Por Thiago de Mello
M
da família Menezes.
Um vasto e fecundo pedaço da
vida de muitos meninos e rapazes daquele tempo foi vivido intensamente num
amplo espaço urbano que tinha por centro a casa de um amazonense hoje
relembrado com respeito e saudade por quantos o conheceram: Tude de Menezes,
casado com dona Santinha (a quem até hoje tomo a benção) e pai de dez filhos,
aos quais educou e formou, a preço de sacrifícios amplamente compensados.
Um deles, de minha idade, hoje
Conselheiro do Tribunal de Contas, não se fez de rogado a meu apelo para que
juntos recordássemos aqueles dias tão ricos que vivemos numa região da cidade,
cujo eixo era a rua Jonatas Pedrosa, onde a família morava, no número 36. Duas
tardes inteiras gastamos recolhendo relembranças, que reúnem, estou seguro, abundante
matéria sociológica e fortalecem o poder da ternura humana. Passo ao leitor o
testemunho do meu querido Armando Menezes:
Em 1931 o velho Tude e a dona
Santa, pais já de dez filhos, mandaram de Parintins, para estudar em Manaus, o
mais velho dos meninos: O Aderson. Depois vieram o Albery e o Almir. Afinal
viemos todos para Manaus e fomos residir na Jonatas Pedrosa, 36, a casa está
lá, depois da Vila Benedita.
Eram poucas as residências que
então existiam na rua. Era rua de operários e de funcionários públicos. Me
lembro da dona Faustina, morena vistosa, de quem a rua comentava os amores com
o velho Studart. Também morava lá, com os pais, o professor Pedro Silvestre,
nosso querido mestre de Desenho no Ginásio e diretor de colégios fundados por
ele. Os pais dele tinham uma pequena quitanda, onde se vendiam finíssimas
mariolas. Era um tampo em que ainda não havia a favela que hoje se derreia pelo
barranco do igarapé, e a água do igarapé era limpa, mas limpa mesmo. José de
Castro e Tonica Muniz moravam depois da Sete de Setembro, pais do Graciliano
Muniz, colega do Almir no Ginásio.
Aí pelos começos dos anos 40
um grupo de meninos, ligados principalmente pela mesma origem interiorana,
começou a se reunir lá em casa. Filhos de pais conhecidos, de famílias amigas.
Os mais constantes, do nosso tope, eram o Alex, filho do Alexandre Carvalho
Leal, que foi prefeito de Parintins e depois deputado federal, morto em
circunstâncias terríveis num acidente no Rio de Janeiro. O Hipólito Nina
Correia, filho do desembargador João Correia e de dona Toia, também de
Parintins. O Machadinho, sobrinho do José Rocha de Machado e Silva, diretor do
Ginásio e filho de dona Isolina. E tu, cuja família já era amiga da nossa desde
Barreirinha, onde o velho Tude serviu um tempo.
Interrompo o Armando para
recordar que naqueles tempos quem conduzia o barco, assumindo o comando da
casa, era a dona Santa, que, como minha mãe, só possuía a educação elementar.
Era dona Santa quem nos preparava a merenda, que nunca faltava, irmãmente
repartida, elaborada quase sempre com os produtos que o velho Tude enviava lá
de Parintins para a família, a cada barco que chegava, confiado aos cuidados
dos comandantes seus amigos: eram paneiros de farinha, de castanha, cachos de
banana, farinha de tapioca, mantas de pirarucu, cestos de frutas. Havia como um
chamariz mágico naquela casa, onde éramos acolhidos como filhos, e era com
sadio orgulho que trazíamos, contribuição de nosso trabalho para a merenda, as
castanhas que ajudávamos a descascar no convés dos barcos que faziam a descarga
do produto ali no igarapé onde atracavam, algumas das quais ganhávamos de paga
pelo trabalho.
Armando aproveita para
relembrar as nossas brincadeiras: “O Albery e o Almir tinham a turma deles, dos
maiores. Eram o Graciliano, o Alídio Bonates, hoje engenheiro em São Paulo, o
Norões, o Leandro Antony, o preto Zé Mario, bamba no voleibol. A nossa turma,
de tope menor, ia lá para o seu lado e também tinha o seu voleibol, só que a
rede era um cordão estirado lá no quintal e a bola não era de couro. Jogávamos
muito bolinha, que naquele tempo a gente não precisava dizer que era “de gude”,
era só bolinha mesmo. Havia o jogo do triângulo, em cujo interior cada jogador
colocava a sua bolinha de vidro, e lá a uns cinco metros riscávamos a linha que
nos servia para tirar o ponto (quem atirasse a bolinha mais perto da linha
traçada no chão seria o primeiro a jogar). As leis eram rigorosas: escapole,
bate e fica. Jogávamos também o jogo dos três buracos, de ida e volta, peritos
na pontaria, de vez em quando alguém aparecia com uma bolinha de aço, era um
terror. Pescávamos quase todas as tardes, com isca de minhoca, apanhávamos
muito aracu e acará-açu. O terreno da casa deva os fundos para a ilha do
Caxangá, separada pela rua Cândido Mariano. De vez em quando, nas brincadeiras,
a turma dos maiores se confundia contente na camaradagem com os menores. Lá
vinham, além dos citados, o Oséas Martins, o Tarzan, o Claudio Dente de Ouro.
Costumávamos sair de canoa, às vezes chegávamos ao mercado, onde comprávamos
laranjas ao cento, e dúzias de melancias.”
Quando o Armando falou de
canoa, foi impossível deixar de recordar, um ajudando o outro, o episódio de
uma canoa encontrada pelo Almir, e outros colegas, à deriva ali na boca do Rio
Negro. Trouxeram a canoa para o igarapé e a puxaram para a terra, e lá ficou
ela, bem em frente ao 36. Esperou-se uma semana, não apareceu ninguém a
reclamar pela embarcação. Idéia creio que do Albery, um danado de engenhoso,
pintamos a canoa de vermelho, que então foi batizada com o nome de Kashbah. A
canoa demorou muito tempo lá no igarapé, servindo à alegria das nossas tardes.
Um dia (não se pode esquecer que Manaus era uma aldeia de menos de cem mil
habitantes, e olhe lá: a cidade se resumia da Cachoeirinha até a Vila Municipal,
pela frente era do São Raimundo até o paredão) – bem, um belo dia apareceu um
cidadão se dizendo dono da canoa. Não houve discussão. Pois sim senhor, aqui
está ela, pintada e batizada. Pode levar.
O Armando fez questão de
relembrar que foi por causa dessa canoa, numa tarde em que o Albery decidiu
alagá-la, empurrando-a para o meio do igarapé, que eu ganhei, do próprio
Albery, um apelido, porque, no medo de afundar, botei a boca no mundo: “Chorão
de coquinho!”
– Quando secava o igarapé – lá
floresce de novo a memória do Armando – abria-se para nós um espaço utilizado
para campo de futebol, em cujas partidas havia lugar para maiores e menores.
Mas havia jogos importantes, de times de ruas que se enfrentavam. O time do
pessoal da Vila Ninita, o time da rua Isabel, integrado também por gente da
Lima Bacury e da Quintino Bocayuva, no qual duas famílias se distinguiam: a dos
Trigueiro e a dos Bonates. Um dos Trigueiro chegou a ser craque, tempo depois.
Daquele time do igarapé, nasceu o Santa Isabel Futebol Clube, que chegou a
disputar o campeonato oficial da cidade.
Outra brincadeira que muito
nos fascinava, como por fortuna fascina ainda a criançada e os marmanjos de
hoje, era o papagaio. Destacavam-se, entre os graúdos, os Achão, principalmente
o Lister, do Caxangá, que acabou casando com uma moça de Maués, da família
Negreiros. O mais famoso empinador, do qual contarei proezas no livro que já
anunciei, era o Laercio Miranda, que foi depois grande desportista, durante muitos
anos presidente da Federação Amazonense de Futebol.
Veio à nossa lembrança, no
nosso último encontro de “trabalho”, a presença de umas canhoneiras peruanas,
ou colombianas, que atracavam e permaneciam dias e dias ali no igarapé, embora
fossem vasos de guerra. A tripulação nos permitia o acesso ao convés daqueles
barcos estranhos. Recordamos ainda uma brincadeira típica daqueles dias: a de
descer o barraco, deslizando sentados num casco de tartaruga, de vez em quando
um de nós se despencava lá dentro d’água.
Os Menezes eram 10, hoje são 9
com a morte do grande Aderson, pessoa fundamental no nosso carinho e na nossa
admiração. Professor de Teoria Geral do Estado, do primeiro ano da Faculdade de
Direito, preferia dar a sua aula no horário de abertura, das sete às oito da
manhã. Invariavelmente a sala ficava repleta de alunos de todas as séries, que
ali chegavam só pelo gosto de ouvir as aulas do Aderson, dentre os quais o
Antonio Angarito, o Afonso Nina (que chegou a diretor do Ginásio) e o hoje
reitor da Universidade, Otavio Mourão.
Faço questão de dar o nome dos
outros nove: Almir, Albery, Alberto, Armando, Aurelio, Aderbal, Adalberto,
Maria Luiza (a única moça) e o Tude Filho.
M
de Maria Amália Ferreira,
miss Amazonas num dos
primeiros anos da década de 40. A memória da cidade guarda a força da beleza da
Maria Amália, que provocava uma espécie de espanto e, ao mesmo tempo, de
alucinada emoção.
Este
M de mulheres bonitas daquele tempo
é escrito na madrugada da
minha Barreirinha, aonde cheguei num entardecer e fui chamado para ir correndo
a ver se dava um jeito numa criancinha que chegara do Andirá, lá das bandas do
Massauari, e que lá estava se findando: cheguei tarde na beira do igarapé do
Pucu, a criança, pele e ossos, já não respirava mais.
Voltei ao meu estúdio e revi
as anotações recolhidas de conversas com os colegas do tempo, que, olhos
brilhantes, relembravam as virtudes de moças que, melhor nutridas na infância,
tiveram não só a simples glória de viver a de alegrar a vida com a beleza de
seus corpos tão bonitos. Vou atender ao calor do brilho que ainda se acende na
memória dos meus pensamentos e (para que esconder?) um pouco também na minha.
Como é que poderemos esquecer
jamais a beleza das pernas da Vanilda, a Vanilda Gama (irmã do Cloter, grande
saltador de trampolins), a principal nadadora do nosso tempo, na piscina do
Bosque e na do 27? Quem é que pode esquecer a beleza da Amelia Vale (irmã da
Aglae e da Cassi, criadora da “Cassilândia”), que se casou com o Julinho
Marques, um rei na descoberta de “buracos” nas partidas de voleibol?
Não descubro, nas minhas
anotações, de quem a exigência de que não deixe de me referir à beleza da irmã
do Arnaldo Rosas, de enorme parecença com a atriz Anabela; e sobretudo à de uma
privilegiada morena, da família Segadilha, moradora de uma casa da Sete de
Setembro (pertinho do Palácio), em cuja janela ela se debruçava todas as
tardes. Só dava, é claro, para a contemplação dos braços e do busto. Mas o
resto, como nos ensinou Machado de Assis, o resto a gente adivinhava.
N
da família Normando,
De quem fomos vizinhos quando
nos mudamos para uma daquelas casinhas da Silva Ramos que ficavam abaixo do
nível da rua, no quarteirão que terminava no Grupo Escolar Euclides da Cunha. A
casa dos Normando, de parede e meia com a nossa, era a da esquina. Já no
comando da casa estava dona Zulmira, viúva tão bonita com o seu coque negro e
redondo, doce de trato mas quando dava uma ordem era uma vez só, com ela ali na
disciplina.
No começo de nossa vizinhança
foi custosa e penosa para mim, que logo me tufei de admiração pelo Wanderley, o
filho mais velho, alto e cheio de corpo, já concluindo ou creio que até
ensinando no Dom Bosco, que vivia lendo, só largava do estudo para se embalar na
rede e cantar cheio de bossa: “Música, maestro, / quero ver o meu amor / dançar,
samba, Lelê, / samba, Lalá, / está na hora / do samba começar, / Música,
maestro, / não deixe o samba / acabar.”
E também penosa porque me
enchi de simpatia pela figura magrinha do Zulmar, do meu tope e doido por
futebol como eu. Foi custosa, contava eu, porque uma diferença, de força na
época, separava minha mãe e dona Zulmira. Minha mãe era protestante batista e
dona Zulmira era católica beata, cada qual mais fanática que a outra. Os tempos
eram ainda mais bicudos. Não se conhecia a palavra ecumenismo. O Vaticano nem
sonhava com os Concílios.
A rivalidade, muito estimulada
pelos padres incultos e provincianos da época, gerava conflitos, afastava
convívios; certa vez, em ato religioso público promovido pelos protestantes na
Praça da Saudade, onde deveria se ouvir um famoso pregador chegado
especialmente a Manaus, um padre que nem o nome vou dar mas que sempre esteve
bem longe de entender a mensagem de amor do Cristo, organizou um grupo de
choque e partiu decidido a dissolver a concentração na base de pedradas. Não
conseguiu, mas deixou muita gente de cabeça partida.
Mas
amor, pode demorar, acaba sempre vencendo. Foi o que aconteceu. Dona Zulmira e
minha mãe, tão ricas de coração, logo logo se descobriram irmãs por cima ou por
dentro das diferenças doutrinárias e se tornaram inseparáveis até o fim da
vida, que já chegou para a mãe dos meus irmãos Normando, mas ainda bem esperado
por minha Mãe, a cuja festa das Bodas de Diamante, que em 81 Manaus celebrou no
Teatro Amazonas, estavam todas as meninas, o Jorge, perdão, o Padre Jorge não
estava em Manaus, nem ele nem o Mário, aliás Mário Maroquinhas, que hoje moram
em Belém. É claro que não poderia comparecer o Wanderley, uma das melhores
figuras de intelectual, no sentido certo que aprendi a dar à palavra, que já o
Amazonas formou, com a ajuda posterior do Pará, onde Wanderley Normando viveu o
período mais longo de sua vida, ligado à atividade bancária de idéias, com
excelente formação humanística e literária. Morreu tão jovem.
Muito
mais jovem, é verdade, morreu o seu irmão Zulmar, meu companheiro de rua, de
patim, de jogo de botão, de Ginásio (deixou o Dom Bosco e veio para o Ginásio
na terceira série), de porrada, de papagaio, de futebol e afinal de
confidência, durante um desesperado pedaço de sua vida, recém-aberta para as
alegrias do corpo e que, como um anjo desprevenido, caiu nos braços de brasa de
certa dama casada, a quem Zulmar uma tardinha me fez questão de mostrar (e foi
quando vi que o meu amigo estava mesmo perdido, pois era de corpo inteiro, e
não apenas dos braços, que lhe nasciam clamores de brasa. Por sorte, não lhe
guardei o nome cuja revelação, de resto, não tem nenhuma importância).
Agora
em agosto, numa viagem aérea entre Parintins e Manaus, reencontrei o Mario
Maroquinhas, apelido pelo qual hoje só o tratam os meninos do seu tempo.
Gastamos a hora de viagem anotado os moradores da rua. Do lado em que
morávamos, viviam também a dona Isaura Lima, a Zulmira e a Luzia, filhas de
dona Joaninha, com o sobrinho José Roboão. Numa casa que liga a porta ao nível
da rua por uma passarela de cimento, morava o Gesta, que foi jogador do
Olympio. Depois, o seu Amaral, o Horta, um terreno baldio lá em baixo em cujo
muro, rente à calçada, a gente se debruçava para espiar a multidão de ratos.
Depois
a casa que tanto frequentei, a dos Teixeira, me lembro muito mais da Eneida,
que foi minha namorada, com quem nunca conversei sem que ela estivesse
debruçada na janela e eu em pé do lado da rua, e a quem eu mandava e dela
recebia uns bilhetezinhos por intermédio do Jorge, um menino filho de dona
Amélia. Uma das últimas casas era de dona Ritinha Leite, proprietária de uns
caminhões, mãe da Arminda, esposa do Jorge Andrade, que morreu em 47, quando
secretário da Fazenda, na interventoria Júlio Nery. Da família, fazia parte a
Alice; jogava vôlei no time do Olympico, trabalhava no Sinfronio e Cia. e dona
de um busto que certamente ainda perturba muito memória local.
Do
outro lado da rua, nos limitamos a recordar as casas marcadas por dois
acontecimentos de luto. A do comandante Benedito, que morreu assassinado,
parece que envolvido em novelo amoroso; e a do Anselmo, casado com a Jandira,
onde morreu um amigo querido de todos nós, aluno do Ginásio: o Ruy Damasceno.
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