Por Thiago de Mello
P de “passar fogueira”,
durante
as festas juninas. Era um costume da época, que através de um ritual
rigorosamente cumprido e cuja origem desconheço, criava parentesco entre
pessoas, crianças ou adultas, que se queriam bem. Depois de três voltas em
torno da fogueira, a fumaça ardendo nos olhos, as duas pessoas (cada qual dando
a volta em sentido diferente) se encontravam e a cada encontro se diziam:
“Santo Antonio disse: São Pedro confirmou, que nós vamos ser compadres, porque
São João mandou”. Um abraço selava o parentesco, que unia primos, afilhados e
madrinhas, todos “de fogueira”.
As
festas de junho davam lugar às práticas de adivinhações, ligadas a destinos de
amor e de morte. Ainda bem que quase nunca davam certo. Uma delas consistia em
enfiar a lâmina de uma faca virgem no tronco de uma bananeira, cujo leite
deixava no metal, ao ser retirado, as iniciais do futuro esposo ou esposa. Numa
bacia d’água, deixavam-se cair os pingos da estearina quente, que acabavam
formando o nome da pessoa amada. Dentro de um copo cheio d’água, colocava-se
uma clara de ovo, que era deixado ao sereno até a meia-noite, quando apareciam,
à superfície da água, sinais reveladores do futuro da pessoa. Uma adivinhação
era muito temida: consistia em contemplar o próprio rosto, à meia-noite em
ponto, numa bacia cheia d’água: se o líquido nada refletisse, a pessoa morreria
nesse mesmo ano.
P dos paquetes, que
é como a cidade chamava os grandes navios estrangeiros. Os paquetes da Booth
Line, da Lamport, da Ligure, da Comark, da Companhia Portuguesa de Paquetes.
P das parteiras.
Já no
capítulo dos cheiros, contei de dona Adelaide, famosa parteira do meu tempo.
Igualmente famosa, e de notáveis serviços prestados à cidade, particularmente à
sua gente simples, outros nomes é meu dever gravar aqui: dona Avelina, talvez a
mais antiga delas; dona Etelvina, que morava ali na Epaminondas, mulher alta e
de andar firme; e afinal dona Elvira, a quem razões de coração me fazem
distinguir, porque era a mãe de um dos melhores amigos que a vida me deu: o
médico João de Paula Gonçalves. Mais da metade dos manauenses que atravessam a
casa dos cinquenta, nasceram nas mágicas mãos dessas mulheres, que
acrescentavam aos seus dons do ofício, um outro especial: sabiam, adivinhavam,
de quem podiam cobrar.
Q de Quiluca,
amado
companheiro de adolescência, de extrema sensibilidade para a poesia e a música,
bem-dotado para o esporte, sabia achar um jeito de demonstrar sua ternura com
gestos em aparência pequeninos mas plenos de significação. O Quiluca era como
os íntimos chamávamos o Newtom Galvão de Alencar, nosso colega de turma do
Ginásio, filho do professor Alencar, irmão do Aristóteles, do Isaias, da Lourdes,
eram muitos irmãos naquela casa cheia de sortilégios e de cânticos, ali quase
no canto da praça São Sebastião com a Costa Azevedo. Pedi um dia desses
notícias do Quiluca a um colega nosso também assíduo frequentador da casa dos
Alencar. Mas o Quim, Joaquim Francisco dos Reis Filho, só sabia que o Quiluca
fazia muito tempo que não voltava a Manaus. O Quiluca, rei do dom da amizade,
adivinhava o momento certo de chegar.
R de Renato Viana e seu Teatro,
com
Suzana Negri e Cazarré. Foi nos começos dos anos 40 que a vida cultural de
Manaus foi sacudida pela chegada dessa companhia, de grande prestígio no sul do
país, reunindo artistas famosos, como Maria Caetana e Ruy Viana; filhos de
ator, diretor e autor de numerosas obras que marcaram a dramaturgia brasileira,
antes do aparecimento de Nelson Rodrigues, cujas peças inauguraram um tempo
novo na história do nosso teatro.
O
Teatro Amazonas, que então vivia às moscas, ou cedia seu palco para espetáculos
escolares de fim de ano ou abrigava grupos de terceira ordem em “tournée” pelas
capitais do Norte, viveu alguns dos melhores dias de sua história. Renato Viana
tinha antigas ligações, inclusive de parentesco, com a cidade, onde vivera
algum tempo na juventude e publicou num jornal, creio que em A Tarde, uma
página lírica de saudação e saudade de Manaus, que alcançou a melhor
repercussão.
As
suas peças não eram fáceis nem leves. Não serviam ao riso. Tratavam de temas
filosóficos, indagavam pelo sentido da vida, questionavam a própria inutilidade
do esforço humano, afinal reduzido a nada, e terminava por discutir, mas sempre
em termos teatrais, a própria existência de Deus. A temporada foi um sucesso.
Não sobrava um lugar vazio.
Renato
Viana decidiu dedicar vesperais com ingresso franco aos ginasianos, muitos dos
quais pisavam pela primeira vez nos mármores do teatro. “Nada” e “Deus” foram
reprisadas. Na noite de despedida (me lembro bem porque cheguei depois da
meia-noite em casa e fui devidamente castigado), o grupo encenou a última peça
de Renato Viana, “A Última Encarnação de Fausto”.
R das ruas de Manaus.
De
umas poucas ruas; aquelas onde o coração ficou morando.
Aí por
53 escrevi uma série de crônicas sobre as ruas do Rio de Janeiro que O Globo
publicou durante cinco dias seguidos. Na semana seguinte começaram a chegar
cartas de leitores reclamando o meu silêncio, ao ver deles imperdoável, a
respeito das ruas em que moravam. Tinham toda a razão de reclamar: é que eu não
indicara, na abertura da série, o critério de escolha das ruas. Aprendi a
lição. Desta vez, começo logo por dizer que só vou falar daquelas ruas que, por
uma razão ou outra, marcaram a minha vida. Não importa se feia ou bonita, se de
sobrados solenes ou de casinhas humildes. Nem conta a importância da rua no
desenho vivo da cidade.
Naquela
Manaus a rua não era apenas a “via pública”, o caminho de acesso. E nem era só
um prolongamento da casa: muito mais, era um lugar onde a casa fica, o campo
mágico onde a vida florescia.
A rua
José Paranaguá era um dos três portões de entrada, porventura o principal, do
território da infância, que se abria a partir da Joaquim Nabuco; os outros eram
a Quintino Bocayuva e a Lima Bacury. Só que a porta da Quintino Bocayuva só se
abria mesmo quando a rua cruzava com a Dr. Almino. O nosso universo abrangia
cinco ruas, sem contar com a Joaquim Nabuco, que na verdade só servia de acesso
e de limite: era uma espécie de frontão da cidadela guarnecida lá em baixo
pelos muros de água e serragem do igarapé dos Educandos.
Paralelas
à rua e ao rio, a Dr. Almino e a Isabel. Perpendiculares, a José Paranaguá ao
centro, a Lima Bacury à esquerda, a Quintino pela direita. Mas os limites na
verdade iam mais além. A rua Isabel se prolongava pelo espraiado Monte Cristo,
dependendo do fluxo das águas inventava mais chão, ia bater lá na rampa da sede
do Clube Amazonense de Regatas, alcançando frequentemente a praia do Mercado e,
como as canoas removiam os marcos da fronteira, penetrando pelas águas do Rio
Negro.
A Dr.
Almino, plena de nossos poderes, atravessava a Quintino Bocayuva e inventava um
refúgio encantado numa baixa cheia de aningais (hoje aterrada para dar começo à
Ponte dos Educandos) e subia pela Pedro Botelho, antiga Oriental, até chegar às
casas flutuantes da beirada.
Pela
esquerda, o nosso território só acabava mesmo quando a Ponte Cabral, rentesinha
ao muro, chegava à Sete de Setembro, num trecho poderoso e severo: de um lado o
Palácio Rio Negro, do outro a Penitenciária do Estado, era fuzil e revólver,
era culote e perneira, por tudo quando era lado. Os nossos limites se
dissolviam na água ali por debaixo da ponte, onde a gente ia espiar as caboclas
bonitas lavando roupa no cedro da beira, a blusa de morim encharcada
transparecendo os peitos, punhais suaves penetrando o sol dos nossos corpos.
Já
disse que a José Paranaguá era o portão principal. Não porque por ela a gente
subisse vendo cada casarão enorme, o sol fazendo festas nas cores dos azulejos.
O mais bonito palacete, era assim que a gente dizia: palacete, era o do dr.
Analio Rezende, porém o que ele tinha de mais lindo era a Elza, a filha do
desembargador, debruçada na varanda todo fim de tarde. Mas porque a J.P. era a
entrada central. Além do mais, senão antes de tudo, era nela que ficava o Grupo,
o nosso Grupo Escolar José Paranaguá, onde aprendemos muito mais do que a ler e
escrever, pois como dizia a nossa diretora Clotilde Pinheiro, um curso primário
bem feito é meio caminho andado para a vida.
Era
incrível a força magnética de dona Clotilde. Professora e diretora.
Interessava-se pessoalmente por cada um dos alunos. Era gorda, baixota, óculos
de lentes fortes, mas como era bonita; sua risada era um cântico. “Os alunos
deste Grupo saem sabendo”, ela dizia tufando o peito e rindo. Quando chegava em
visita da inspeção o professor Protasio (Protasio Independente da Silva),
paraense, inspetor escolar, um grande estudioso do idioma tupi e cujo fraco era
“falar difícil”), dona Clotilde provocava, pode perguntar, inspetor, porque
eles sabem. Escrevia versos, em geral alusivos a datas ou acontecimentos, para
que os alunos os recitassem nas festas escolares. Guardo até hoje fragmentos de
um poema (a poesia não era o forte de Dona Clotilde) que ela compôs em louvor
de Manaus, cuja declamação me coube numa festa de encerramento do ano letivo: “É
uma cidade modelo, / bem construída e catita, / opinada geralmente / do Norte a
mais bonita.”
E
estes três versos: “O seu encontro das águas / é uma visada que faz / esquecer
todas as mágoas.”
Junto
ao de Dona Clotilde, quero gravar neste chão úmido da memória os nomes de
outras mestras inolvidáveis do José Paranaguá. Dona Aurelia Rego Barros (na
juventude dos seus oitenta e tantos anos, dona Aurelia me foi buscar ao
camarim, ao fim de um recital num teatro do Rio de Janeiro, para abraçar o seu
antigo aluno). Dona Elvira. Dona Darelê. Dona Cremilda, mãe do Mauro,
extraordinário pintor (o que é que foi feito dele?): um dia saí do grupo e vi o
Mauro, com os seus olhos transparentes, pintando uma flor do jardim de sua
casa, quase em frente ao Grupo, era uma cataléia vermelha. Fiquei maravilhado:
não porque a flor do quadro fosse igualzinha à da planta, mas porque era muito
mais bonita. O Mauro nunca soube que devo a ele a descoberta de que o homem
pode inventar a beleza.
De
mãos dadas, nós meninos de novo, vamos subir a Zé Paranaguá, neste outono de
1982:
Aqui
na esquina da Joaquim Nabuco ainda está, só que muito maior, a Padaria Modelo,
e o seu dono ainda é o mesmo: o português José Grosso, que quase não vai mais
lá, é o que contam. Naquele tempo ele atendia ao balcão e dirigia o trabalho
dos padeiros com a massa e o forno. Vendia de caderno, onde o freguês já levava
escrito o rol de mercadorias; ele só fazia botar o preço. Fim do mês, a conta
paga, era ocasião para cortesias: um quilo de biscoito, um pacote de roscas, um
saco de bombons.
Na
casa ao lado moravam a Alba e a Rute, os sobrenomes o tempo comeu, mas a beleza
delas ficou na lembrança das janelas, Depois vem a casa da família Montenegro,
o querido Heleno continua com as mesmas bondades. Da vila que ficava em frente
dela, de casinhas bem feitinhas, nem sinal mais existe.
Este
portão de ferro arabescado, estas quatro janelas com vidraças, são do sobrado
da família de Zeferino Rocha, homem que mereceu o respeito e o carinho da
cidade pelos seus dois nobres ofícios. Um, remunerado, de desenhista oficial do
Amazonas; outro, de certo modo também oficial, só que gratuito, de cuidador do
lindo relógio da torre da Igreja de São Sebastião. Pai de Authberto, da Bareina
e da Beatriz e avô de Lúcia, que se casou e hoje é viúva do Aderson Menezes,
esplêndido amazonense de quem dou notícia na letra M deste Abecedário.
Mais
abaixo, quase na esquina, está a casa onde morou com a mulher, dona Edith, e os
filhos Fernando, Maria Emília e Cirano, o famoso tabelião Manoel da Rocha
Barros. Um personagem da cidade ao longo de décadas, morreu quando se preparava
a segunda edição deste livro.
A
família Dutra, oriunda lá da nossa Barreirinha, morou primeiro na Quintino
Bocayuva, onde nos começos de 37 morreu o cabeça da casa, Militão Dutra, figura
de prestígio na política municipal, grande amigo de meu avô Gaudencio. Os dois
caíram enfermos pela mesma época e deixaram a floresta pelas águas do Paraná do
Ramos para se tratar na capital, onde acabaram morrendo, na mesma rua e no
mesmo ano. A viúva, dona Jacy, mudou-se para a Zé Paranaguá e bravamente
assumiu o leme do barco, em que firme navegaram os filhos, a Maria do Socorro e
o Aderson, irmãos meus de barranco.
Ao
pegado morava a família Sobreira de Mendonça, depois a do coronel Tomáz de
Lima, que tinha propriedades no laçanan, os filhos ainda continuam na casa.
Neste
casarão do desembargador Análio Rezende entro agora pela primeira vez. Depois
de tantos anos reencontro Elza, sempre bonita, e sua mãe viúva, tão lúcida nos
seus noventa anos. E recolho um depoimento da menina que ficava debruçada na
amurada de pedra da varanda: “Fui uma menina reprimida, só hoje é que me dou
conta disso. Gostaria de ter andado descalça, brincar de roda na rua, andar
pela beira do rio, pular macaca na calçada, como as outras crianças da rua. Mas
tive uma educação de menina rica. Essas brincadeiras não me foram permitidas.
Meu pai achava que uma menina de minha classe social não poderia se dar a essas
coisas. Fui superprotegida contra o sol e contra a chuva”. Elza estudou no
colégio das Dorotéias, às quais deve sua formação: “Posso mesmo dizer que
tirando a figura de minha mãe, tudo devo a Madre Pereira”. E reconhece que
muito aprendeu com as empregadas da casa, que lhe contavam “histórias
fantásticas da floresta e da força da bondade humana”.
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