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quinta-feira, junho 06, 2019

Relembrando as boas coisas idas e vividas



Por Thiago de Mello

Adolescente, sentado sozinho no entardecer da beira do igarapé de Manaus, eu ficava cismando, olhando os catraieiros transportando lá para o lado dos Educandos os operários da serraria. E me perguntava por que é que havia tanta diferença na vida das pessoas. Por que havia gente tão rica, que morava em palacetes e tinha de tudo, enquanto tanta gente, que trabalhava o dia inteiro, vivia pobremente em casas cheias só de redes e crianças? Por que – eu me indagava – minha linda Mãe precisava se levantar ali pelas cinco horas da manhã, ainda noite escura, e preparar pastéis e refrescos para serem vendidos e com esse dinheirinho ajudar meu pai nas despesas da comida e da educação dos filhos? A vida, só depois é que a vida me deu a resposta. A vida e o estudo.

Mas em Manaus aprendi também a força da bondade e a alegria da amizade. Aprendi ainda que o amor é possível.

Quero contar um episódio. Devia andar pelos meus dez anos. Acordava às seis da manhã e (com o caboclo Augusto, meu bom irmão-de-criação) descia até a beira-do-rio, a recolher a lenha para o fogão de casa. Voltava e ia regar as plantas do jardim de minha Mãe, quem sempre me recomendava especial carinho para com as suas begônias. Terminava essa tarefa e saía correndo à esquina da José Paranaguá, em busca do Jornal do Commercio para o meu Pai. Regressava, meio correndo, tomava o meu banho, vestia o uniforme escolar, tomava o meu café com macaxeira cozida (bom mesmo era quando parava na porta de casa bem cedinho o vendedor de cuscuz de milho) e então saíamos, com a mama Maria Julia, para as aulas. Era esse o programa matinal de cada dia.

Pois bem. Um dia, fui buscar o jornal e o jornaleiro ainda não chegara. Não o esperei, o meu tempo era contado. Cheguei em casa sem o jornal e dei o motivo. Meu pai, homem de gênio severo, de rompantes ásperos, duvidou de mim: ergueu-se raivoso e me bateu, forte, em pleno rosto. A injustiça me doeu mais do que o golpe. Sentado numa cadeira de balanço, um varão muito bom e muito digno assistiu aquela cena. Era o meu avô paterno Gaudêncio José Thiago de Mello, que vivia lá na várzea de Barreirinha e vinha uma vez por ano a Manaus. Meu avô Gaudêncio levantou-se, lento e alto, e com a sua mão solidária pousada no meu ombro, disse a meu pai estas palavras que nunca mais esqueci: – Pedro, se você acha que deve castigar o seu filho, castigue. Mas castigue com amor.

Quem quiser encontrar aqui a história da capital do Amazonas está perdendo tempo. Feche o livro e vá às bibliotecas, onde encontrará o trabalho de historiadores que informam, com apoio em papel e palavras antigas, como a cidade nasceu e cresceu, desde os idos da metade do século XVII, a sua vida começando ao pé do Forte de São José da Barra do Rio Negro, com aquela bonita história de amor do militar português Guilherme Valente, que inaugurou ardentemente a nossa mistura de sangues, casando-se com a filha de um tuchaua baré.

Não, não feche o livro. Em algum canto desta crônica – canto de rua ou cântico de roda – o leitor quem sabe pode achar um pouco da luz, ou mesmo da sombra, de que, sem se dar conta, andam carecidos os atuais moradores da cidade, a quem, ao fim das contas, estas páginas se encaminham. De resto, vale a pena olhar, devagarinho, as fotografias, mordidas ou afagadas pelo tempo: há coisas que só elas sabem contar.

Não consultei arquivos e muito pouco me vali de palavras impressas. Apenas ouvi, aticei fogueiras, revolvi águas paradas de fundo de açude. Conversei com gente que viveu e gosta de lembrar, porque gostou de viver, o tempo da Manaus que se conta. Aqui prevalecem as criaturas, participando da vida da cidade.

Texto cuja matéria-prima é a memória, ele não se vale apenas da minha, mas da memória de antigos companheiros de estudo ou de estrada, de rio e de rua, de canoa e de canção. Vários bem mais vividos e mais sábios, da geração de meus pais. Nenhum se fez de rogado. E mais de um se espantou, ao cabo da conversa, ao descobrir acesas as virtudes de sua memória, tanto tempo empoeirada pelo afã de ganhar dinheiro, que atualmente toma conta da cidade.

Advirto que aqui não entra nem sombra de sentimento saudosista. Quem me conhece, de conversa ou de leitura, sabe que a minha preocupação maior, e também a minha esperança mais pelejada, está no futuro. Sou um caboclo sofrido, mas cheio de alegria, que procura fazer a sua parte, ajudar com o seu barro, na construção de uma vida que deve e pode ser melhor aqui neste chão, onde – apesar de todas as ferocidades cometidas pela cegueira dos donos do mundo – ainda creio que se erguerá uma sociedade fraterna.

Trabalhei com os olhos abertos da memória, com substância que faz parte do presente. Como todo mundo sabe, o futuro começa a cada manhã que nasce, mas tem as suas raízes, das quais jamais se desgarra, no âmago da matéria ardente, mesmo revestida de cinza, a que chamamos passado.

Reconheço que não gosto de frequentar quem só vive voltando para o tempo que já foi vivido e se agarra no que ele teve de lindo – embora haja quem prefira ficar enrolado no que sobrou de ruim e apodrecido. É atitude de quem tem medo ou desgosto dos dias de agora, da vida que está aí, na porta e no peito. Ou de quem teme os dias que virão, sentimento que compreendo nos que envelhecem se sabendo desamparados por um sistema social cruel. Seja como for, é sempre uma forma de escapismo, que acaba por adoecer o próprio gosto da vida, que se quer participante e repartida.

Nem por isso escondo o prazer imenso com que eu mesmo relembro ou escuto as pessoas que sabem, por talento, relembrar as boas coisas idas e vividas, os acontecimentos que, marcados por imperecíveis sinais da condição humana, se fizeram memoráveis. Acho até que nada mais saudável: uma forma de unir os pedaços do tempo que a cada instante se parte e se triparte, e recompô-los como quem dá um jeito novo a uma flor que nunca morre.

Quando me demoro um tempo grande lá na minha floresta de Barreirinha, ao chegar a Manaus morro de medo de encontrar a Praça do Ginásio (sempre a chamei assim, embora outros a digam da Polícia) transformada em curral de veículos. Ou que tenham derrubado o seu maravilhoso coreto, para colocar em seu lugar um imenso Boeing de uma companhia aérea, à maneira do que fizeram lá na Praça da Saudade, na qual, suponho que por falta de outro lugar na cidade, chegaram ao extremo de construir um edifício. A insensatez se agrava quando se sabe que o prédio abriga órgãos oficiais destinados a cuidar de assuntos da cultura amazonense. Um paradoxo perverso. Salvo melhor juízo.

Manaus modificou-se. Quer dizer, mudou mas ficou, para continuar. É o progresso e – o sambista já ensinou – o progresso é natural. O que não é progresso e muito menos pode ser natural é – só para dar um exemplo – o desaparecimento inaceitável da antiga praça da estação dos bondes, chamada Oswaldo Cruz, que se abria ao povo ali em frente ao prédio da Manaus Tramways. Era um dos lugares mais lindos e agradáveis desta cidade. Pois bem: foi impiedosamente arrasada, árvore por árvore, pedra por pedra, planta por planta. Não lhe deixaram nem vestígios. Só para dar lugar a um horrível e sujo estacionamento de automóveis. Uma estupidez cultural. Salvo, repito, melhor juízo.

Sucede que o livro leva, além do juízo, o olho e o coração do autor. Não tenho, todavia, o intuito de comprovar nada. Nem mesmo que antigamente a qualidade da vida era melhor. Essa constatação, se houver, caberá ao leitor, a quem se deixa o trabalho de tirar as suas conclusões.



(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)

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