Por Thiago de Mello
Defronte
da casa do professor Monteirinho, bem no canto (naquele tempo esquina era
canto), morava a família portuguesa Pinho Maia, cheia de filhos. O Geraldo, o
Francisco, hoje são médicos. Muitas moças, todas cheias de graça. Uma delas se
casou com o Serafim, irmão do José Grosso. Outra, um dia o Oswaldo Said se
engraçou por ela. Quem me contou foi o Amim. Os Said tinham uma prima que era
muito amiga da moça. Então o Oswaldo pediu à prima que perguntasse à amiga se
ela não queria namorar com ele. Era o costume do tempo. A menina foi lá, falou
com a Pinho Maia, voltou com a resposta: ela quer, sim, mas só que você tem que
se manifestar. Como? Manifestar? Só podia ser uma declaração de amor.
O
Muraid, o irmão mais velho, tinha um livro cheinho de cartas amorosas, para
todas as circunstâncias. Oswaldo escolheu o texto mais bonito, mais derramado,
era na segunda pessoa do plural, copiou e mandou para a moça. A prima voltou
com a notícia de que a vizinha lera a carta e ficara radiante e que agora só
faltava mesmo o Oswaldo se manifestar, que ela estava esperando. Sucede que
naquele tempo o Oswaldo não sabia o que era se manifestar e o namoro sequer
começou.
Os
Pinho Maia não demorou muito se mudaram, quem veio morar na casa foi a família
Azevedo.
A
família Said morava no 493. Bem em frente morava o professor Carlos Mesquita,
diretor do Ginásio, amado pelos alunos. A biblioteca ficava na sala da frente,
as duas janelas sempre abertas, a gente passava, lá estava ele, lendo ou
escrevendo, numa bela mesa de itaúba. Bem ao lado da casa do professor Mesquita
é que morava, com a mãe, o Aderson e a Socorro Dutra.
Passando
o Grupo Escolar, a casa do Zé Galinheiro, um dos maiores empinadores de
papagaio que Manaus já conheceu. O Jorge, irmão dele, era fortíssimo: levantava
uma canoa sozinho. Depois era a casa do Eduardo, filho da dona Felizmina
Brandão. Eduardo fazia as maiores e mais bonitas rabiolas do bairro.
No
mesmo quarteirão morava a família do falecido Eneas Cabral, pai da Marcolina,
que se casou com o Xavico, morador da Lima Bacury. Xavico, irmão do Natan, da Moto
Importadora, é o Ministro Xavier de Alburquerque, atual presidente do Supremo
Tribunal Federal e filho de uma bela figura humana, patrimônio da cidade, o
decano dos médicos de Manaus, o centenário dr. Xavier, que naquele tempo e
durante quase cinquenta anos dava consultas na Farmácia do Povo, que ficava ali
na rua dos Barés, pertinho da Sapataria Onça. Ainda hoje, quando sai de casa, o
dr. Xavier gosta de dar uma volta por lá, devagarinho.
Bem
defronte ficava a casa generosa da bela família Moreira.
O seu
Moreira, casado com a tia Mocinha, parenta de minha mãe, era um dos homens mais
elegantes da rua, usava o chapéu de feltro meio de lado, tinha um jeito
fraterno de tratar as crianças e um riso cheio de doçura que transmitiu aos
filhos e que até os netos herdaram. Para a rua, era a casa da família Moreira.
Pra mim, porém, sempre foi a casa da Zaíra, minha doce amiga Zaíra, dona desde
menina de uma força envolvente e cristalina que a vida só fez aprimorar. As
virtudes daquela casa eram a bondade e a inteligência. Eram muitos irmãos. Dois
deles, o Antonio (como era fascinante ouvir o Antonio falar) e o Renatinho já
morreram. Ficou o Almir. A Yolanda era a mais velha das moças: Ondina, Maria do
Carmo e a querida Belemita, perdão, doutora Darcy Santana Moreira da Costa,
procuradora do Estado.
Descendo
a mesma calçada lá está o sobradão de parede lateral toda negra, onde morava
dona Diquinha Lessa, senhora mais imponente ainda que o sobrado. Morenona, era
do Juruá, teve educação europeia, foi criada em Londres. Voltou quando o pai
morreu. Sempre se manteve inteirada da literatura que se fazia na França.
Falava inglês com o professor Carlos Mesquita, a gente ficava só ouvindo,
embasbacado. No sobradão, moravam ela e a filha, a Ena.
Na
casa do lado morou um bocado de gente, família nenhuma demorava muito tempo
nela. Nós também moramos lá, poucos meses, lugar de triste memória, pois foi lá
que arremataram todas as nossas coisas, num leilão cuja história quem conta bem
é minha linda mãe dona Maria no seu livro autobiográfico que em breve será
editado.
Quem
morou também ali foi o Juvenil, famoso jogador de futebol da época. Jogou no
Olympico e no Rio Negro, era um craque, acabou na seleção paraense. E antes do
canto morava a família Albuquerque, uma das filhas era pintora excelente, dava
aulas particulares. O irmão dela, o Elysio, transformou-se num dos maiores
atores brasileiros, com desempenho notáveis no TBC e na companhia
Celli-Tonia-Autram.
No
canto da Zé Paranaguá com a rua Isabel, pela direita de quem desce, está a casa
do dr. Estéfano, casa em ângulo, um lado para cada rua. O dr. Estéfano era
juiz, pai dos Carlos Barroso, professor de filosofia no Ginásio, e da linda
Rosa Amélia, que se casou com o nosso inesquecível Gualter, grande jogador de
basquete e sobretudo um companheiro que tinha na cabeça ideias claras e justas.
O
último quarteirão da Zé Paranaguá, entre a rua Isabel e a beira do igarapé,
guarda um lugar especial na minha vida, porque dele me vêm as mais antigas
recordações da minha infância em Manaus: eu correndo num pátio acimentado,
cheio de roupa colorida estendida no arame, atrás de uma bola rolada por meu
pai.
Lá em
baixo, junto ao rio, ficava o estaleiro do seu Augusto Lima. Era um lugar
mágico. Horas e horas esquecidas a gente ficava a olhar os barcos nascendo das
mãos sábias dos carpinteiros caboclos. Atrás do estaleiro, a casa. Seu Augusto
era pai da Sara, casada com o seu Lourival, pais da Talita, mistura lusa e
tapuai, o riso da Talita era uma exortação à bondade. Pai da Eunice, na época
uma figura de vanguarda. Professora, fazia viagens ao Sul. Uma vez voltou,
alugou uma sala no quarteirão de cima, passou a dar aulas de ginástica. Beleza
corporal, ela dizia. Recebia gente para cantar e recitar. Pai da Luzia, pai da
Josefa, que foi a segunda mulher do Amazonino Aguiar, quando viúvo ficou da
nossa santa dona Joaninha, mãe da Enoy, doce e triste colega do Ginásio que
morreu tão cedo, do Ernane, do Enoque, do Edgard e do Edson, o mais lindo e
meigo doido de Manaus.
No
quarteirão morava o seu Pedro Marques. Não guardei o nome da esposa. Tinha
cinco filhas: a Lê, a Lulu, a Ana, a Didi, está me faltando o nome de uma. Pai
do Jason, que um dia deu uma surra num padre que andou se metendo de engraçado
com a Didi. O padre se lascou todo. O seu Pedro Marques tinha uma casa no
Curari, a Lê era professora numa escolinha de lá e dava aulas particulares, nas
férias, na casa da Zé Paranaguá.
Do
mesmo lado morava o seu Waldemar Moraes, que trabalhava na serraria e cuja
mulher, portuguesa, levava e engomava para fora. Morava também, casa de madeira
com quintal na frente cheio de jasmineiros, a dona Chica, Chica Velha, pegava
sapo cururu com a mão.
Bem no
centro do outro lado ficava a nossa casa. Durante a elaboração deste livro,
depois de mais de trinta anos, decidi revê-la. Não mudou nada. O mesmo pátio
acimentado. A varanda lateral cheia de janelas verdes. Minto: a fachada mudou.
As duas janelas da frente foram unidas numa só, defendia por vigorosa grade de
ferro. Me deu vontade de subir de novo a escada de madeira da entrada, de
infinitos degraus na minha lembrança.
Bati
na porta, a mesma porta antiga, guarnecida de almofadas de cedro. Veio abri-la
um cidadão assustado, eram três horas da tarde de um domingo. Com simplicidade,
desculpei-me importuná-lo e pedi permissão para visitar “a nossa casa”. O homem
assustou-se ainda mais e me pediu documentos. Eu não os levava comigo, quis
dizer-lhe o meu nome e o meu propósito. Mal eu iniciara a frase, ele me bateu a
porta. Guardei o brilho amedrontado dos seus olhos.
Romance
das Ruas e Praças
Os nomes
Rua
Saldanha Marinho era a rua da Palma,
outra
que foi Demetrio Ribeiro
antes
foi rua do Sol
a
Marechal Deodoro
foi
rua do Imperador.
E
todos foram caminhos
de pés
ou de igarapés.
Hoje a
Sete de Setembro
foi a
Rua Brasileira,
o
antigo Largo da Pólvora
é a
General Osório,
antes
rua da Olaria
já foi
também a das Flores.
E
todos foram caminhos
de pés
ou de igarapés.
(Elson
Farias)
A três
lindas pessoas com quem brinquei de roda pedi que me acompanhassem com a
memória e o coração, nesta viagem de retorno que acabo de fazer à rua Isabel da
nossa meninice: a Joria, a Teresinha e a Graci. De retorno, para mim; porquanto
a Jória e a Graci até hoje continuam morando naquela rua onde nasceram, e onde
fui encontra-las depois de tantos anos e foi como se eu nunca tivesse saído de
lá: a Jória, a professora Jória, estava lavando a calçada, era a manhã de um
sábado, mal me viu franziu a testa e enviesou o queixo, no mesmo jeito de falsa
zanga que herdou da mãe para dissimular a ternura, e foi logo me perguntando o
que é que tu queres, Amadeu. Respondi quero te dar um beijo, ela caiu na gargalhada,
a mesma risada-canção de antigamente.
A
Graci estava com uma freguesa (costureira de mão cheia, não há quem faça em Manaus
melhor cabeça de noiva do que ela), mas me mandou entrar como pessoa da casa. A
Teresinha, sobrinha da Jória, já não mora mais lá. A minha humilde e pequenina
amiga, hoje assistente social, inegavelmente uma das mulheres mais belas de
Manaus, casou-se com o Clovis Vale e mora na Vila Municipal, de cujo jardim não
precisamos sair para viajar pelo tempo em que fomos vizinhos de quintal.
Para
quem vinha do Monte Cristo e entrava pela rua Isabel, a primeira casa, ao lado
direito, era a da família do seu Martins, gerente da serraria, homem grave,
alto, espadaúdo e dono de uma cabeça avantajada. Todos os filhos saíram com a
cabeça do pai, inclusive a Odaísa, única mulher, era um gosto vê-la, com a sua
farda azul e branca de normalista, caminhando desenvolta e bonitona. Os meninos
eram o Odair, o mais velho, excelente corredor, apesar de grandalhão, nas
disputas de barra-bandeira; o Odimir, o Orsini, o Omar e o Oiama. A mãe deles
era a professora Ediberta Braga Martins, mas para a rua e para os seus alunos
da José Paranaguá ela era a querida dona Mocinha. A casa era assobrada e no
porão, habitável como o da maioria das casas de alvenaria da época, funcionava
uma pequena indústria do J. G. Araujo, que fabricava pregos e saltos de
borracha para sapato. Ficou na memória da rua a figura de uma operária gorda
que não ria para ninguém.
Vinha
depois uma casa muito bonita, de porão alto, porta imponente de cedro com
almofadas, janelas com balcões de arabescos de ferro, que até hoje lá ainda se
ergue conquanto mal envelhecida: é das poucas que restam da rua de antigamente.
Nela morava o seu Fabio Costa, que tinha umas fazendas nos Autazes e cuja mulher,
dona Magá, queria mudar o calendário: botava na organização do calendário a
culpa por muitas das mazelas da humanidade.
A
família Barroncas, que vivia na casa de parede e meia, até hoje tem ligações
com a rua Isabel. Chiquinho e Elvira Barroncas eram pais de muitos filhos,
todos de olhos esverdeados. O Ely se zangava quando a gente o chamava de “olho
de gato”. Mas as moças até que gostavam muito da força verde com que nasceram:
a Lourdes, a Wandira, a Iraídes e a Waneíde.
No
canto direito de Isabel com a Quintino Bocayuva, casa estreita e comprida, o
quintal ia se acabar lá na beira do rio, ninguém parava lá por muito tempo. Mas
é de justiça registrar, pelo doce bem que fez aos olhos de rua e da cidade, a
figura da Dorothy, moça que, pelos meados dos anos 30, veio do Rio de Janeiro
com o irmão e a mãe para morar ali. Alta, olhos de ágata, riso estrelado.
O lado
esquerdo do quarteirão era habitado pelos mais humildes moradores da rua,
reunidos no espaço terreno de uma estância cheia de barracos de madeira. Na
Manaus daquele tempo eram numerosas as estâncias, geralmente encontradiças nos
bairros mais pobres e de beira de rio. Várias casas contíguas ou pouco
distanciadas uma da outra, chão de terra batida, o banheiro era de todos, da
torneira uma calha de zinco se bifurcava para encher mais de uma tina de
madeira, em redor das quais trabalhavam as lavadeiras.
Naquela
estância da rua Isabel, atravessada por muitas cordas de estender roupa (o
capinzal servia de quarador), a lavadeira mais recordada é a dona Amélia,
preta, alta, magra, mãe do João e do Bia, exímios na arte do pião, da Maria e
da Otavia: comentava-se na rua que a Otavia, morena de larga cabeleira
ondulada, era parecida demais com a Dorothy Lamour, atriz norte-americana que
fazia furor nas tela do Politheama com o filme Princesa das Selvas. A
Mariazinha casou depois com o Arthurzinho, cunhado do seu Gumercindo das Águas
e que sacudiu a tranquilidade da rua, anos mais tarde, quando se transformou no
seu primeiro suicida.
No
canto do lado direito do segundo quarteirão, bem ali onde hoje a Ponte dos
Educandos começa a subir engolindo o casario da Quintino Bocayuva, ficava a
taverna do português seu Emídio. A taverna ainda está lá no mesmo lugar. Já não
estão mais o taverneiro nem sua mulher dona Mocinha, magra e baixinha, já de
cabelos brancos quando, meninos, íamos ali comprar um tostão de manteiga, dois
tostões de banha de porco marca Rosa.
Dona
Mocinha era exímia na feitura de filhoses de farinha de trigo recobertos de
açúcar e canela, cujo gosto minha memória guardou, particularmente daqueles que
ela me dava de presente. Era impressionante a perícia do seu Emídio para embrulhar
as mercadorias. Usava, para produtos gordurosos, um papel translúcido e fino,
dito manteiga. Para a farinha, o açúcar, o pó de café, o arroz, era esse mesmo
encorpado, cinzento, que até hoje se usa. Com dedos firmes e ágeis, o
taverneiro ia unindo as duas bandas laterais do papel, numa sequência de dobras
que lembravam um debrum: o embrulho ganhava a forma de um triângulo de lados
arredondados, e nunca se desfazia, ainda que não levasse cordão.
Confesso
que não consigo dominar uma vontade que me enfia o seu doce espinho agora, no
instante em que, quase quarenta anos depois, embalado pelo vento do entardecer
do rio Andirá, escrevo e escrevo estas palavras simples sobre pessoas e coisas
que não existem mais. É a vontade de dizer que ali naquela taverna vivi
momentos que duram, perduram na minha vida, porque marcados pelo fascínio que
tem, para uma criança, descobrimentos de coisas tão diferentes de que é feita a
natureza humana.
Depois
da taverna, morava a dona Matilde. A casa da turca, a rua dizia. Acho que já
relembrei que, por aqueles dias, o povo não distinguia os árabes chegando a
Manaus, oriundos sobretudo da Síria e do Líbano: todos eram simplesmente
turcos. Baixa, gordona, cara grande, dona Matilde era a bondade em pessoa. Só
se zangava quando a meninada começava a atirar pedras para derrubar as frutas
das mariraneiras, uma delas bem defronte à sua casa. E ralhava no seu português
arrevesado e lindo.
Pelos
domingos, fazia deliciosos quibes de frigideira, o azeite dourado e cheiroso,
para repartir com a vizinhança. Fiquei comovido quando me contaram que a
vizinha generosa, cuja casa tanto frequentei e de onde nunca saí de mão
abanando (certa vez saí levando uma galinha pedrês pesadona de tão gorda para o
“seu muxarifa”, que era como ela se referia a meu pai, então almoxarife do
Serviço de Águas e Esgotos da cidade) – pois me comovi quando me contaram que
dona Matilde morreu doida. Na chamada idade crítica, entrou a ter ciúmes do meu
companheiro, o Marques, lusitano que vendia vitalidade. Consta que virou
sovina, escondia cédulas num buraco de colchão. Passeava a sua loucura pelas
ruas de Manaus, o olhar de desespero, pasto de escárnio.
Vinha
em seguida a casa do meu Manuel Martins, outro português da rua, casado com
dona Ana e dono de negócios que levaram a largas temporadas no interior da
floresta, de onde um dia chegou trazendo o caboclo Xiburita, bom como água. Já
o filho, o Ivan, pequenino mas forçudo, era um violento, dava tudo por uma
briga. Brigava bem, o danado; corajoso, desafiava rapazotes mais taludos. Um
dia perdeu uma briga com as ondas do rio, morreu afogado.
Ainda
está lá, tal e qual, com quase todos os moradores de antigamente, a casa do seu
Orlando e dona Dilia, pais do Sebastião e da Graci. Seu Orlando, funcionário
das águas, homem austero, era bom de bola, fez fama jogando no time do
Nacional. Mas na rua ele se fez famoso como empinador de papagaio, ofício no
qual era um mestre e ao qual se dedicou, apaixonado, até quando já ultrapassara
os sessenta anos. Dona Dília era quem lhe preparava os papagaios, que
ostentavam o emblema do seu clube, armado em papel de seda. No meu retorno à
rua, os homens da família já não moravam nem na rua nem no céu dos papagaios.
Continuam na casa a viúva e a Graci, hoje Afonso de casada, mãe de quatro
filhas que confirmam a tradição da rua em matéria de moça bonita.
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