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quarta-feira, junho 05, 2019

Agora quero contar como é que o livro nasceu



Por Thiago de Mello

Nasceu num entardecer da primavera chilena de 1973, a envergonhada luz da Cordilheira dos Andes banhando a Gran Avenida, no momento mesmo em que três militares armados de metralhadoras me obrigaram a ajoelhar no chão. Mata aqui mismo? consultou um dos soldados. Poucas horas antes eu assistira o fuzilamento de dois homens, em plena calçada da avenida proletária, de um deles jamais esquecerei o olhar.

Durante o silêncio – frações de segundo, quero dizer, uma eternidade – entre a pergunta e resposta do sargento, dezenas, centenas, não sei quantas cenas, nítidas e vivas, me passaram, sucessivas e fugazes, pela memória; muitas delas pertenciam à minha infância: minha Mãe dona Maria lavando roupa sentada no pátio de cimento da nossa casa de Vila Pedrosa; a minha aflição, salvo de um afogamento por meu pai, puxado de dentro do rio pelos cabelos; um negro enorme se lançando às águas para salvar o Gorayeb (não o Anísio, o menor, também aluno do Ginásio), na beirada da serraria do Monte Cristo; eu subindo a ladeira da Quintino Bocayuva com uma carrada de lenha na cabeça; eu com meu filho Manuelzinho ainda menino brincando num carrossel armado na Praça do Ginásio.

Alguns meses depois, já na Alemanha, decidi botar no papel aqueles e outros momentos chilenos, sozinhos na madrugada do meu pequenino, mas tão confortável, quarto da cidade universitária de Mainz. Foi quando me descobri ponderando sobre a imensa importância de Manaus na minha vida, a propósito da qual eu jamais antes de detivera, a seco e a frio, que é uma forma de dizer ardentemente. Nas cartas para minha Mãe comecei a relembrar episódios e pessoas da minha distante Manaus que, pelas notícias dos raros jornais que chegavam lá ao outro lado do mar, eu já sabia em etapa de intensa transformação.

Certa noite gelada de novembro de 1975, a meio da travessia da ponte sobre o Reno, que liga Mainz a Wiesbaden (aristocrática cidade dos cassinos, onde Dostoyewski recolheu a matéria-prima do seu livro O Jogador), parei para urinar. Água de caboclo do Amazonas, falei sozinho em voz alta, para esse igarapé poluído. Mal retomei a caminhada em direção à casa, tomei duas decisões: 1, quando puder voltar ao Brasil, vou morar no Amazonas e 2, vou escrever um livro sobre a Manaus da minha infância.

Na mesma madrugada comuniquei a decisão em carta a mestre Nunes Pereira, de quem até hoje guardo a resposta, celebrando menos os meus projetos do que a circunstância em que os tomei, o jorro generoso caindo lá de cima da ponte no meio da noite do inverno alemão.

Sucedeu que coisa de um ano depois, certa amanhã de setembro, tomando um vinho branco da Rheinstrass com o meu editor Hermann Schulz, na famosa feira anual de livros, a Buchmesse, de Frankfurt, dele recebo a proposta para elaborar um texto, aí por trinta páginas, para um livro a ser incluído numa série intitulada Escritores Falam de Suas Cidades, que reunia depoimento de romancistas, poetas, historiadores de muitos países. 

Do Brasil já contava com um belo texto de Jorge Amado sobre Salvador da Bahia. Queria que eu contasse um pouco da história e da vida de Manaus. Aceitei, fui para Lisboa, onde, ao pé da minha janela de Benfica, redigi um texto para alemães, ou melhor, para europeus. Ao concluí-lo estava reforçada a minha decisão: quando voltar para o Amazonas e reencontrar a minha cidade vou fazer o livro que eu quero, do jeito que eu quero.

Pois aqui está o livro.

Escrito para os de casa.

É uma demão que dou à roda, perra e vagarosa, que talvez tire um pouco a nossa cidade do atoleiro do esquecimento de si mesma, em que foi caindo, empurrada – à traição às vezes – pela incultura e o descaso.

Trata-se de uma crônica simples, intimista, que pretende, guiada pelo alfabeto do amor e da memória, trazer um testemunho da vida que em Manaus se levava ou do jeito de viver que tinha a cidade, num breve e determinado período histórico, que abrange duas décadas deste século, a de 30 e a de 40. Verdade que de vez em quando penetra em acontecimentos dos anos 50, como, por exemplo, aliás luminoso, a fundação do Clube da Madrugada, reunindo escritores e artistas plásticos cuja sede é uma praça pública ou então recua a época dos 20, a década da minha geração.

É testemunho que de repente vira louvação, quando celebra costumes e práticas sociais da cidade que foi o campo mágico da nossa meninice e do começo da nossa mocidade.



(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)

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