu ofício de ir buscar de volta a vida que desapareceu nas águas do lago do tempo. Águas, nunca imóveis, em cujas funduras muito esmeralda acaba virando lama pegajosa, mas de onde, em compensação, uma flor silvestre pequenina e meio murcha que te foi oferecida – oferta que na própria oferta se cumpria – e a tua lembrança afogou em indiferença, eis que inesperada emerge, sem que a memória a chame, deslumbradamente transfigurada em estrela de ametista, pelo imperceptível trabalho de lavor, que nunca cessa, das unhas do tempo vivido.
Moderado que, contudo, não se confunda na recusa ou, o que é mais cruel, no medo que cega, de olhar nos olhos transparentes da explicação do mistério, que nunca penetraste, e afinal decifrado pelos grãos da ampulheta implacável. Medo, por exemplo, de frontear a verdade brilhando na cara agoniada da pantera que amaste, e de cuja mordida de fogo, naquela tão antiga madrugada em que ardias pelo orvalho do seu dorso, teu peito só quis guardar a queimadura queimando na memória, queimadura que escarvas, que mais escarvas quando a solidão te aconchega, e com mais fúria escarvas quando te surpreendes já quase esquecido da traição que nunca existiu naquela mordida, cuja dor urdiste à imagem e semelhança de tua falta de amor.
Enfim, que, no geral, prevaleça a moderação. Salvo nos casos de reencontro inesperado ou de reconstrução intencional daqueles instantes, de maravilhada alegria, que a memória jamais dissolveu. Ou nos de louvação, que sempre se quer demasiada, dos amigos que já partiram mas que nos enriqueceram a vida com o seu convívio leal e amoroso, e cujas imperfeições e fraquezas, lavadas pelo tempo, a memória, feliz e travessa, transforma em simples expressões da condição humana. Mas voltemos à rua Isabel.
O único telefone existente na rua Isabel, até os primeiros anos 40, estava instalado na casa do seu Felix. O aparelho constava de duas caixas de madeira superpostas, de uns vinte centímetros cada uma. Na face frontal da superior ficavam as campânulas côncavas de metal, que soavam estridentes, percutidas por um badalinho de ferro; na face direita, a manivela que se rodava até o fim da corda para que a voz chegasse pelo bocal fixo da fala e partisse pelo auditor, ambos na caixinha inferior. Estava na sala de visitas, fixado à parede do lado direito de quem entrava, depois de ultrapassar o perfumado jardim sempre florido de dona Maria. 
Se não me engano, o aparelho do zelador só se comunicava com a repartição central das Águas, num prédio que até hoje existe na Miranda Leão, para o qual estou com vontade de abrir verbete especial. Como numerosos dos seus servidores moravam na rua Isabel e redondezas, eram frequentes os chamados, quero dizer, uma vez por dia e olhe lá, mais de uma só em caso de doença, a alguma pessoa da família. 
Lá saía alguém da casa do zelador, uma das netas, ele próprio, a transmitir o recado. Minha mãe quase sempre me escolhia, vá lá ver o que seu pai quer, eu gostava de falar no aparato milagroso, dobrava correndo a esquina do seu Emílio, só ia parar diante do telefone, com a afobação nem me ocorria dar os bons-dias, no plural, como a dona da casa preferia, mantendo o costume que trouxe do Maranhão. 
Para a dona Maria do seu Felix, minha Mãe nos educava no cumprimento completo: Bons-dias, dona Maria, como é que a senhora passa? Passo com a graça dos justos, respondia com indisfarçável satisfação. Também não disfarçava o desagrado quando um de nós, na pressa de chegar ao telefone, passava por ela sem um ai. O resmungo era instantâneo e tocava nos brios: “Na minha terra também se usa um cristão saudar a outro”. Dava-se por contente e voltava às suas begônias.
Muitos netos Maria Bayma ganhou do filho mais velho, o João, que casou com dona Celina, e foi morar numa casinha estreita, que colindava com uma imensa construção de zinco, onde funcionava uma fundição, nos terrenos do Almoxarifado. Ali nasceram o Sorimam, a Irene, a Isaura, a Teresinha, a Ivete e o Acatauaçu, de cujo parto dona Celina morreu, assistida por minha mãe. Seu João tornou a casar-se, teve mais três filhas, e ficou morando na mesma casa, de frente para a Quintino Bocayuva, até hoje residência da segunda família.
Era da janela dessa casa, recuada alguns metros das grades bem altas do Almoxarifado, que o seu João curtia invariavelmente os seus excessos de XPTO ou da “Branquinha”, desafiando aos berros o seu vizinho português, bom também de trago, que logo assomava ao parapeito, rico de impropérios cabeludos, rebatidos por seu João com palavrões sonoros que acordavam os vizinhos, alguns dos quais atiçavam os desafetos, minha mãe é que lá se levantava e usava de toda a sua doce energia para apaziguá-los. 
Nunca passaram dos xingamentos. Recordo pelo menos uma vez em que seu Rodrigues saltou da janela de terçado na mão disposto a tudo. Seu João ainda tentou ultrapassar as grades, mas a família conseguiu contê-lo, enquanto mofava do adversário, vociferando que com ele era no braço, não precisava de terçado, não.
Quem sabe a vocação frustrada do pai para a briga no braço é que fez do seu filho Sorimam, alguns anos depois, um dos mais temidos brigões das noites do bairro, enturmado com o Segadilha, outro bamba da rua. Ainda bem que salvou-se das arruaças e tornou-se um dos melhores lutadores de boxe da cidade, acabou campeão da fama, lástima que efêmera.

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