Por
Thiago de Mello
Adolescente,
sentado sozinho no entardecer da beira do igarapé de Manaus, eu ficava cismando,
olhando os catraieiros transportando lá para o lado dos Educandos os operários
da serraria. E me perguntava por que é que havia tanta diferença na vida das
pessoas. Por que havia gente tão rica, que morava em palacetes e tinha de tudo,
enquanto tanta gente, que trabalhava o dia inteiro, vivia pobremente em casas
cheias só de redes e crianças? Por que – eu me indagava – minha linda Mãe
precisava se levantar ali pelas cinco horas da manhã, ainda noite escura, e
preparar pastéis e refrescos para serem vendidos e com esse dinheirinho ajudar
meu pai nas despesas da comida e da educação dos filhos? A vida, só depois é
que a vida me deu a resposta. A vida e o estudo.
Mas em
Manaus aprendi também a força da bondade e a alegria da amizade. Aprendi ainda
que o amor é possível.
Quero
contar um episódio. Devia andar pelos meus dez anos. Acordava às seis da manhã
e (com o caboclo Augusto, meu bom irmão-de-criação) descia até a beira-do-rio,
a recolher a lenha para o fogão de casa. Voltava e ia regar as plantas do jardim
de minha Mãe, quem sempre me recomendava especial carinho para com as suas
begônias. Terminava essa tarefa e saía correndo à esquina da José Paranaguá, em
busca do Jornal do Commercio para o meu Pai. Regressava, meio correndo, tomava
o meu banho, vestia o uniforme escolar, tomava o meu café com macaxeira cozida
(bom mesmo era quando parava na porta de casa bem cedinho o vendedor de cuscuz
de milho) e então saíamos, com a mama Maria Julia, para as aulas. Era esse o
programa matinal de cada dia.
Pois
bem. Um dia, fui buscar o jornal e o jornaleiro ainda não chegara. Não o
esperei, o meu tempo era contado. Cheguei em casa sem o jornal e dei o motivo.
Meu pai, homem de gênio severo, de rompantes ásperos, duvidou de mim: ergueu-se
raivoso e me bateu, forte, em pleno rosto. A injustiça me doeu mais do que o
golpe. Sentado numa cadeira de balanço, um varão muito bom e muito digno assistiu aquela
cena. Era o meu avô paterno Gaudêncio José Thiago de Mello, que vivia lá na
várzea de Barreirinha e vinha uma vez por ano a Manaus. Meu avô Gaudêncio
levantou-se, lento e alto, e com a sua mão solidária pousada no meu ombro,
disse a meu pai estas palavras que nunca mais esqueci: – Pedro, se você acha
que deve castigar o seu filho, castigue. Mas castigue com amor.
Quem
quiser encontrar aqui a história da capital do Amazonas está perdendo tempo.
Feche o livro e vá às bibliotecas, onde encontrará o trabalho de historiadores
que informam, com apoio em papel e palavras antigas, como a cidade nasceu e
cresceu, desde os idos da metade do século XVII, a sua vida começando ao pé do
Forte de São José da Barra do Rio Negro, com aquela bonita história de amor do
militar português Guilherme Valente, que inaugurou ardentemente a nossa mistura
de sangues, casando-se com a filha de um tuchaua baré.
Não,
não feche o livro. Em algum canto desta crônica – canto de rua ou cântico de
roda – o leitor quem sabe pode achar um pouco da luz, ou mesmo da sombra, de
que, sem se dar conta, andam carecidos os atuais moradores da cidade, a quem,
ao fim das contas, estas páginas se encaminham. De resto, vale a pena olhar,
devagarinho, as fotografias, mordidas ou afagadas pelo tempo: há coisas que só
elas sabem contar.
Não
consultei arquivos e muito pouco me vali de palavras impressas. Apenas ouvi,
aticei fogueiras, revolvi águas paradas de fundo de açude. Conversei com gente
que viveu e gosta de lembrar, porque gostou de viver, o tempo da Manaus que se
conta. Aqui prevalecem as criaturas, participando da vida da cidade.
Texto
cuja matéria-prima é a memória, ele não se vale apenas da minha, mas da memória
de antigos companheiros de estudo ou de estrada, de rio e de rua, de canoa e de
canção. Vários bem mais vividos e mais sábios, da geração de meus pais. Nenhum
se fez de rogado. E mais de um se espantou, ao cabo da conversa, ao descobrir
acesas as virtudes de sua memória, tanto tempo empoeirada pelo afã de ganhar
dinheiro, que atualmente toma conta da cidade.
Advirto
que aqui não entra nem sombra de sentimento saudosista. Quem me conhece, de
conversa ou de leitura, sabe que a minha preocupação maior, e também a minha
esperança mais pelejada, está no futuro. Sou um caboclo sofrido, mas cheio de
alegria, que procura fazer a sua parte, ajudar com o seu barro, na construção
de uma vida que deve e pode ser melhor aqui neste chão, onde – apesar de todas
as ferocidades cometidas pela cegueira dos donos do mundo – ainda creio que se
erguerá uma sociedade fraterna.
Trabalhei
com os olhos abertos da memória, com substância que faz parte do presente. Como
todo mundo sabe, o futuro começa a cada manhã que nasce, mas tem as suas
raízes, das quais jamais se desgarra, no âmago da matéria ardente, mesmo
revestida de cinza, a que chamamos passado.
Reconheço
que não gosto de frequentar quem só vive voltando para o tempo que já foi
vivido e se agarra no que ele teve de lindo – embora haja quem prefira ficar
enrolado no que sobrou de ruim e apodrecido. É atitude de quem tem medo ou
desgosto dos dias de agora, da vida que está aí, na porta e no peito. Ou de
quem teme os dias que virão, sentimento que compreendo nos que envelhecem se
sabendo desamparados por um sistema social cruel. Seja como for, é sempre uma
forma de escapismo, que acaba por adoecer o próprio gosto da vida, que se quer
participante e repartida.
Nem
por isso escondo o prazer imenso com que eu mesmo relembro ou escuto as pessoas
que sabem, por talento, relembrar as boas coisas idas e vividas, os
acontecimentos que, marcados por imperecíveis sinais da condição humana, se
fizeram memoráveis. Acho até que nada mais saudável: uma forma de unir os
pedaços do tempo que a cada instante se parte e se triparte, e recompô-los como
quem dá um jeito novo a uma flor que nunca morre.
Quando
me demoro um tempo grande lá na minha floresta de Barreirinha, ao chegar a
Manaus morro de medo de encontrar a Praça do Ginásio (sempre a chamei assim,
embora outros a digam da Polícia) transformada em curral de veículos. Ou que
tenham derrubado o seu maravilhoso coreto, para colocar em seu lugar um imenso
Boeing de uma companhia aérea, à maneira do que fizeram lá na Praça da Saudade,
na qual, suponho que por falta de outro lugar na cidade, chegaram ao extremo de
construir um edifício. A insensatez se agrava quando se sabe que o prédio abriga
órgãos oficiais destinados a cuidar de assuntos da cultura amazonense. Um
paradoxo perverso. Salvo melhor juízo.
Manaus
modificou-se. Quer dizer, mudou mas ficou, para continuar. É o progresso e – o
sambista já ensinou – o progresso é natural. O que não é progresso e muito
menos pode ser natural é – só para dar um exemplo – o desaparecimento
inaceitável da antiga praça da estação dos bondes, chamada Oswaldo Cruz, que se
abria ao povo ali em frente ao prédio da Manaus Tramways. Era um dos lugares
mais lindos e agradáveis desta cidade. Pois bem: foi impiedosamente arrasada,
árvore por árvore, pedra por pedra, planta por planta. Não lhe deixaram nem
vestígios. Só para dar lugar a um horrível e sujo estacionamento de automóveis.
Uma estupidez cultural. Salvo, repito, melhor juízo.
Sucede
que o livro leva, além do juízo, o olho e o coração do autor. Não tenho,
todavia, o intuito de comprovar nada. Nem mesmo que antigamente a qualidade da
vida era melhor. Essa constatação, se houver, caberá ao leitor, a quem se deixa
o trabalho de tirar as suas conclusões.
(Do
livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes
Ltda., em 1984)
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