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segunda-feira, junho 24, 2019

ABCedário íntimo para uso público (19)



Por Thiago de Mello
R de rua do Dr. Moreira, que antes de ter as suas casas demolidas e desfiguradas para adaptar-se, de ponta a ponta, às exigências da atração comercial, com suas vitrinas onde os artigos importados se acumulam em desordem, os letreiros coloridos desenhados sem arte, as fachadas remodeladas às pressas – era uma das ruas mais bonitas e de melhor história e tradição na vida da cidade, onde nasceram e viveram amazonenses da melhor cepa, cuja memória é tão mal servida por quem dela tem a obrigação de cuidar. 
Se nada se faz por ela, como é que o proprietário do atual Hotel Floriano, por exemplo, pode lá ter interesse em saber e, depois de ter a informação, até usá-la para promoção publicitária de seu negócio, divulgando que aquela casa foi residência de um governador do Amazonas, o coronel Antonio Bittencourt, por ele construída em 1914? Para mim, era a casa do professor Agnello, cuja esposa, a professora Zulmira, Uchoa de solteira, sempre nos servia um refresco quando lá íamos consultar a biblioteca do mestre.
Era uma das ruas pelas quais mais gostava de caminhar, fim rosado de tarde, sempre que, já escritor, vinha todos os anos a Manaus. Que admirável conjunto de sobrados, construídos com cuidados de acabamento para durar a vida inteira! Deles parece que atualmente só continua erguido o da família Nery, aliás habitado ainda por um dos descendentes do antigo governador, acho que o Guilherme ou o Pery.
Na esquina com a Quintino Bocayuva funcionava o então famoso Instituto Universitário, fundado e dirigido pelo José Chevalier Carneiro de Almeida, pai do Ramayana, cujo nome completo era Walmiki Ramayana Paula e Souza de Chevalier. Muitos de nós estudamos o admissão no colégio do velho Chevalier, o responsável pelo curso era o professor Osiris, a quem com muito custo perdôo a palmatória. O vozeirão do velho Chevalier, durante as aulas, era ouvido pela rua inteira. Fundador do escotismo, como em algum lugar já referi, vestia-se ele próprio, que era de corpo avantajado, de escoteiro com chapéu e tudo. 
Naquela casa morou durante dezoito anos, imaginem só quem, o cientista Barbosa Rodrigues, um dos mais competentes estudiosos da natureza amazônica, cuja obra merece o respeito de todos aqueles que, no mundo inteiro, sabem dar valor às coisas sérias. Dentro das mesmas paredes nasceram o Arthur Cesar Ferreira Reis e o próprio Ramayana. Hoje é apenas a Pensão Carrilho, a cujo proprietário, que nada tem a ver com o descaso oficial pela memória da cidade e a quem só desejo muitos hóspedes, quero pedir que mande afixar bem ao lado da porta, uma sóbria placa de bronze (até me ofereço para ajudá-lo na redação do texto), que informe aos apressados transeuntes daquele miolo da zona comercial, o nome dos antigos e ilustres moradores do imóvel. Do velho Chevalier se pode afirmar que foi um dos homens mais apaixonados pela juventude da sua terra.
Na rua morou muita família que deixou nome na cidade, da qual ainda participam, com destaque, vários de seus descendentes. Contei com o auxílio da memória do bom Ulysses, o qual, como o Agnelinho, o Pedro e o caçula Benjamim, ali nasceu, para trazer de volta e a eles dar bom abrigo nestas páginas, alguns dos amazonenses que fizeram a vida da rua desfigurada pelas impiedosas exigências de um desenvolvimento econômico, cujos frutos nem toda a cidade prova.
O Ulysses começa pelo começo e me garante que quase todo o quarteirão pertencia ao velho José Bittencourt, pai do Antonio que foi governador e avô do nosso professor Agnello. Interrompo para adverti-lo que ele já está cansado de saber que meu interesse se prende ao período 30/40, justamente o ano que marcou o seu retorno a Manaus, dele, que era prefeito no Paraná e veio rever sua cidade, quando se vê chamado para ocupar a cadeira de geografia, no lugar do pai, que acabava de ser designado pelo Governo Federal para dirigir o Recenseamento de 40 no Amazonas, e o Ulysses foi ficando e foi gostando do ofício, que exercia com prazer só comparável ao gosto com que redescobriu os encantos morenos das moças da cidade, por isso mesmo é que se casando com a santa e linda Fernanda. 
Ulysses refuga relembranças com fumaças de indiscrição (com redobrado mas delicioso vigor, quando lhe informo que o nosso querido Jary Botelho me garantiu que várias noites viu ali no canto da Zé Paranaguá com a Dr. Almino, o nosso então elegantíssimo professor de namoro firme com a sensacional Crisálida, que depois foi Miss Amazonas).
Ulysses faz de conta que não relembra nada disso, faz é questão de lembrar orgulhoso que seu antepassado, o alferes José Ferreira Ribeiro Bittencourt, foi um dos assinantes, em 1852, da emancipação política do Amazonas. E que o irmão do alferes, Francisco Publio, além de professor de francês, foi dono da primeira foguetaria de Manaus, chegou a secretário de Estado, mas enriqueceu foi com os rojões.
Concordo que incluo no texto, que não é de historiador, esses informes que lhe são gratos e que noutro contexto podem até ser de utilidade, desde que percorramos juntos a rua da sua meninice.
De quem primeiro ele se lembrou foi de um mulato casado com uma francesa, o professor Garcia, dono de um colégio ali na rua que preparava alunos para concursos. Ensinava todas as matérias, a todas as horas do dia ou da noite. Vejo depois a casa do maestro Rebelo, cujos filhos todos foram músicos, o mais famoso deles, ainda hoje, o pianista e compositor Arnaldo Rebelo. 
A casa do Abílio Nery, irmão do Silverio que foi governador e pai do Paulo, do Guilherme e do Pery. Também morava lá o velho Hildebrando Marinho, pai do Jauari; o velho Isaac Benchimol, pai do Samuel e do Saul (embora o Samuel me tenha revelado que os Benchimol moraram na Q. Bocayuva, sendo dos Bittencourt vizinhos só de quintal); a família Frazão Ribeiro, cuja figura de mais fama ficou sendo a Elda, quando eleita Miss Amazonas, recebida de regresso pela cidade em festa cívica, com tropa militar vestida de gala; a família Lins, cujo chefe, João Teófilo de Sá Cavalcanti, avô do Ruy Lins, era fiscal da Prefeitura do Mercado; morava o coronel Medeiros, criador de galo, pai da Ilma Thoury, fundadora da Escola Royal de Datilografia, que funcionava, sempre muito frequentada, ali na mesma rua; e a família Carrera, da qual descende o nosso atual senador. 
Deixou para o fim a Pensão Vaticano, de lugar garantido na história da cidade, onde se hospedavam de preferência os acreanos que chegavam a Manaus, alguns deles estudantes, que faziam da Vaticano uma espécie de república, muitas noites transformada em campo de estrepolias boêmias.

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