Por Thiago de Mello
R de rua do Dr. Moreira, que
antes de ter as suas casas demolidas e desfiguradas para adaptar-se, de ponta a
ponta, às exigências da atração comercial, com suas vitrinas onde os artigos
importados se acumulam em desordem, os letreiros coloridos desenhados sem arte,
as fachadas remodeladas às pressas – era uma das ruas mais bonitas e de melhor
história e tradição na vida da cidade, onde nasceram e viveram amazonenses da
melhor cepa, cuja memória é tão mal servida por quem dela tem a obrigação de
cuidar.
Se
nada se faz por ela, como é que o proprietário do atual Hotel Floriano, por
exemplo, pode lá ter interesse em saber e, depois de ter a informação, até
usá-la para promoção publicitária de seu negócio, divulgando que aquela casa
foi residência de um governador do Amazonas, o coronel Antonio Bittencourt, por
ele construída em 1914? Para mim, era a casa do professor Agnello, cuja esposa,
a professora Zulmira, Uchoa de solteira, sempre nos servia um refresco quando
lá íamos consultar a biblioteca do mestre.
Era
uma das ruas pelas quais mais gostava de caminhar, fim rosado de tarde, sempre
que, já escritor, vinha todos os anos a Manaus. Que admirável conjunto de
sobrados, construídos com cuidados de acabamento para durar a vida inteira!
Deles parece que atualmente só continua erguido o da família Nery, aliás
habitado ainda por um dos descendentes do antigo governador, acho que o
Guilherme ou o Pery.
Na
esquina com a Quintino Bocayuva funcionava o então famoso Instituto
Universitário, fundado e dirigido pelo José Chevalier Carneiro de Almeida, pai
do Ramayana, cujo nome completo era Walmiki Ramayana Paula e Souza de
Chevalier. Muitos de nós estudamos o admissão no colégio do velho Chevalier, o
responsável pelo curso era o professor Osiris, a quem com muito custo perdôo a
palmatória. O vozeirão do velho Chevalier, durante as aulas, era ouvido pela
rua inteira. Fundador do escotismo, como em algum lugar já referi, vestia-se
ele próprio, que era de corpo avantajado, de escoteiro com chapéu e tudo.
Naquela
casa morou durante dezoito anos, imaginem só quem, o cientista Barbosa
Rodrigues, um dos mais competentes estudiosos da natureza amazônica, cuja obra
merece o respeito de todos aqueles que, no mundo inteiro, sabem dar valor às
coisas sérias. Dentro das mesmas paredes nasceram o Arthur Cesar Ferreira Reis
e o próprio Ramayana. Hoje é apenas a Pensão Carrilho, a cujo proprietário, que
nada tem a ver com o descaso oficial pela memória da cidade e a quem só desejo
muitos hóspedes, quero pedir que mande afixar bem ao lado da porta, uma sóbria
placa de bronze (até me ofereço para ajudá-lo na redação do texto), que informe
aos apressados transeuntes daquele miolo da zona comercial, o nome dos antigos
e ilustres moradores do imóvel. Do velho Chevalier se pode afirmar que foi um
dos homens mais apaixonados pela juventude da sua terra.
Na rua
morou muita família que deixou nome na cidade, da qual ainda participam, com
destaque, vários de seus descendentes. Contei com o auxílio da memória do bom
Ulysses, o qual, como o Agnelinho, o Pedro e o caçula Benjamim, ali nasceu,
para trazer de volta e a eles dar bom abrigo nestas páginas, alguns dos
amazonenses que fizeram a vida da rua desfigurada pelas impiedosas exigências
de um desenvolvimento econômico, cujos frutos nem toda a cidade prova.
O
Ulysses começa pelo começo e me garante que quase todo o quarteirão pertencia
ao velho José Bittencourt, pai do Antonio que foi governador e avô do nosso
professor Agnello. Interrompo para adverti-lo que ele já está cansado de saber
que meu interesse se prende ao período 30/40, justamente o ano que marcou o seu
retorno a Manaus, dele, que era prefeito no Paraná e veio rever sua cidade,
quando se vê chamado para ocupar a cadeira de geografia, no lugar do pai, que
acabava de ser designado pelo Governo Federal para dirigir o Recenseamento de
40 no Amazonas, e o Ulysses foi ficando e foi gostando do ofício, que exercia
com prazer só comparável ao gosto com que redescobriu os encantos morenos das
moças da cidade, por isso mesmo é que se casando com a santa e linda Fernanda.
Ulysses
refuga relembranças com fumaças de indiscrição (com redobrado mas delicioso
vigor, quando lhe informo que o nosso querido Jary Botelho me garantiu que
várias noites viu ali no canto da Zé Paranaguá com a Dr. Almino, o nosso então
elegantíssimo professor de namoro firme com a sensacional Crisálida, que depois
foi Miss Amazonas).
Ulysses
faz de conta que não relembra nada disso, faz é questão de lembrar orgulhoso
que seu antepassado, o alferes José Ferreira Ribeiro Bittencourt, foi um dos
assinantes, em 1852, da emancipação política do Amazonas. E que o irmão do
alferes, Francisco Publio, além de professor de francês, foi dono da primeira
foguetaria de Manaus, chegou a secretário de Estado, mas enriqueceu foi com os
rojões.
Concordo
que incluo no texto, que não é de historiador, esses informes que lhe são
gratos e que noutro contexto podem até ser de utilidade, desde que percorramos
juntos a rua da sua meninice.
De
quem primeiro ele se lembrou foi de um mulato casado com uma francesa, o
professor Garcia, dono de um colégio ali na rua que preparava alunos para
concursos. Ensinava todas as matérias, a todas as horas do dia ou da noite.
Vejo depois a casa do maestro Rebelo, cujos filhos todos foram músicos, o mais
famoso deles, ainda hoje, o pianista e compositor Arnaldo Rebelo.
A casa
do Abílio Nery, irmão do Silverio que foi governador e pai do Paulo, do
Guilherme e do Pery. Também morava lá o velho Hildebrando Marinho, pai do
Jauari; o velho Isaac Benchimol, pai do Samuel e do Saul (embora o Samuel me
tenha revelado que os Benchimol moraram na Q. Bocayuva, sendo dos Bittencourt
vizinhos só de quintal); a família Frazão Ribeiro, cuja figura de mais fama
ficou sendo a Elda, quando eleita Miss Amazonas, recebida de regresso pela
cidade em festa cívica, com tropa militar vestida de gala; a família Lins, cujo
chefe, João Teófilo de Sá Cavalcanti, avô do Ruy Lins, era fiscal da Prefeitura
do Mercado; morava o coronel Medeiros, criador de galo, pai da Ilma Thoury,
fundadora da Escola Royal de Datilografia, que funcionava, sempre muito
frequentada, ali na mesma rua; e a família Carrera, da qual descende o nosso
atual senador.
Deixou
para o fim a Pensão Vaticano, de lugar garantido na história da cidade, onde se
hospedavam de preferência os acreanos que chegavam a Manaus, alguns deles
estudantes, que faziam da Vaticano uma espécie de república, muitas noites
transformada em campo de estrepolias boêmias.
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