Por
Thiago de Mello
Nasceu
num entardecer da primavera chilena de 1973, a envergonhada luz da Cordilheira
dos Andes banhando a Gran Avenida, no momento mesmo em que três militares
armados de metralhadoras me obrigaram a ajoelhar no chão. Mata aqui mismo? consultou
um dos soldados. Poucas horas antes eu assistira o fuzilamento de dois homens,
em plena calçada da avenida proletária, de um deles jamais esquecerei o olhar.
Durante
o silêncio – frações de segundo, quero dizer, uma eternidade – entre a pergunta
e resposta do sargento, dezenas, centenas, não sei quantas cenas, nítidas e
vivas, me passaram, sucessivas e fugazes, pela memória; muitas delas pertenciam
à minha infância: minha Mãe dona Maria lavando roupa sentada no pátio de
cimento da nossa casa de Vila Pedrosa; a minha aflição, salvo de um afogamento
por meu pai, puxado de dentro do rio pelos cabelos; um negro enorme se lançando
às águas para salvar o Gorayeb (não o Anísio, o menor, também aluno do
Ginásio), na beirada da serraria do Monte Cristo; eu subindo a ladeira da
Quintino Bocayuva com uma carrada de lenha na cabeça; eu com meu filho
Manuelzinho ainda menino brincando num carrossel armado na Praça do Ginásio.
Alguns
meses depois, já na Alemanha, decidi botar no papel aqueles e outros momentos
chilenos, sozinhos na madrugada do meu pequenino, mas tão confortável, quarto
da cidade universitária de Mainz. Foi quando me descobri ponderando sobre a
imensa importância de Manaus na minha vida, a propósito da qual eu jamais antes
de detivera, a seco e a frio, que é uma forma de dizer ardentemente. Nas cartas
para minha Mãe comecei a relembrar episódios e pessoas da minha distante Manaus
que, pelas notícias dos raros jornais que chegavam lá ao outro lado do mar, eu
já sabia em etapa de intensa transformação.
Certa
noite gelada de novembro de 1975, a meio da travessia da ponte sobre o Reno,
que liga Mainz a Wiesbaden (aristocrática cidade dos cassinos, onde Dostoyewski
recolheu a matéria-prima do seu livro O Jogador), parei para urinar. Água de
caboclo do Amazonas, falei sozinho em voz alta, para esse igarapé poluído. Mal
retomei a caminhada em direção à casa, tomei duas decisões: 1, quando puder
voltar ao Brasil, vou morar no Amazonas e 2, vou escrever um livro sobre a
Manaus da minha infância.
Na
mesma madrugada comuniquei a decisão em carta a mestre Nunes Pereira, de quem
até hoje guardo a resposta, celebrando menos os meus projetos do que a
circunstância em que os tomei, o jorro generoso caindo lá de cima da ponte no
meio da noite do inverno alemão.
Sucedeu
que coisa de um ano depois, certa amanhã de setembro, tomando um vinho branco
da Rheinstrass com o meu editor Hermann Schulz, na famosa feira anual de
livros, a Buchmesse, de Frankfurt, dele recebo a proposta para elaborar um
texto, aí por trinta páginas, para um livro a ser incluído numa série
intitulada Escritores Falam de Suas Cidades, que reunia depoimento de
romancistas, poetas, historiadores de muitos países.
Do
Brasil já contava com um belo texto de Jorge Amado sobre Salvador da Bahia. Queria
que eu contasse um pouco da história e da vida de Manaus. Aceitei, fui para
Lisboa, onde, ao pé da minha janela de Benfica, redigi um texto para alemães,
ou melhor, para europeus. Ao concluí-lo estava reforçada a minha decisão:
quando voltar para o Amazonas e reencontrar a minha cidade vou fazer o livro
que eu quero, do jeito que eu quero.
Pois
aqui está o livro.
Escrito
para os de casa.
É uma
demão que dou à roda, perra e vagarosa, que talvez tire um pouco a nossa cidade
do atoleiro do esquecimento de si mesma, em que foi caindo, empurrada – à
traição às vezes – pela incultura e o descaso.
Trata-se
de uma crônica simples, intimista, que pretende, guiada pelo alfabeto do amor e
da memória, trazer um testemunho da vida que em Manaus se levava ou do jeito de
viver que tinha a cidade, num breve e determinado período histórico, que
abrange duas décadas deste século, a de 30 e a de 40. Verdade que de vez em
quando penetra em acontecimentos dos anos 50, como, por exemplo, aliás
luminoso, a fundação do Clube da Madrugada, reunindo escritores e artistas
plásticos cuja sede é uma praça pública ou então recua a época dos 20, a década
da minha geração.
É
testemunho que de repente vira louvação, quando celebra costumes e práticas
sociais da cidade que foi o campo mágico da nossa meninice e do começo da nossa
mocidade.
(Do
livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes
Ltda., em 1984)
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