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terça-feira, junho 11, 2019

Os sons da nossa cidade (4)



Por Thiago de Mello

Não podem ficar de fora, neste encontro geral dos sons daquela Manaus que o tempo engoliu, o dos alto-falantes que, em vários lugares, funcionavam em diferentes horas do dia e da noite. Sons de palavra cantada e de palavra falada.

É de justiça começar, numa homenagem pelo imenso serviço que prestou ao povo que ama o futebol (sempre fico de pé atrás quando encontro alguém que diz que não gosta de futebol nem de samba) com o alto-falante instalado nos altos do “Mundo dos Móveis”, da empresa Antônio M. Henriques, ali na Eduardo Ribeiro em frente aos jardins da Matriz. (Eram poucas as casas que podiam ter em casa um rádio, aparelho que em Manaus era vendido precisamente pelo A. M. Henriques, representante da Philco.) Foi por ele que a cidade ouviu a transmissão dos jogos do Campeonato Mundial de 1938, realizado na França, no qual Leônidas fez o primeiro gol de bicicleta da história do futebol. Foi no jogo de abertura contra a Polônia, o Brasil ganhou de 6 x 5, pelo menos isso conseguimos voltar para casa, sabendo: foi 6 x 5.

Sentados na calçada, na relva da Matriz, a maioria em pé mesmo, todo mundo em silêncio, procurávamos entender o que narrava lá do outro lado do oceano o locutor (era o Gagliano Neto) – e era muito pouco, era quase nada o que compreendíamos, tantos os ruídos, os estalos da estática. A gente se guiava era pela intensidade, pela vibração emocionada da voz do locutor, não pelas palavras, que eram poucas as percebidas. Mas a gente sabia quando o Brasil atacava, quando o perigo era grande, ninguém tinha dúvida quando era gol do Brasil. Arlindo Porto meu irmão, não é verdade o que eu conto?

Esses mesmos alto-falantes é que davam para a cidade as notícias do mundo doido se devorando na Segunda Guerra Mundial. Duas vezes por dia, transmitiam diretamente os noticiários da BBC de Londres em português. Já havia mais nitidez, silenciosos ficávamos inteirados do avanço das tropas hitleristas sobre a Europa. Aprendemos a palavra “armistício”, muitos choravam com a notícia da queda da França; o Paulo Rezende, nosso professor de francês, foi um deles: dias e dias ele continuou a repetir para nós: La France est tombée! Mas foi também o mesmo alto-falante do 22 Paulista que nos trouxe a alegria da Liberation! O povo livre nas ruas. Vive la France! O alto-falante do 22 não era só de noticiários. Fazia anúncios comerciais e irradiava canções então na moda. O seu prefixo musical era a “Mamãe eu quero”, cantada pela dupla Alvarenga e Ranchinho.

Todos nós sabíamos de memória a escalação do time do Brasil, na base do 1, 2, 3 e 5, que era, recitada com entonação própria, com pausas e subidas e modulações especiais de voz: Batatais, Domingos e Machado; Zé Procópio, Martins e Afonsinho; Lopes, Romeu, Leônidas, Perácio e Hercules.

Havia outro alto-falante, da mesma empresa, instalado numa janela do segundo andar do 22 Paulista, na esquina da rua da Instalação. As pessoas saíam da Matriz para lá, em busca de som melhor. Os ruídos, todavia, eram os mesmos. No do 22 ouvimos, com o Orlando e o Augusto (os dois hoje estão chutando as estrelas), o segundo jogo com a Tchecoslováquia. 1 a 0 Brasil, conseguíamos entender que o Perácio quebrara o braço do Planika, goleiro tcheco, o melhor da Europa, com um chute de 35 metros de distância. (A narração do jogo era dada, no dia seguinte, quase na íntegra, pelo O Jornal e pelo Jornal do Comércio).

Prefixo bonito era o do alto-falante erguido na esquina da Ruy Barbosa com a Sete, ali bem ao lado do Ginásio: era o Morena Boca de Ouro, sua primeira transmissão começava às oito horas em ponto, coincidia com o intervalo entre a primeira e a segunda aula, marcado para nós pela beleza da canção do grande Ary Barroso, de quem mais tarde a vida me faria a dádiva da amizade e de quem a arte me fez ser parceiro: “Morena boca de ouro / Que me faz sofrer, / O teu jeitinho é que me mata. / Samba, morena, vai não vai, / Roda, morena, vai não vai, / Samba com malemolência.”

Também de avisos comerciais, o serviço de alto-falante da Ruy Barbosa se distinguia pela irradiação dos discos recém-chegados com os sucessos da nossa música popular. Graças a ele nos iniciamos com paixão e nos mantivemos rigorosamente atualizados em matéria de valsas, samba-canções, marchinhas, interpretados pelos melhores cantores da época. Sabíamos as letras inteirinhas das canções, até hoje patrimônio da arte do nosso povo, que nos chegavam na voz de Orlando Silva e Nélson Gonçalves, da grande Aracy de Almeida, da Marília Batista, do Bando da Lua.

Canções que os cantores da terra interpretavam na PRF-6, a Maria Paixão – “a voz cabocla do samba”, o Irany Abreu e o Marcelo, não me lembro do sobrenome, era magro e muito alto, antes de ir para o microfone ficava ensaiando no jardim, tentando reproduzir os graves do Orlando Silva na “Neusa”. Mas eram cantadas também por todos, quero dizer pelo povo, esse povo de Manaus que fazia e faz bonita parte do povo brasileiro, que padece como um danado, mas que padece cantando. Quero me dar o gosto de transcrever (cantarolando) alguns fragmentos de canções daquele tempo.

“Eu nasci num clima quente. Você diz a toda gente que eu sou moreno demais...”

“Nada além, nada além de uma ilusão, chega bem e é demais para o meu coração”.

“Se Deus um dia olhasse a terra e visse o meu estado decerto compreenderia o meu sofrer desesperado e tendo ele nas suas mãos o leme do destino não deixar-me-ia assim a cometer desatinos”.

“Mesmo depois de cansado teu nome eu chamava baixinho, Helena dos meus encantos vem me fazer um carinho.”

Chega agora o momento de entrar em ação os alto-falantes dos cinemas. O do Politeama, o do Guarani, o do Avenida e o do Odeon. (O Popular, lá na Silva Ramos, de tão “poeira”, nem tinha alto-falante.) Todos eles, cujos salões e cadeiras guardavam tantos segredos da vida desta cidade, irradiavam canções populares e de algum modo competiam com o da Ruy Barbosa, durante os quinze minutos que antecediam a “sessão”. Havia a das quatro, a matinée, e a das 7, a soirée. Quando o do Politeama (da empresa Fontenelli), tocava o Tico-Tico do Fubá, o pessoal já sabia que o filme ia começar. Só que na “sessão de estréia” de “E o Vento Levou”, o Politeama teve que repetir umas cincos vezes o Tico-Tico, a multidão lá fora empurrando a da ante-sala, todos querendo lugar.

De todos aqueles cinemas, hoje só resta mesmo o Guarani, com a sua estrutura metálica, suas paredes desguarnecidas, suas pulgas e lá na tela as mulheres peladas coloridas, que não fazem mal a ninguém.

A festa agora vai esquentar porque já se está ouvindo a batida do boi.

“Ei ferro, ei aço, ei ferro, ei aço, eu te procuro e não te acho!”

O som dos tambores cresce na noite, embandeirando a cadência, a cantoria brava vai chegando, de pronto rebrilham mais os espelhos dos chapéus de aba virada e o cetim lilás da blusa dos vaqueiros descendo da Praça 14, uma voz, é uma só no canto em que ninguém desafina, todo mundo amarrado na batida do boi:

“Pisei, pisei, pisei, / pisei e torno a pisar / eu pisei Mina de Ouro / no Arraial do Bulevar.”

O Boi já está bem pertinho, ele hoje vem cantar aqui na rua, vai ser na casa de quem? A gente nunca sabia, era surpresa. De repente era o Caprichoso chegando, a voz dos couros e das madeiras crescendo, o boi dançando numa empolgação chega os chifres roçavam perigosos a blusa das moças que abriam a roda, atrás dele a multidão de meninos de todas as idades na alegria iluminada de acompanhar o bumbá.

Era o diretor dos índios quem cantava:

“Boa noite, dona da casa, / como vai, como passou, / trago o Boi Caprichoso / foi meu amo quem mandou.”

O silêncio reinava era quando chegava a vez do solo daquele chefe dos vaqueiros, o Antenor, caboclo muito digno de voz em registro alto:

“Meu amo está me chamando / eu já sei para o que é. / Vou partir para a batalha, / a cavalo ou a pé.”

Na hora da matança a Mãe Catirina atiçava o Pai Francisco ajudada por todos os figurantes e os circunstantes também:

“Oi, Chico tira a língua / Oi, Chico tira a língua / Oi, Chico tira a língua / Se souber tirar.”

Pai Francisco era escolado:

“A faca está cega, / A faca está cega, / A faca está cega, / Ela não quer cortar.”

Boi, Boi-bumbá, bumba-meu-boi, Mina de Ouro, Caprichoso, Garantido, Corre Campo, Campineiro, Boi Estrela. O Boi de Manaus sempre foi Bumbá, ao contrário do de Maranhão, onde ele tem suas origens, que faz questão de ser Bumba-meu-boi. Naquele tempo o boi não era feito para turista, nem muito menos para inglês ver. Era boi de verdade, feito mesmo para o povo. Passadas as festas juninas (os ensaios começavam dois meses antes), as cantigas perduravam muito tempo na vida da cidade, ajudando inclusive nos amores.

“Menina, seu passarinho / toda a noite me apoquentou, / à procura do seu ninho / sofrendo uma grande dor. / Aí eu mandei anunciar / que o Garantido chegou.”

“Aço frio de um punhal foi teu adeus pra mim. Não crendo na verdade, implorei, pedi. As súplicas morreram sem eco, em vão, pelas paredes frias do apartamento. Torpor tomou-me todo e eu fiquei sem ver mais nada, adormecido tenha talvez, quem sabe, pela janela aberta a fria madrugada amortalhava a dor com o manto da garoa.”

“Coqueiro velho, abatido pelos anos, ninguém sabe dos desenganos dessas folhas descoradas, caídas, vencidas. Somente a palmeira, coitada, que a ventania malvada levou arrastando sem dó duas vidas. Você é a minha palmeira de folhas bem verdes...”

Como, por exemplo o Rio de Janeiro tem a cadência do samba, de raiz no sangue negro, o nordestino tem os movimentos do seu xaxado e o pernambucano enlouquece no sincopado do frevo, o amazonense tem o ritmo da sua alma na batida do tambor do boi. A batida dos bois é a marca do nosso andamento musical, cheio das ressonâncias mágicas da floresta, da força ancestral indígena. Ainda não a perdemos, mas que ela anda ameaçada, isso anda.

Aliás não é só o segredo da batida. É todo o legítimo espírito do Bumbá que impregnava todos e mais íntimos detalhes da preparação da festa, da qual participar era expressão de amor e afirmação de cultura popular, que começa a esvanecer-se, a perder substância e dar lugar a improvisações de circunstância e a incorporações de valores coreográficos, decorativos e rítmicos que nada têm a ver com a sua autenticidade original. Sem falar na utilização do Bumbá para fins políticos, eleitorais. Dá vontade de cantar de novo a lição do vaqueiro-chefe Claudionor do Mina de Ouro:

“Senhor diretor dos índios / aprenda a flechar, / só pegue na flecha / quando eu lhe mandar.”

Muito recentemente, este livro já sendo trabalhado, o Aníbal Beça nos insistiu a ver um ensaio de uma escola de samba de Manaus, não importa o nome dela. Lá fomos com ele, o Bacelar, o Alexandre Oto, a Roberta e o Cesar Oiticica. Era ali no Aleixo. Saímos de lá para outra escola, ali na praça da Silva Ramos, chegamos na hora do desfile das candidatas a rainha, tudo igualzinho à televisão, o microfone anunciando a presença das pessoas notáveis no lugar. Ao fundo, o desengonçado ritmo da bateria, de vez em quando salvo pelo tamborim perfeito de um crioulo carioca que tentava a sorte pela Zona Franca. É isso aí, concluímos poderosos de humildade: batida de amazonense é a batida do boi, o resto é contrafação. A batida do boi com tambor e matracas. Não deixem que ela se acabe.


(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)

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