Por Thiago de Mello
L
das livrarias da cidade,
livrarias com os seus livreiros
de verdade, nem todos empenhados na ganância do lucro. O mais relembrado, até
por sua figura muito digna, com sua barba toda branca, era o velho Ascense, da
Livraria Manaus Musical, ali na Sete de Setembro. Lia todos os livros que
recebia e opinava a respeito, recomendava-os ao freguês, principalmente aos
jovens, a quem permitia leitura demorada de páginas, ali mesmo ao pé da
prateleira ou no balcão.
A Livraria Colegial, do
Gavinho, era especializada em livros didáticos, mas também trazia obras literárias,
entre as quais algumas edições da casa Garnier. Ficava, ainda fica, na Henrique
Martins, mas já o seu forte é a venda de brinquedos. Do outro lado da rua
ficava a Acadêmica, de característica e destino similares ao da Colegial.
Havia também as Agências, a
principal delas a Freitas, uma espécie de sebo, que vendia livros a preços
acessíveis, inclusive os de certas bibliotecas, adquiridas inteiras, cujos
volumes em poucos dias eram consumidos. Samuel Benchimol me relembrou os dias
de arrependimento e tristeza vividos pelo Mario Ypiranga que se seguiram à
venda de sua biblioteca para o Freitas, ao tempo, 41 ou 42, em que hoje o
consagrado historiador era funcionário da Imprensa Pública. Ainda bem que o
Mario foi capaz de refazer a sua nova biblioteca, que hoje reúne um acervo
invejável. A Agência Freitas ficava na Joaquim Sarmento e se gabava, nos
anúncios que fazia aparecer em revistas da época, de possuir “o maior empório
das melhores novidades literárias”
Revista, jornais, figurinos de
moda feminina e livros de literatura eram as atrações da Agência Anita, de Leão
Almeida, também na Henrique Martins.
M dos médicos de Manaus,
num tempo em que o exercício
da medicina não dispunha dos recursos tecnológicos e dos extraordinários
avanços científicos atuais, mas era caracterizado por um relacionamento, entre
médico e cliente, marcado por, digamos, um interesse, um calor humano, de
qualidade diferente. (Basta este detalhe: só em 1934 é que foi inaugurado o
primeiro aparelho de Raios-X na Beneficência Portuguesa, cujos serviços eram
dirigidos pelo Dr. Sabbas Telles, que contou sempre com a ajuda da Irmã
Rinalda).
Era um tempo em que a maioria
dos médicos tinha consultório ao lado ou nos altos da farmácia. Farmácia e
consultório eram coisas imbricadas. Explica-se: os remédios quase todos eram
manipulados. Os médicos receitavam as fórmulas, que eram preparadas pelos
farmacêuticos. Os sais, as tinturas, as cápsulas, os xaropes. Poucos eram os
medicamentos já prontos. A maioria era feita ali na hora, em cima do balcão de
mármore.
Este fragmento da memória da
cidade não pode, infelizmente, ir além da simples menção dos nomes, com uma ou
outra referência de passagem, aos médicos que tantos bons serviços prestaram (e
vários deles continuam a prestar) à vida e à saúde da cidade.
Araujo Lima, Adriano Jorge,
Xavier de Albuquerque, Alfredo da Matta estão entre os mais recordados. Adriano
Jorge e Araujo Lima foram também de letras; Alfredo Augusto da Matta, no
entanto, foi quem mais longe chegou em atividades que desenvolveu, como
humanista e antropólogo, ao lado de sua carreira de médico leprólogo,
publicando obras de alta importância, destacando-se as que resultaram de seu
paciente e competente estudo do vocabulário amazonense.
O consultório de Adriano Jorge
ficava ao lado da Farmácia Barreiros, na Eduardo Ribeiro, logo depois da
Henrique Martins, que ostentava em seu belo balcão duas altas ânforas de
cristal com líquidos coloridos, âmbar e azul. Araujo Lima tinha consultório na
Farmácia Normal, na Sete de Setembro, em frente à calçada em rampa da Matriz.
Ele e o João de Paula Gonçalves, cuja vaga cedeu ao Stanislaw Afonso, ocupada
depois pelo dr. Moura Tapajós, até que este montou o seu consultório (mas onde
deu suas primeiras consultas foi nos altos da Farmácia Pasteur) na Lobo
D’Almada onde até hoje atende da manhã à noite.
Stanislaw e Moura chegaram
formados do Recife nos começos de 40, juntos com outros colegas como Waldir
Medeiros, Rayol dos Santos (que foi diretor do Hospício de Alienados), Ramayana
de Chevalier, que muito pouco exerceu a medicina para dedicar-se às letras;
José Franco de Sá, Garcia Gomes, Kronge Perdigão, que ocupou a direção da
Secretária de Saúde.
Na Farmácia Lopes, na Henrique
Martins, clinicavam o Agenor Magalhães, o Linhares e o Gama e Silva, um dos
tantos médicos da geração de 40 que se deixaram seduzir pelos sucessos fáceis
da carreira pública. O cirurgião João Veiga foi outro. Outro, o Deoclides
Carvalho Leal, que clinicava na Farmácia Pontes. Na Farmácia Nunes, do Altair
Severiano Nunes, farmacêutico e grande tipo humano, tinham consultório os
clínicos Hosanam da Silva e o Correia Lima. A propósito, quero relembrar aqui a
figura daquele rapaz alto, magro, joelhudo e caladão que manipulava cápsulas e
preparava poções na Farmácia Nunes e que anos depois fui reencontrá-lo, já
famoso como chargista nas páginas de O Cruzeiro e notável desenhista de temas
amazônicos: Amilde Pedrosa, o Appe.
O farmacêutico Studart deu o
nome à farmácia famosa, que ficava na esquina da Sete de Setembro com a
Avenida, fronteira ao Bar Americano, onde clinicava o médico Adolfo Roessing. O
velho Studart foi o inventor do Leite de Colônia, até hoje muito consumido em
todo o país, cuja fórmula é herança da família.
Na Farmácia do Povo, cujo
proprietário era o dr. Canuto Palhano, clinicou durante muitos anos o dr.
Xavier de Albuquerque, a quem com ternura e respeito já me referi, e onde até
hoje atende o dr. Comte Telles, me garantem que cobrando apenas 50 cruzeiros
por consulta. Pertinho dela, na rua dos Barés, nas vizinhanças do Mercado,
estava a Farmácia Lemos, cujo proprietário, o farmacêutico José Miguel de Lemos
foi o inventor do infalível vermífugo Tiro Mortal. Ali tinha consultório o dr.
Almir Pedreira, dono de grande clientela.
Tantos outros médicos estão na
memória daquela Manaus. Flavio de Castro, que além da medicina exercia intensa
atividade social, como presidente do clube Rio Negro; Olavo das Neves, médico
competente, de temperamento duro e mordaz, chegou a desempenhar importante
papel na administração da cidade; Almir Pedreira, Menandro Tapajós, o legista
Angelo D’Urso, o dr. Fulgencio Vidal, analista (a cujo laboratório eu
acompanhava meu avô cego que semanalmente ia medir o açúcar na urina); Romualdo
Seixas; e os Vieiralves, o Waldir e o Gilson, de quem fui contemporâneo na
Praia Vermelha; o Pitágoras Miranda.
Concluo com o nome do meu
querido Djalma Baptista, que fundou e dirigiu o melhor laboratório de análises
clínicas da cidade (até hoje em funcionamento ao melhor nível) e que tanto se
distinguiu no trabalho a que se lançou, de mãos dadas a Moura Tapajós, a favor
dos tuberculosos, em campanha que resultou na criação do Dispensário Cardoso
Fontes. Obra a que se dedicou com o mesmo empenho e saber com que dirigiu,
durante dez anos, o nosso Inpa, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia,
em cuja obra, eu diria em cuja alma, o nome de Djalma está gravado com letras
que o tempo não vai apagar.
M
de Messody Henrique,
figura que marcou uma época na
vida da cidade. Filha de dona Idalina e do velho José Henriques, homem de boa
leitura, de origem cearense, que veio comércio em Manaus, estabelecendo-se com
a Casa Castelhana, que em 1910 não escapou da falência. Depois de tentar a
polícia em Parintins durante alguns anos, onde nasceu a maioria dos filhos, a
família regressou a Manaus.
Dos 11 filhos do casal
(Gabriela, Débora, Letícia, Messody, Delorme, Megara, Cirineu, Caruso, Delane,
Sebastião, filho de criação, excepcional e Nobili), Messody se fez a mais
famosa e figura de prestígio na sociedade local. Primeiro como fundadora da
primeira escola de fabricação de flores de papel, artesanato desenvolvido com
tanta perícia e gosto que anualmente a obra das alunas era exibida, em
concorridíssima exposição pública, nos salões do Rio Negro ou do Nacional.
A escola funcionava num galpão
dos fundos da casinha acanhada da Dr. Almino, em cuja sala de visitas Messody,
com a ajuda das irmãs, deu começo à outra atividade que lhe garantiu êxito e
prosperidade: corte, penteado e pintura de cabelos e limpeza e pintura de
unhas. Enfim, o embrião do primeiro Instituto de Beleza da cidade, inaugurado
com pompa, na década de 40 em plena avenida Eduardo Ribeiro, montado com o que
de mais moderno havia na época pela Casa Miasi, de São Paulo. O Instituto de
Beleza, da Messody Henrique, era um dos orgulhos da cidade provinciana,
frequentado (sempre estava cheio) pela fina flor feminina da sociedade local,
da qual o Instituto, sem embargo, não era um privilégio.
Foi a própria Messody quem me
contou, agora esquecida e envelhecida, mas cheia de sabedoria (ela que naqueles
anos tinha sua presença reclamada nos melhores salões da gente “alta”, não só
pela envolvência de sua simpatia pessoal, mas porque era também uma lançadora
de moda, inventando modelos originais de vestidos), que as mulheres da chamada
Zona também tiveram, por decisão dela própria, após consulta de uma
dona-de-pensão, o direito de frequentar e valer-se dos recursos de
“embelezamento” do Instituto.
É verdade que essa espécie de
“democratização” do luxuoso Instituto causou problemas a Messody Henriques, que
começou a receber, pessoalmente e por telefone, protestos indignados das
senhoras da “nata”. “Não é possível que as mulheres da Zona façam as unhas e os
cabelos no mesmo lugar que nós”, reclamavam as madames.
Messody, que dava valor à sua
origem humilde, que só aprendeu a escrever o nome quando já beirava os quinze
anos e que até hoje se orgulha de poder, com o seu trabalho, haver educado
todos os seus irmãos, respondia muito serenamente e muito meiga: “Minha filha,
o teu dinheiro é igualzinho ao delas, isso em primeiro lugar. Se tu queres o
Instituto só para vocês paguem então um preço de exclusividade. O trabalho que
dá para pentear, cortar, tingir o cabelo de vocês é o mesmo que o cabelo delas
dá, e por sinal que cabelos bonitos elas têm. E mais outra coisa: que
comportamento exemplar elas assumem aqui, quando chegam ao salão e ficam
esperando a vez. De exemplar dignidade. Nenhuma delas nunca me pediu o telefone
para ficar de namoro ou de marcar encontros escondidos com amantes. Ficam
esperando, silenciosas, lendo as revistas, e como saem felizes depois de se
verem tão bonitas com o tratamento carinhoso que lhes damos.”
A crônica da cidade registra
bem esse período do Instituto de Beleza da Messody. O que quase ninguém sabe, e
que só agora fiquei sabendo, é que tudo começou de uma noite, na casinha da Dr.
Almino, em que Messody recebeu a visita de uma figura de luz, a “aparição” de
uma mulher chamada, se não erro, Mary Queen, cujo espírito lhe falou e indicou
o caminho que ela deveria seguir. “Primeiro me disse que deveria fazer flores
de papel e, numa única, me ensinou todas as técnicas, me deu o nome de todos os
materiais. Poucos anos depois ela tornou a me aparecer e me disse: “Agora você
vai trabalhar para fazer as pessoas ficarem mais bonitas, vai começar cortando
cabelos”. E lhe deu os ensinamentos que ela transmitiu às irmãs e irmãos.
“Depois que eu deixei o salão, por motivos que não gosto de lembrar, nunca mais
esse espírito me apareceu”.
Por motivos que são meus, e
não dela, não quero terminar este verbete com as amarguras pelas quais passou a
Messody nos anos finais do Instituto: os seus olhos transparentes entregam a
serenidade de uma alma sem ressentimentos. Aprendi muito no diálogo que
mantivemos na casa onde a famosa Messody Henriques daquela antiga Manaus, ajuda
hoje, com toda a força dos seus setenta anos, a levar o Salão pequenino mas de
muito bom gosto, mantido pela Sandra, sua filha de criação.
M
da Maria Madeira,
cujo nome o Machadinho me pede
não ser esquecido entre o das mulheres mais bonitas da Manaus daquele tempo,
ainda que, para nós, ginasianos, ela fosse, “para mirar, no más”, como dizem os
chilenos. E aproveito o verbete para revelar a grande pena que teve o nosso
querido colega por não poder participar do nosso baile de formatura, celebrada
com orquestra e ceia, no Olympico Clube. Não porque estivesse internado num
hospital, abatido por um tifo; senão porque o internamento não lhe permitiu
bailar com a Izete Souza Lima, aluna da Auxiliadora, com quem sonhava em seu
leito de hospital.
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