Por Thiago de Mello
B
de borracha
Algum leitor talvez espera um
verbete demorado. Afinal, a memória mal conservada da Manaus antiga sempre se
identificou com a borracha. Pois não é. A nossa geração é a filha
pobre do extrativismo do látex. É por isso mesmo, e dialeticamente, uma geração
abençoada. Soube aprender (nem todos tiveram cinza nos olhos) as lições da
decadência, e da sua causa dar o nome certo aos bois. Como canta o meu
companheiro Manduka: “Por isso somos quem somos”.
Da borracha mesmo, nós só
sentimos o cheiro, a sua forte e sensual resina impregnando Manaus, quando o
“bloco” era aberto ao meio, fêmea ofendida, pelo facão dos exportadores, ciosos
da sua virgindade livre de enganadora ganga.
B
do Bar Bom Futuro,
que ficava ao final da linha
do bonde de Flores. Casarão coberto de telhas de canal, sortido de bebidas
finas, servidas em mesinhas redondas de mármore e cadeiras austríacas legítimas.
Durante o dia o Bom Futuro não se fechava à frequência das famílias que até lá
chegavam em seus passeios domingueiros. Mas já o primeiro bonde de cada noite
começava a levar os fregueses, jornalistas, médicos e intelectuais da época,
acompanhados de moças alegres, que faziam daquele recanto no meio da mata um
dos prediletos campos da boemia da cidade, enriquecido pelas delícias das águas
frescas de um igarapé que também desapareceu.
As noitadas, que contavam com
a animação de moças que chegavam desacompanhadas, às vezes se prolongavam pela
madrugada, e alguns casais acabavam perdendo o derradeiro bonde. Não fazia mal.
Era já o tempo das garagens, a Avenida, a União, a Esportiva, cujos automóveis
faziam ponto ao centro da Eduardo Ribeiro. Devidamente contratados, lá estavam
o Pedro Avelino, o espanhol Marafona, chofer de um Buick da garage União, à
espera dos retardatários do Bom Futuro.
B
do som mágico e misteriosos do batuque da Mãe Joana, negra
mãe de santo de um candomblé da pesada. O som dos tambores se erguia lá no
terreiro da Praça 14 e percorria solene os caminhos da noite, atravessando o
silêncio da cidade.
B
do 11 Brilhante,
clube popular, um dos “freges”
famosos daquelas noites. Nos seus começos era chamado de 11 Brilhantes, no
plural, por ter se originado de um clube de futebol que nem sede tinha, mas
invencível nas partidas de bairro. Quando a conseguiu, esforço dos sócios
pioneiros, virou lugar de dança e de jogatina. O nome do clube exercia grande
fascinação em minha imaginação adolescente, ouvido de bocas vividas nas ruas
pobres da Cachoeirinha. Só uma vez estive lá, um sábado de festa, já nos anos
50, levado pelo Raimundo Doza, companheiro querido que não sei que fim levou,
personagem real do meu livro “Visitação que fiz ao Rio Amazonas e seus
Barrancos”.
Apresentado pelo caboclo Doza
como “jornalista do Rio de Janeiro” ganhei mesa e cerveja gelada, brinde da
diretoria a quem inutilmente tentei esclarecer que jornalista que nada, eu era
um caboclo suburucu orgulhoso da acolhida que recebia do clube que admirava há
tantos anos. Nunca vi tanta cabocla bonita junta como naquela noite. No banjo,
o inefável Wanderley (cuja origem barbadiana vim a saber só após a referência
que lhe fiz a propósito dos sons da cidade), com a riqueza do ritmo dos seus
batutas musicais.
Informante de memória rica me
garante que baile do 11 Brilhante em geral terminava em banho no igarapé do
Quarenta, cujas águas tíbias, límpidas e livres da poluição atual, convidavam a
carícia molhadas. É certamente verídica a informação. Sucede que tais fins de
festa não eram privilégio só daquele clube, frequentado por moças de cabeça
embrilhantinada e saia de chita e caboclos com calça de zuarte e paletó de
caroá. O igarapé do Mindu e as águas noturnas da ponte da Bolívia banharam a
ternura de muitos pares, que lá chegavam em carros de praça ou em baratinhas
particulares, para continuar na dança. Sem falar no Banho das Mil Virgens, o
preferido das moças da alta.
B
dos Bilros pendentes
das almofadas cilíndricas, uns
trinta centímetro de diâmetro por meio metro de comprimento, com os quais os
dedos agilíssimos das mulheres pobres do tempo, a grande maioria delas, teciam
as suas rendas. Eram verdadeiras rainhas de um artesanato que, como até hoje em
várias cidades do Nordeste, enriqueciam a nossa cultura popular. A cabeça dos
bilros, geralmente de caroço de tucumã, era presa a uma vareta fina de uns dez
centímetros, na qual se enovelava a linha. Imóvel, silencioso, eu me deixava
sob a sedução do milagre das rendas nascendo, cheias de flores e arabescos, das
mãos mágicas das rendeiras, uma delas minha Mãe.
B
das bruxas de pano,
as bonecas das crianças
pobres. De fabricação caseira, o corpo da boneca era recortado em morim branco,
dobrado em dois, para que a frente e as costas saíssem com o mesmo feitio;
costuradas as bordas, eram recheadas com algodão ou trapos, as mais bem-feitas
tinham dedinhos; as sobrancelhas, os olhos, o nariz e a boca eram bordadas a
mão com linhas de cores adequadas. Finalmente, os vestidos de chita colorida.
Perdão, antes era a fabricação cuidadosa em tranças delicadíssimas, uma de cada
lado. Havia também os bruxos, masculinos, de calça e paletó. Festa de crianças
incluía casamento de bruxos.
B
da Biblioteca Pública do Amazonas,
verbete que consagro, em sinal
de carinho respeito, a Genesino Braga, seu apaixonado diretor durante tantos
anos e certamente o amazonense que mais sofreu naquela madrugada de 22 de
agosto de 1945, quando um incêndio destruiu completamente todo o precioso
acervo de livros que ele ajudou a reunir e organizar. Como em geral ocorre
neste país, e não apenas em nossa cidade, quando os bombeiros chegaram, com os
precários recursos de que dispunham à época, não havia água nas bocas da rede
pública, e nada puderam fazer. A cidade foi abalada pelo incêndio, que não
destruiu apenas os livros: só permaneceram de pé as grossas paredes do vasto e
antigo edifício. Não sobrou uma única página de livro.
De uma crônica do próprio
Genesino, escrita ainda sob o impacto da catástrofe, recolho a notícia de que
só escaparam do fogo alguns poucos valiosíssimos volumes que, por fortuna, se
achavam em exposição, por ele organizada, em outro local público, entre os
quais os três tomos do ín-folio de Debret, “Voyage Pittoresque et Historique au
Brésil” e um missal manuscrito e iluminado a cores em pergaminho, obra
atribuída aos monges de Monte Cassino.
B
das brincadeiras de roda,
com as suas cantigas tão
lindas, lástima que a maioria delas não conste dos discos que de vez em quando
alguma editora se lembra de gravar canções para crianças. Manifestação cultural
comum às crianças, e adolescentes também, de todas as ruas e bairros da cidade,
das brincadeiras de roda participavam crianças de ambos os sexos e a elas
éramos atraídos não apenas pelo sentimento lúdico, também pelo prazer de
cantar, o gosto pela música que a roda só fazia aperfeiçoar.
Quero transcrever os versos de
algumas delas, sugerindo ao leitor que os leia, cantarolando baixinho, em
louvor do tempo em que foi menino:
Oh, que lindas laranjas
maduras,
que cor são elas?
Elas são verdes e amarelas,
vira, Noemia,
cor de canela.
(A criança cujo nome era
citado imediatamente dava um giro ao corpo, continuando a rodar de mãos dadas,
até que a ordem de “virar” fosse dada a todos os participantes.)
Outra cantiga era entoada
pelas crianças em fila, cada qual com as mãos apoiadas nos ombros da que lhe
vai à frente. À espera da fila, com os braços erguidos em arco, duas crianças
das maiores escutavam o pedido:
“Bom barqueiro, bom barqueiro,
dá licença de eu passar,
carregado de filhinhos
para acabar de criar.”
Vinha a resposta das que
formavam o arco:
“Passarás, passarás,
mas algum há de ficar,
se não for o da frente
há de ser o de trás.
Geralmente era o último a ser
preso pelo arco que descia, com a pergunta cabalística – Garfo ou faca? Todo
mundo respondia faca, porque garfo queria dizer inferno.
Outras cantigas de roda do
tempo; esta, verdadeira declaração pública de amor da qual o solista não se
envergonhava:
“Você gosta de mim, Esperança,
eu também de você, Esperança.
Vou pedir a seu pai,
Esperança.
Para casar com você,
Esperança.
Se ele disser que sim,
tratarei dos papéis,
se ele disser que não
eu morrerei de paixão.”
A roda respondia em coro:
“Palma, palma, palma, João.
pé, pé, pé, João,
roda, roda, roda, João,
casa com quem tu quiseres.”
Outra canção que pedia coro e
solista:
“Boa-noite, Vossa Senhoria,
matu-tiro-tiro-lá,
escolhi uma das vossas filhas,
matu-tiro-tiro-lá,
quero me casar com ela,
matu-tiro-tiro-lá.”
O coro perguntava, depois de
indicada a “noiva”:
“Que ofício dás a ela,
matu-tiro-tiro-lá?”
O solista respondia, com
variações de acordo com a circunstância do agrado ou desagrado da menina
indicada. Se o ofício era, por exemplo, o de lavadeira, a resposta era imediata:
“Este ofício não me agrada,
matu-tiro-tiro-lá.”
Fosse, porém, o de pianista ou
de professora, então a roda confraternizava bem alto:
“Este ofício, sim, me agrada,
matu-tiro-tiro-lá,
este ofício já me agrada,
matu-tiro-tiro-lá.”
Além das tradicionais “Carneirinho,
carneirão”, “Ciranda, Cirandinha”, “Terezinha de Jesus”, cantava-se muito uma cantiga
do gosto geral:
“Vamos, maninha, vamos,
à praia passear,
vamos ver a barca nova,
que do céu caiu no mar.
Nossa Senhora vai dentro,
os anjinhos a remar.
Rema, rema, remador,
que essas águas são do amor.”
“Largata pintada
quem foi que te pintou?
Foi uma velha
que por aqui passou.
No tempo da ilha
voava poeira,
puxa largata
na tua orelha.”
“Des
enfants
De ce
monde ou bien de I’autre
Chantaient
de ces rondes
Aux
paroles absurdes et lyriques
Qui
sans doute sont les restes
De
plus anciebs monuments poétiques
De
I’humanité.”
Guillaume
Apollinaire, em Alcools, Gallimard, 1920.
B da brincadeira de rua
chamada Trinta e Um Alerta.
Reunia-se o grupo e sorteava-se o que devia ficar de olhos fechados, contando
até 31, depois do qual saía à caça dos companheiros escondidos. O sorteio se
fazia com a frase, uma sílaba dirigida a cada membro do grupo, que era misto:
“Tuturubim tetê tic tac tambarola, teje dentro, teje fora”. Quem ficasse com a
última sílaba ia lá para um canto contar em voz alta os números até o brado
mais forte: “31 alerta!” Era aí, durante os instantes da procura e da
escondidas, que os mais taludos aproveitavam a ocasião para alisadas e acochos
nas meninas já mocinhas. Quem fosse descoberto seria o próximo “31 alerta”
B
de três bares ou cafés
que não tinham o prestígio de
um Bar Americano ou de um Leão de Ouro, mas que eram os mais frequentados pelos
ginasianos e pela rapaziada da época. Todos já fecharam as portas. O Normal,
que ficava na esquina da 13 de Maio com a Sete de Setembro, bem ao lado do
cinema Politheama, que nos servia a melhor média com pão e manteiga da cidade.
O Moderno, também na Treze de Maio, depois do cinema. E o Sombra, que servia um
café com leite especial, em copo, ali no Canto do Quintela.
B
de Colégio Dom Bosco,
educandário salesiano que teve
importante papel na formação da juventude daquela época, pela excelente
qualidade do ensino. Os mestres eram, na sua maioria, os mesmo do Ginásio. Dois
nomes se distinguiam na direção do colégio: o padre Estelio, alto e corado; e o
baixote padre Agostinho, espanhol severo nas disciplinas, mas dono de um
cativante riso de menino: se fez famosa a sua pequenina sineta, que sempre
trazia à mão, com a qual dava cascudo – de leve, mas para doer – nos alunos que
saíam do riscado.
A população estudantil do Dom
Bosco era superior à do Ginásio: tinha centenas de alunos internos. Quase todos
os comerciantes e seringalistas do Acre, do Purus, dos altos rios, internavam
os seus filhos no colégio dos salesianos em Manaus. Enquanto o ensino no
Ginásio era gratuito, no Dom Bosco era pago e a mensalidade era puxada. Só
famílias de posses podiam manter os filhos naquela casa, onde se cultivava,
entre os alunos, uma indisfarçada rivalidade em relação ao Ginásio Amazonense.
Principalmente por ocasião das
paradas na Semana da Pátria: o espírito de competição empolgava os alunos
durante o desfile pelas ruas da cidade, os tambores e os clarins com toques e
percussões próprias de cada colégio. Ambos, ao final, se consideravam os
vitoriosos. Mas o aplauso da cidade era sempre mais generoso quando os
ginasianos desfilavam. Houve um ano, porém (acho que 39 ou 40), em que o Dom
Bosco simplesmente abafou a banca: abriu o desfile com uma dezena de alunos a
cavalo, portanto lanças embandeiradas.
B
de Bacelar
De Luiz Bacelar, o meu amado
Luiz. Um dos mais altos poetas, não só de Manaus, mas do nosso tempo. Me sinto
orgulhoso – e até publicamente faço alarde desse orgulho – de merecer o afeto (o
enrolado afeto) desse caboclo em quem reconheço um dos homens mais
refinadamente cultos de minha geração. Há coisa de trinta anos que nós brigamos
todos os dias, quero dizer todos os dias meus vividos em Manaus, onde eu chego
e é ele uma das primeiras pessoas a quem procuro. Isso quando ele não adivinha
a minha chegada num lance de premonição e já é o Luiz que me vem ao encontro.
Brigamos por quase tudo. Pondo de parte matéria ideológica e a minha esperança
na transformação da sociedade humana, sobre a qual ele de público me apóia com
o silêncio e um ostensivo ar de desfastio, para depois, sozinho, afirmar com
uma frase cortante e cortês a sua discordância – o pior é que quase sempre o
danado do Luiz está com a razão.
Uma noite recente no Galo
Carijó o poeta quis saber das minhas moradas em Paris; eu lhe entreguei, mais
interessado no jaraqui do Alfredo, detalhes de ruas e boulevards, e me referia
ao Hotel Esmeralda, ali na Rue Saint-Julian le Pauvre, cuja janela se abria
para a frente da Notre Dame, quando o Bacelar me interrompeu: “Pela frente não,
pela esquerda”. Ele estava certo; ele que nunca esteve em Paris, conhece a
cidade melhor do que eu.
O caboclo tem finas sutilezas
para divergir; simplesmente não diverge: interrompe o interlocutor, geralmente
com uma pergunta que nada tem a ver com o tema da conversa. Eu disse “caboclo”?
Está certo; mas caboclo de sangue nobre, e ele se exige respeito, maciamente.
Bacelar tem brasão e usa anel de sinete, é mestre em heráldica, sabe todos os
ramos antigos dos barões e dos viscondes do outro lado do mar que abrem a
linhagem dos Franco de Sá e dos Bacellar.
Primavera sangrenta do Chile,
1973: quando consegui “la visa” para sair, levava na minha bolsa, terrivelmente
revistada pelos militares de Pinochet, apenas três livros: um deles era o
“Frauta de Barro”, uma das mais importantes obras da poesia brasileira de todos
os tempos – e toda escrita em Manaus. Eu precisava levar comigo a poesia do
companheiro pelos caminhos ainda ignorados que eu deveria percorrer sozinho em
nome do amor ao meu povo. Quando o avião tomou a altura das nuvens, abri a
minha querida bolsa de couro, retirei o volume e li em voz alta, no meio do
medo aliviado dos passageiros que escapavam do inferno:
No livro azul o sossegado
vento
lívido sonha linhas de
escultura
que moldará nas nuvens no
momento
de apascenta-las pela tarde
pura.
Num arrepio de pressentimento
o ruflo de asa risca na
brancura,
o sol arranca brilhos do
cimento
do muro novo, a folha cai.
Madura.
Tudo o verão proclama. A tarde
limpa,
esmaltada de claro; pela
grimpa
do morro verde a cabra lenta
vai...
A luz resvala na amplidão
sonora.
Por que senti roçar-me a face
agora
um beijo, um frêmito, um
suspiro, um ai?
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