Por Thiago de Mello
C
dos cinemas daqueles anos,
que, obviamente muito mais que
hoje, na cidade pobre de divertimentos populares, constituíam a grande atração.
De segunda a sábado, eram duas as sessões: a da tarde, chamada de matinée, que
começava às quatro horas, e a noturna, que o ranço da influência francesa
forcejava por chamar de soirée, que tinha início às sete horas. O filme da
tarde era um, o da noite era outro. Aos domingos havia a matinal, com acesso
livre à meninada, geralmente com filmes de Carlitos e de O Gordo e o Magro.
Os filmes eram anunciados em
grandes cartazes coloridos, espalhados em pontos estratégicos da cidade. Alguns
desses cartazes eram feitos a capricho, com letras bem desenhadas e diagramação
de bom gosto. Filmes de grande sucesso ganhavam reprise, e os “seriados”, como
O Guarda Vingador e O Aranha Negra eram repetidos duas, três semanas seguidas.
Os cinemas mais antigos eram o
Politheama e o Guarany. Contemporâneo deles, o poeira Popular, no comecinho do
Bulevar. Depois surgiu o Cinema Avenida, no segundo quarteirão da Eduardo
Ribeiro, entre a Henrique Martins e a Saldanha Marinho. Já no final da década
dos 40, apareceu o Eden, na Jonatas Pedrosa, antecipando a inauguração do novo
Odeon.
“Furar” o cinema era proeza na
qual os estudantes se aperfeiçoavam a cada dia. Mas a vigilância era severa.
Uma façanha do Lealzinho, o hoje almirante Carvalho Leal, ficou nos anais da
alegria ginasiana. Éramos muitos, o dinheirinho pouco. Reunidos os tostões, que
garantiam o valor de um ingresso, o Lealzinho entrou com a incumbência de,
assim que as luzes do Politheama se apagassem para dar início à projeção,
levantar os pesados ferrolhos que trancavam a larga porta lateral do cinema,
que dava para a Sete de Setembro: a turma de fora se encarregaria do resto.
Missão cumprida, objetivo alcançado, ninguém foi surpreendido pela vigilância
do proprietário. O filme era uma chanchada da Atlântida: o Grande Otelo, ainda
um rapazote, já nos fascinava.
Ainda bem que, para delícia da
rapaziada pobre, havia a bondade do Vasco, o Vasco do Guarany, do qual era dono
ou gerente, e cujo coração de menino quero louvar, com a transcrição de um
soneto que lhe dedicou o meu irmão poeta Farias de Carvalho:
Seu Vasco, eu tenho só
quinhentos réis,
deixa eu entrar? Eu vou pra
Galeria...
Ele encuiava as mãos, caíam os
níqueis,
e a meninada aos empurrões
subia;
quanto garoto lhe ficou
devendo
o sabor – deliciosas emoções
dos primeiros encontros com os
cowboys
tiroteando em cavalos e
vagões!
– A vida, Vasco, é como teu
cinema:
uns têm bilhete inteiro,
outros têm meio,
a maior parte fora, sem
bilhete;
e o mais duro (o mais triste!)
é que entre os donos
das plateias imensas deste
mundo
existem poucos, muito poucos
Vascos!
F
do futebol
que se praticava em Manaus
naquele tempo em que chutar de bico era virtude e que chutar para a frente, na
direção que fosse, desde que se aliviasse a defesa, causava sensação entre os
torcedores assíduos aos campos de futebol da época, o principal o Parque
Amazonense, depois que, convenientemente adaptado, deixou de ser o Hipódromo de
Manaus, com suas pistas bem cuidadas, de gramas e de terra, onde se disputavam
corridas dominicais, com a participação, não de pangarés esfolados, como um
leitor incrédulo poderia supor, mas com os ingleses mandavam buscar ou eram
criados aqui mesmo, como, entre outros, pelos donos da Casa Canavarro, até aí
por volta de 1925.
Deixemos os cavalinhos
correndo, e nós, cavalões, comendo, seguindo o ensinamento que nos deixou
Manuel Bandeira, e vamos ao futebol, que, já naquele tempo, era o esporte
preferindo pelo povo da nossa cidade, como continua a ser. Antes do mais, faço
questão de repetir, resumidamente, o que tive ocasião de escrever em prefácio
para um admirável texto sobre Futebol, particularmente sobre o talento de
Nilson Santos, de autoria de um mestre na matéria, o notável escritor, o meu
amigo Armando Nogueira, que considera o futebol uma das mais altas e puras
manifestações da cultura popular em nosso país.
Posso não estar de acordo com
os rumos alarmantes que a utilização comercial do esporte e as somas
astronômicas cada vez maiores que são manipuladas nas compras de passe de jogadores,
no Brasil como em outros países, podem porventura levar de repente a um impasse
a própria organização, a nível nacional e internacional, dos campeonatos entre
clubes e países. Mas isso é outro assunto, que não cabe no corpo deste livro.
Aqui só pretendo deixar alguma
notícia, alguns nomes, sobre esse esporte apaixonante, ao qual o antigo goleiro
Albert Camus, escritor francês que mereceu o Prêmio Nobel de Literatura,
confessou certa vez, em epígrafe de livro, que devia o melhor que aprendera
sobre a moral e a obrigação dos homens.
Já disse que o nosso campo
principal era o do Parque Amazonense, com arquibancada coberta (e bancos de
madeira nos quais os espectadores ficavam de pé) só numa das laterais do campo.
A outra lateral e as duas linhas de fundo eram apenas cercadas, facilitando o
ingresso dos “furões”, embora muitos preferissem ver o jogo instalados à
vontade em galhos de árvores que circundavam o campo.
Outro campo onde se disputou
muita partida de bom gabarito era o do General Osório, nome do estádio
construído em frente ao antigo quartel do 27 BC, com reduzida arquibancada
lateral, de cimento a céu aberto.
Os outros campos, se não caio
em injustiça, eram utilizados somente para treinos das equipes, como o do
Nacional, ali no começo da Vila Municipal, onde hoje mantém sede social com
piscina e outras atrações. Não cheguei a assistir nenhum jogo no antigo campo
do Luso, apesar das suas dimensões adequadas e do trato que se tentou, sem
resultado, para gramar o campo.
Fora desses, os demais eram todos
campinhos de pelada, distintos em dimensão e horizontalidade, alguns com linha
lateral em beirada de rio, outros que só funcionavam quando o rio secava e unia
as duas praias do igarapé, e até conheci um campinho, numa esquina da Japurá,
reduto de craques que morreram sem oportunidade, que tinha ao lado esquerdo da
pequena área uma palmeira que ora jogava na defesa, de lateral direito, ora de
atacante que deslocava, traiçoeiro, o chute do adversário.
Minha sensibilidade se abriu
para o universo mágico do futebol no tempo do Ginásio. Antes desse tempo, eu
batia a minha bola, como todo menino; embora eu já preferisse, na armação dos
times, jogar lá atrás no gol. De qualquer sorte, brincadeira de criança rueira.
Não fui às pesquisas, ausentes
do plano de meu livro, ao futebol anterior aos anos trinta. Sabe-se, porém, que
são daquele tempo jogadores que deixaram nome, Orlando Medeiros do Nacional foi
um deles, atuando nos times do Fast, do Rio Negro, do Luso, de outros clubes
menores.
O Futebol que sei é o do tempo
em que o Ginásio conseguiu formar o melhor time da cidade, cujos integrantes
foram imediatamente cobiçados pelos clubes tradicionais, mais que todos pelo
Olympico, que vinha de surgir e afinal foi quem acabou contando com a maior
parte dos jogadores ginasianos.
Tínhamos dois goleiros
sensacionais: o Viriato e o Manuel Alexandre. Sem contar com o Ney Rayol, de
irresistível vocação para o arco, mas cuja falsa de preparo físico lhe diminuía
os reflexos e a confiança dos zagueiros. Como gozava das prerrogativas de
professor, era escalado em amistosos sem maiores riscos. O Viriato era o
audacioso, tinha grude nas mãos. Já o Manuel Alexandre tinha o dom mágico da
colocação e um reflexo rapidíssimo. O Manuel Braga e o Oyama de Macedo faziam a
nossa linha de zagueiros. Agobar, Jerônimo e Tarzan, eram os “halfes”. O ataque
era uma máquina: Manuel Piaba, Bezerra, Gorayeb, Manoelito e Trigueiro. O
Arrudão também era beque, sempre jogava.
Campeonato entre colégios e
Faculdades, a taça era sempre do time do Castelo. Recordo uma partida difícil
com o time da Faculdade de Direito, onde brilhavam o Paulo Jobim e o Roosevelt
Mello. Foi um domingo de manhã no Parque Amazonense. Ganhamos com um gol do
Agobar, do qual até hoje ele se lembra orgulhoso. Gol de bicanca, quase do meio
de campo, o Arrudão delirou.
Quando Agobar me contou o
lance do seu gol de bico, me lembrei de uma frase do meu bom amigo Didi, um dos
mais extraordinários jogadores de todos os tempos, a um rapaz jovem que foi
treinar no Botafogo do seu tempo e que só gostava de chutar de bico. Didi, já o
inventor da folha-seca, do tiro de curva com o peito do pé, aproximou-se do
companheiro e lhe falou: – Vem cá, rapaz, trata bem da menina. Chuta a bola com
carinho, que mal é que ela te fez?
O Olympico, nascido do
Albatroz, que teve a um gol do Manoelito Garcia a sua classificação num
campeonato anual, contava com outros excelentes jogadores. Os do Ginásio
formavam o quadro da segunda divisão, embora alguns logo ascendessem à
primeira. Recordo goleiros como o Russinho, o Osmar Bentes, o Atlas e o melhor
de todos, o Goty, um verdadeiro gato. O Candu e o Gesta eram de linha média, ao
lado do Aderson Dutra, o ponta direita era o Waldir Garcia, na esquerda atuava
o Clovis Lemos, cuja mania era dar bicicletas que nunca acertava. Um mulato bom
demais, empregado do J.G., jogava no centro do ataque: Amadeu Silva.
O primeiro time fazia um
futebol com as deficiências e a pobreza técnica naturais da época. Mas em
compensação, contava com jogadores que eram verdadeiros príncipes, virtuosos no
trato da bola, donos de visão do campo, que jogavam olhando para a frente e
para os outros e já capazes de jogar sem a bola, isto é, abrindo espaços para
os outros companheiros. O melhor deles foi, a meu gosto, o Adair Marques, que
tinha um drible desconcertantes, só dele, que aplicava no adversário sem sair
do lugar, só com o jogo de cintura. Os seus passes em profundidade saíam na
medida, nem sempre compreendidos pelo Salvio Miranda Correia, outro que só
chutava de bico.
Depois do Adair, outro jogador
de grandes recursos era o Osak, grande driblador e preparador de lances no meio
do campo, e que brigava nas duas áreas. O Almir, irmão do Adair, era mais um
defensor que um armador. Pegava a bola e logo procurava o irmão, em cujo
talento ele confiava. A zaga do Olympico era a melhor que vi jogar na cidade: o
Tuta e o Manuel Braga. Embora não tivessem a fama do negro Amancio, zagueiro do
Rio Negro, grande limpador de área. O Rio Negro deu grandes goleiros ao nosso
futebol, como o Almada, o Teo e principalmente o Guttemberg, um craque
autêntico, que chegou a goal-keeper (era assim que o povo dizia, e depois
simplesmente “quiser”) da seleção amazonense que jogou contra a do Pará em
1940, ou 41, levando uma sova danada.
Integravam a seleção a também
famosa ala esquerda do Rio Negro, Benjamim e Lé, o centroavante Claudio, e os
principais jogadores do Olympico. Não me lembro se foi alguém do Nacional, onde
brilhavam dois irmãos de primeira água: o Pedro e o Zeca Sena. O segundo tinha
a característica de se fingir de cansado para atrair e logo dominar na carreira
o adversário. De todas, a figura mais popular do Nacional era um atacante
ligeiro e baixinho, de apelido Barrote, titular vários anos do time principal.
Do Fast, o jogador de mais evidência era o centroavante Zitão, sobretudo pelas
ameaças que fazia pela imprensa antes dos jogos. Mas contava também com o Paulo
Onetti, o Periquito, o Piola.
O Atlético Rio Negro Clube foi
campeão invicto da temporada de 1943, com a seguinte equipe: Luizinho, Waldemir
e Darcy; Omar, Zenith e Dog; Oliveira, França, Claudio Coelho, Silvio e Lé. O
técnico era Jayme Guimarães.
Em 1942, o campeão foi o
Nacional, sob o comando de João Liberal, várias vezes técnico da seleção
amazonense. O time: Alfredo Pires, Periquito e Luiz Onety; Lupercio, Pedro Sena
e Esmeraldo; Caiado, Emanuel, Paulo Onety, Benjamim Onety e Raspada.
Um zagueiro, perdão, um beque
que ninguém esquece: Antonio da Finada, do Fast.
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