Por Thiago de Mello
Para muita gente boa, o tempo
de que dou notícias constitui o que chamam, em tom de lástima, o período negro
da decadência da vida da capital do Amazonas iniciada nos anos 20 com a grande
crise econômica resultante do baque da borracha. Pois vejam só: com olhos que
ganhei de olhar a vida dos homens, contemplo aquele tempo da chamada decadência
e simplesmente digo: santa decadência!
A década de 20 se abre com as
seringueiras da Malásia (filhas da nossa floresta, ali cultivadas
artificialmente, depois que o inglês Henry Wickman, em 1873, daqui levou
clandestinamente muitos sacos de sementes) produzindo 360 mil toneladas de
borracha enquanto a produção do Amazonas não alcançava oito mil, pagas a preços
aviltados. Era o fim do famoso ciclo da borracha.
Era também o fim da grande
vida. Do dia para a noite, se foram acabando o luxo, as ostentações, os
esbanjamentos e as opulências sustentadas pelo trabalho praticamente escravo do
caboclo seringueiro lá nas brenhas da selva. Cessou bruscamente a construção
dos grandes sobrados portugueses, dos palacetes afrancesados, dos edifícios
públicos suntuosos. Não se mandou mais buscar mármores e azulejos na Europa,
ninguém acendia mais charutos com cédulas estrangeiras. O enxoval das moças
ricas deixou de vir de Paris. Os navios ingleses, alemães e italianos começaram
a escassear na entrada da barra.
Muitas grandes firmas
exportadoras, de capital europeu, começaram a pedir concordata. Das casas
aviadoras (que forneciam dinheiro e mercadorias aos seringalistas do interior
da floresta), as mais fracas faliram logo, algumas resistiram ainda um pouco,
mas não puderam evitar a falência. As companhias líricas de operetas italianas
foram deixando de chegar para as suas temporadas exclusivas no sempre iluminado
Teatro Amazonas. Os coronéis de barranco já não podiam pagar com fortunas uma
carícia mais quente das francesas importadas e refinadas na arte do amor
comprado, as quais, por isso mesmo, foram logo tratando de dar o fora,
substituídas nas pensões noturnas pelas nossas caboclas peitudas e de cintura
menos delgada.
Dar o fora foi também o que
fizeram os comerciantes ingleses e alemães, os navios partiam carregados deles
com a família inteira. Nunes Pereira, que já naquele tempo começava a reunir
material para a sua importantíssima obra sobre a literatura oral dos índios do
Amazonas, reunida quarenta anos depois nos dois volumes do “Moronguetá”, viu os
barcos largando do roadway com levas de pessoas abandonando Manaus – e muitas
se despiam da cidade com gestos obscenos.
Os novos-ricos se apavoraram.
Os ricos mais sólidos se acautelaram e trataram de abrir novos atalhos para
continuar a enriquecer. O povo continuou sendo o povo. A cidade ingressou então
no seu largo período de declínio e estagnação.
Foi durante esse tempo que eu
vivi e convivi com ela, que entrei pelos seus caminhos e penetrei pela sua
alma: o tempo em que Manaus pôde ser ela mesma, a viver de si mesma e de
afirmar um jeito de ser todo seu – autêntico, simples, gostoso jeito de ser.
Do que a borracha trouxe de
benefício público – ao preço da miséria e da servidão de milhares de caboclos –
a cidade continuou a usufruir. Bom serviço de águas e esgotos, uma excelente
luz de carvão e arco voltaico, transporte urbano, servido por bondes de
primeira categoria. Boas casas de ensino, principalmente muito bons
professores, para os cursos primários, secundário e (não demorou muito) também
para o ensino de Direito e de Odontologia.
Já encontramos uma atenção
médico-hospitalar, com a Beneficência Portuguesa e a Santa Casa de Misericórdia,
que dava para as exigências da população, naquele tempo ainda exposta às febres
da sezão, nome popular da malária.
E, não obstante a decadência
econômica, a cidade era muito bem abastecida. Fartura de peixe e de carne, a
tartaruga estava ali diariamente, para quem quisesse comprar, nas bancas do
Mercado. Muita fruta e verdura: hortaliça em abundância, cultivadas pelos
portugueses cujos tão bonitos canteiros davam alegria só de olhar. Fome mesmo
ninguém passava; mesmo porque o comerciante da época não queria arrancar os
olhos da cara de ninguém. Antigamente comia-se melhor, me afirma o dr. Moura
Tapajós, grande filho daquela época, com a segurança de quem sabe o que está
dizendo.
Manaus, batida pela
estagnação, teve tempo e teve, mais que tudo, força para a afirmação cotidiana
de um delicioso estilo de vida que se amparava em valores culturais que lhe
eram próprios. Valores que não se deixaram amassar, submissos, pelos elementos
poderosos da cultura europeia colonizadora. Ao contrário, sempre foram os
ingredientes dominantes no processo de aculturação, tão bem levada com os
costumes e hábitos de vida que nos trouxeram, sobretudo a partir dos últimos
anos do século passado, os portugueses provincianos pobres e os árabes de
bolsos vazios.
No espaço de tempo histórico
de que a minha crônica traz notícia, Manaus não precisou nem foi forçada a
copiar o jeito de viver de outras sociedades humanas mais evoluídas. E a
verdade é que, já mesmo antes, no período que terminou na segunda década, no
conjunto de sua cultura, não se deixou seduzir, embasbacada, por todas as
coisas diferentes vindas, e nem sempre bem-vindas, lá de fora. Incorporou o que
lhe fazia boa cama ao dengue de cabocla e foi dona de sua casa durante uma
porção de anos.
É no período da grande
depressão econômica, em que o Amazonas chega a perder 90% do seu produto
territorial bruto (fato que se considera sem paralelo) que Manaus abre para a
sua gente caminhos de reencontro com a sua própria autenticidade cultural.
Apagados os brilhos das lantejoulas estrangeiras, que tanto a ofuscava, a
cidade redescobriu e deu o devido valor à sossegada mas permanente luz que lhe
nascia dos âmagos mais fundos. É acertado e é justo reconhecer que houve
naquele período um instintivo e bonito movimento de recuperação da nossa
amazonidade. Imposto dialeticamente pela dura contingência.
Pois fator que convém seja
levado em conta, na explicação sociológica daquele momento, é a força de toda
uma vivência interiorana, que chegava e se manifestava na vida da capital com a
presença de numerosas famílias que refluíram do interior, tangidas pelo mesmo
vendaval asiático que sugou de Manaus estrangeiros desesperados. É a força do
caboclo suburucu – popa de lancha e bandeira azul – chegando para plantar na
cidade as raízes de uma cultura adquirida na convivência com os seres animais e
vegetais, terrestres e aquáticos e com as virtudes materiais e espirituais da
floresta.
E assim, acolhedora e
aconchegante, espaço urbano em que predominava o convívio cordial e solidário,
Manaus atravessou a metade do século.
Quando veio a nova onda – que
ainda não passou e nem se sabe se um dia vai passar, talvez seja mesmo
irreversível – a cidade, valente de brios, resistiu até onde pôde, aos furores
de uma dominação cultural que acabou por submetê-la com os ímpetos do capital
sem-nação e com as suavidades do engano colorido da comunicação de massa
totalizadora.
Mas a vida da Manaus submetida
ainda não é matéria de memória.
(Do livro “Manaus, Amor e
Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)
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