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quarta-feira, junho 19, 2019

ABCedário íntimo para uso público (12)



Por Thiago de Mello
L das livrarias da cidade,
livrarias com os seus livreiros de verdade, nem todos empenhados na ganância do lucro. O mais relembrado, até por sua figura muito digna, com sua barba toda branca, era o velho Ascense, da Livraria Manaus Musical, ali na Sete de Setembro. Lia todos os livros que recebia e opinava a respeito, recomendava-os ao freguês, principalmente aos jovens, a quem permitia leitura demorada de páginas, ali mesmo ao pé da prateleira ou no balcão.
A Livraria Colegial, do Gavinho, era especializada em livros didáticos, mas também trazia obras literárias, entre as quais algumas edições da casa Garnier. Ficava, ainda fica, na Henrique Martins, mas já o seu forte é a venda de brinquedos. Do outro lado da rua ficava a Acadêmica, de característica e destino similares ao da Colegial.
Havia também as Agências, a principal delas a Freitas, uma espécie de sebo, que vendia livros a preços acessíveis, inclusive os de certas bibliotecas, adquiridas inteiras, cujos volumes em poucos dias eram consumidos. Samuel Benchimol me relembrou os dias de arrependimento e tristeza vividos pelo Mario Ypiranga que se seguiram à venda de sua biblioteca para o Freitas, ao tempo, 41 ou 42, em que hoje o consagrado historiador era funcionário da Imprensa Pública. Ainda bem que o Mario foi capaz de refazer a sua nova biblioteca, que hoje reúne um acervo invejável. A Agência Freitas ficava na Joaquim Sarmento e se gabava, nos anúncios que fazia aparecer em revistas da época, de possuir “o maior empório das melhores novidades literárias”
Revista, jornais, figurinos de moda feminina e livros de literatura eram as atrações da Agência Anita, de Leão Almeida, também na Henrique Martins.
M dos médicos de Manaus,
num tempo em que o exercício da medicina não dispunha dos recursos tecnológicos e dos extraordinários avanços científicos atuais, mas era caracterizado por um relacionamento, entre médico e cliente, marcado por, digamos, um interesse, um calor humano, de qualidade diferente. (Basta este detalhe: só em 1934 é que foi inaugurado o primeiro aparelho de Raios-X na Beneficência Portuguesa, cujos serviços eram dirigidos pelo Dr. Sabbas Telles, que contou sempre com a ajuda da Irmã Rinalda). 
Era um tempo em que a maioria dos médicos tinha consultório ao lado ou nos altos da farmácia. Farmácia e consultório eram coisas imbricadas. Explica-se: os remédios quase todos eram manipulados. Os médicos receitavam as fórmulas, que eram preparadas pelos farmacêuticos. Os sais, as tinturas, as cápsulas, os xaropes. Poucos eram os medicamentos já prontos. A maioria era feita ali na hora, em cima do balcão de mármore.
Este fragmento da memória da cidade não pode, infelizmente, ir além da simples menção dos nomes, com uma ou outra referência de passagem, aos médicos que tantos bons serviços prestaram (e vários deles continuam a prestar) à vida e à saúde da cidade.
Araujo Lima, Adriano Jorge, Xavier de Albuquerque, Alfredo da Matta estão entre os mais recordados. Adriano Jorge e Araujo Lima foram também de letras; Alfredo Augusto da Matta, no entanto, foi quem mais longe chegou em atividades que desenvolveu, como humanista e antropólogo, ao lado de sua carreira de médico leprólogo, publicando obras de alta importância, destacando-se as que resultaram de seu paciente e competente estudo do vocabulário amazonense. 
O consultório de Adriano Jorge ficava ao lado da Farmácia Barreiros, na Eduardo Ribeiro, logo depois da Henrique Martins, que ostentava em seu belo balcão duas altas ânforas de cristal com líquidos coloridos, âmbar e azul. Araujo Lima tinha consultório na Farmácia Normal, na Sete de Setembro, em frente à calçada em rampa da Matriz. Ele e o João de Paula Gonçalves, cuja vaga cedeu ao Stanislaw Afonso, ocupada depois pelo dr. Moura Tapajós, até que este montou o seu consultório (mas onde deu suas primeiras consultas foi nos altos da Farmácia Pasteur) na Lobo D’Almada onde até hoje atende da manhã à noite. 
Stanislaw e Moura chegaram formados do Recife nos começos de 40, juntos com outros colegas como Waldir Medeiros, Rayol dos Santos (que foi diretor do Hospício de Alienados), Ramayana de Chevalier, que muito pouco exerceu a medicina para dedicar-se às letras; José Franco de Sá, Garcia Gomes, Kronge Perdigão, que ocupou a direção da Secretária de Saúde.
Na Farmácia Lopes, na Henrique Martins, clinicavam o Agenor Magalhães, o Linhares e o Gama e Silva, um dos tantos médicos da geração de 40 que se deixaram seduzir pelos sucessos fáceis da carreira pública. O cirurgião João Veiga foi outro. Outro, o Deoclides Carvalho Leal, que clinicava na Farmácia Pontes. Na Farmácia Nunes, do Altair Severiano Nunes, farmacêutico e grande tipo humano, tinham consultório os clínicos Hosanam da Silva e o Correia Lima. A propósito, quero relembrar aqui a figura daquele rapaz alto, magro, joelhudo e caladão que manipulava cápsulas e preparava poções na Farmácia Nunes e que anos depois fui reencontrá-lo, já famoso como chargista nas páginas de O Cruzeiro e notável desenhista de temas amazônicos: Amilde Pedrosa, o Appe.
O farmacêutico Studart deu o nome à farmácia famosa, que ficava na esquina da Sete de Setembro com a Avenida, fronteira ao Bar Americano, onde clinicava o médico Adolfo Roessing. O velho Studart foi o inventor do Leite de Colônia, até hoje muito consumido em todo o país, cuja fórmula é herança da família.
Na Farmácia do Povo, cujo proprietário era o dr. Canuto Palhano, clinicou durante muitos anos o dr. Xavier de Albuquerque, a quem com ternura e respeito já me referi, e onde até hoje atende o dr. Comte Telles, me garantem que cobrando apenas 50 cruzeiros por consulta. Pertinho dela, na rua dos Barés, nas vizinhanças do Mercado, estava a Farmácia Lemos, cujo proprietário, o farmacêutico José Miguel de Lemos foi o inventor do infalível vermífugo Tiro Mortal. Ali tinha consultório o dr. Almir Pedreira, dono de grande clientela.
Tantos outros médicos estão na memória daquela Manaus. Flavio de Castro, que além da medicina exercia intensa atividade social, como presidente do clube Rio Negro; Olavo das Neves, médico competente, de temperamento duro e mordaz, chegou a desempenhar importante papel na administração da cidade; Almir Pedreira, Menandro Tapajós, o legista Angelo D’Urso, o dr. Fulgencio Vidal, analista (a cujo laboratório eu acompanhava meu avô cego que semanalmente ia medir o açúcar na urina); Romualdo Seixas; e os Vieiralves, o Waldir e o Gilson, de quem fui contemporâneo na Praia Vermelha; o Pitágoras Miranda.
Concluo com o nome do meu querido Djalma Baptista, que fundou e dirigiu o melhor laboratório de análises clínicas da cidade (até hoje em funcionamento ao melhor nível) e que tanto se distinguiu no trabalho a que se lançou, de mãos dadas a Moura Tapajós, a favor dos tuberculosos, em campanha que resultou na criação do Dispensário Cardoso Fontes. Obra a que se dedicou com o mesmo empenho e saber com que dirigiu, durante dez anos, o nosso Inpa, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em cuja obra, eu diria em cuja alma, o nome de Djalma está gravado com letras que o tempo não vai apagar.
M de Messody Henrique,
figura que marcou uma época na vida da cidade. Filha de dona Idalina e do velho José Henriques, homem de boa leitura, de origem cearense, que veio comércio em Manaus, estabelecendo-se com a Casa Castelhana, que em 1910 não escapou da falência. Depois de tentar a polícia em Parintins durante alguns anos, onde nasceu a maioria dos filhos, a família regressou a Manaus.
Dos 11 filhos do casal (Gabriela, Débora, Letícia, Messody, Delorme, Megara, Cirineu, Caruso, Delane, Sebastião, filho de criação, excepcional e Nobili), Messody se fez a mais famosa e figura de prestígio na sociedade local. Primeiro como fundadora da primeira escola de fabricação de flores de papel, artesanato desenvolvido com tanta perícia e gosto que anualmente a obra das alunas era exibida, em concorridíssima exposição pública, nos salões do Rio Negro ou do Nacional. 
A escola funcionava num galpão dos fundos da casinha acanhada da Dr. Almino, em cuja sala de visitas Messody, com a ajuda das irmãs, deu começo à outra atividade que lhe garantiu êxito e prosperidade: corte, penteado e pintura de cabelos e limpeza e pintura de unhas. Enfim, o embrião do primeiro Instituto de Beleza da cidade, inaugurado com pompa, na década de 40 em plena avenida Eduardo Ribeiro, montado com o que de mais moderno havia na época pela Casa Miasi, de São Paulo. O Instituto de Beleza, da Messody Henrique, era um dos orgulhos da cidade provinciana, frequentado (sempre estava cheio) pela fina flor feminina da sociedade local, da qual o Instituto, sem embargo, não era um privilégio.
Foi a própria Messody quem me contou, agora esquecida e envelhecida, mas cheia de sabedoria (ela que naqueles anos tinha sua presença reclamada nos melhores salões da gente “alta”, não só pela envolvência de sua simpatia pessoal, mas porque era também uma lançadora de moda, inventando modelos originais de vestidos), que as mulheres da chamada Zona também tiveram, por decisão dela própria, após consulta de uma dona-de-pensão, o direito de frequentar e valer-se dos recursos de “embelezamento” do Instituto. 
É verdade que essa espécie de “democratização” do luxuoso Instituto causou problemas a Messody Henriques, que começou a receber, pessoalmente e por telefone, protestos indignados das senhoras da “nata”. “Não é possível que as mulheres da Zona façam as unhas e os cabelos no mesmo lugar que nós”, reclamavam as madames. 
Messody, que dava valor à sua origem humilde, que só aprendeu a escrever o nome quando já beirava os quinze anos e que até hoje se orgulha de poder, com o seu trabalho, haver educado todos os seus irmãos, respondia muito serenamente e muito meiga: “Minha filha, o teu dinheiro é igualzinho ao delas, isso em primeiro lugar. Se tu queres o Instituto só para vocês paguem então um preço de exclusividade. O trabalho que dá para pentear, cortar, tingir o cabelo de vocês é o mesmo que o cabelo delas dá, e por sinal que cabelos bonitos elas têm. E mais outra coisa: que comportamento exemplar elas assumem aqui, quando chegam ao salão e ficam esperando a vez. De exemplar dignidade. Nenhuma delas nunca me pediu o telefone para ficar de namoro ou de marcar encontros escondidos com amantes. Ficam esperando, silenciosas, lendo as revistas, e como saem felizes depois de se verem tão bonitas com o tratamento carinhoso que lhes damos.”
A crônica da cidade registra bem esse período do Instituto de Beleza da Messody. O que quase ninguém sabe, e que só agora fiquei sabendo, é que tudo começou de uma noite, na casinha da Dr. Almino, em que Messody recebeu a visita de uma figura de luz, a “aparição” de uma mulher chamada, se não erro, Mary Queen, cujo espírito lhe falou e indicou o caminho que ela deveria seguir. “Primeiro me disse que deveria fazer flores de papel e, numa única, me ensinou todas as técnicas, me deu o nome de todos os materiais. Poucos anos depois ela tornou a me aparecer e me disse: “Agora você vai trabalhar para fazer as pessoas ficarem mais bonitas, vai começar cortando cabelos”. E lhe deu os ensinamentos que ela transmitiu às irmãs e irmãos. “Depois que eu deixei o salão, por motivos que não gosto de lembrar, nunca mais esse espírito me apareceu”.
Por motivos que são meus, e não dela, não quero terminar este verbete com as amarguras pelas quais passou a Messody nos anos finais do Instituto: os seus olhos transparentes entregam a serenidade de uma alma sem ressentimentos. Aprendi muito no diálogo que mantivemos na casa onde a famosa Messody Henriques daquela antiga Manaus, ajuda hoje, com toda a força dos seus setenta anos, a levar o Salão pequenino mas de muito bom gosto, mantido pela Sandra, sua filha de criação.
M da Maria Madeira,
cujo nome o Machadinho me pede não ser esquecido entre o das mulheres mais bonitas da Manaus daquele tempo, ainda que, para nós, ginasianos, ela fosse, “para mirar, no más”, como dizem os chilenos. E aproveito o verbete para revelar a grande pena que teve o nosso querido colega por não poder participar do nosso baile de formatura, celebrada com orquestra e ceia, no Olympico Clube. Não porque estivesse internado num hospital, abatido por um tifo; senão porque o internamento não lhe permitiu bailar com a Izete Souza Lima, aluna da Auxiliadora, com quem sonhava em seu leito de hospital.

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