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quinta-feira, junho 13, 2019

ABCedário íntimo para uso público (1)



Por Thiago de Mello
Este abecedário íntimo
só pode ser aberto pelo A de água. Manaus é uma cidade que nasce e vive da água, por cujos caminhos lhe chegaram os primeiros habitantes indígenas com as suas igarités e aportaram as embarcações dos colonizadores europeus. Água dos seus igarapés antigos que desaparecem. Dos igarapés que ainda cortam, mas não separam, senão unem, as diferentes partes da cidade. Igarapé de Manaus, igarapé dos Quarenta, igarapé do São Raimundo, igarapé do Tarumãzinho. Mas sobretudo A das águas desse poderoso afluente do Amazonas que banha a nossa cidade, à cuja beira ela nasceu e ao qual já os índios, seus mais antigos navegantes, deram o nome de Rio Negro.
A de Repartição das Águas,
nome popular do Serviço de Água e Esgotos, instalados na cidade em 1907 pelos ingleses da Manaus Improvement Limited. Serviço público de interesse geral, pelo benefício que traz à vida de cada cidadão, guarda, porém, na memória de minha adolescência, um lugar privilegiado. Cresci na convivência de famílias de funcionários das Águas, a cujo serviço meu pai deu a maior parte de sua vida, primeiro como almoxarife, depois como tesoureiro, até que se aposentou. Visitava com frequência a Repartição, e gostava quando os funcionários conversavam comigo, o Manuel Garcia, irmão maior do meu colega Agobar, o velho Franco de Sá, o Sebastião Saint-Clair, famoso inventador de histórias, o gordo e baixote diretor, o dr. Ferreirinha. Gostava, no entanto, muito mais era de acompanhar o trabalho dos operários, os encanadores da rua, os consertadores de torneiras, com os seus maçaricos mágicos.
A cidade, justiça seja feita, era bem servida de água encanada, cuja rede se estendia aos bairros humildes. A Usina do Bombeamento, lá na ponta do Ismael (as máquinas desativadas pela moderna Cosama ainda lá se encontram; apelo aos dirigentes da empresa que não lhe permitam o mesmo vergonhoso destino das peças da Usina de Esgotos; por que não conservá-las, colocando o digno casarão a serviço da memória da cidade?), só não dava conta do recado quando as águas do rio baixavam muito, as bombas gorgolejavam vácuos, a cidade abria o berreiro. Aí por 42 partiu-se uma peça, válvula de função fundamental no conjunto da engrenagem, cuja reposição demorada deixou a cidade sem água um bom par de dias, para agonia dos técnicos e dirigentes que trabalharam dia e noite para reparar o defeito. Guardo a dedicação e a seriedade daqueles homens suados e sujos de óleo, lidando com a ferragens, uma tarde que, junto a meu pai, fomos levados pelo diretor à Ponta do Ismael. Foi essa, aliás, uma das ocasiões em que mais brilhou a extraordinária imaginação do Saint-Clair, personagem que tem verbete garantido neste abecedário.
Como a água, a luz de Manaus teve boa qualidade durante muitos anos, até que o descaso dos concessionários ingleses foi gerando deficiências técnicas, agravadas com a crise do fornecimento da lenha para as caldeiras da usina, já que os lenhadores queriam, que coisa terrível, que os industriais lhe pagassem um preço mais justo. Nos últimos anos 40, a Manaus noturna chegou a viver quase somente à luz de candeeiros a querosene e de velas de estearina.
A de Chico das Águas,
como ficou conhecido e bem-querido na cidade o português Francisco Pereira Delgado, pai de duas filhas, uma delas, dona Margarida Delgado, seguramente uma das mulheres mais bonitas e de fascinante personalidade daqueles anos, das primeiras e possuir e a dirigir automóvel em Manaus, casada com o comerciante português Nunes Thomaz, de quem se divorciou para viver uma belíssima história de amor, cujo relato, com permissão dela, ainda hei de fazer. O Chico das Águas era torneiro-mecânico, formado em Lisboa, veio para Manaus a chamado da firma Morton e Teixeira de Souza, em fins do século passado. 
Foi ele quem dirigiu a montagem da rede de tubulação dos serviços de esgotos da cidade, o sistema de funcionamento de água do chafariz da Praça de São Sebastião, participou dos serviços de canalização do Teatro Amazonas e da instalação do reservatório de água do Mocó. Não era engenheiro. Talvez por isso o seu nome pouco seja relembrado. Mas em algumas dessas tampas redondas de ferro das bocas da antiga rede de esgoto, como numa que se encontra ainda ali em frente ao Trapiche Teixeira de Souza, podem ser vistas as suas iniciais, em alto relevo: F.P.D. Os da época se lembram bem daquele português alto, forte, de olhar firme e que sempre aparecia trajado no rigor da moda: o Chico das Águas.
A do seu Alonso,
o escafandrista das Águas. Era um espanhol sanguíneo e forte, orgulhoso do seu ofício. Vi e nunca mais esqueci o seu Alonso mergulhar, depois de ajustar na cabeça o redondo capacete metálico com viseira de vidro, nas águas das proximidades do cais. Permaneceu submerso um tempão, alimentado pelo oxigênio de uma máquina primitiva, girada por companheiros no interior de um batelão no qual achei de embarcar no instante da saída na beira do Almoxarifado. Quando (parece que foi ontem mas já faz é muito tempo) vi a roupa dos astronautas descendo na lua, imediatamente me lembrei do seu Alonso subindo do fundo do rio Negro.
A da arquitetura de Manaus
Guardo até hoje a alegria, à qual sei dar o devido valor, da descoberta que fiz, nos anos quarenta, da beleza da arquitetura de Manaus, quero dizer, a nossa legítima arquitetura, autenticamente amazonense, nascida da sabedoria e da cultura popular. Porque, como todo mundo sabe, as grandes residências e edifícios públicos erguidos em Manaus a partir do início do século, tanto os casarões ajanelados com pedra de cantaria como as casinhas de alvenaria de rés de chão, de portas com bandeiras envidraçada e colorida, todas eram (ou ainda são, as que não foram derrubadas) de bom e fino risco europeu. 
Os poucos estudiosos da nossa cidade, inclusive os que aprenderam com amor as suas virtudes antigas, geralmente se referem, sem disfarçar um certo orgulho, aos estilos das construções aqui iniciadas nos últimos anos do século XIX e nos começos deste século (cabe chamar a atenção, de passagem, para o grande número de boas casas construídas em 1910, justamente o ano em que a produção da nossa borracha atingiu o mais alto volume). 
São gabados o estilo neo-clássico, o sobradão colonial português, as extravagâncias do art-nouveau, certas residências que o gosto da época chamava de palacetes, que chegavam a ser cópias quase fiéis de pequenos “hotéis” franceses ou de “vilas” italianadas, sem disfarçar a satisfação do registro da origem do material de construção, quase todo vindo das estranjas: as pedras, os mármores, as telhas, as vidraças, os azulejos, os gradis, as rosáceas coloridas. É o louvor ao colonizador, o reconhecimento, entre aparvalhado e submisso, do colonizado.
Para não dar nenhum lugar a desentendidos e muito menos favorecer campo à polêmica (para a qual ainda não ganhei e acho que não ganho mais o gosto em que, desafortunadamente, vejo alguns companheiros perder tempo e quase sempre em torno de questão tão irrelevantes) – quero ser o primeiro a declarar a delícia com que muita vez me detenho, em minhas caminhadas pelas ruas antigas de Manaus, para contemplar a beleza de linhas e a competência do trabalho humano que perduram em tantas das moradas que os antigos souberam edificar, quase todas elas a cargo de mestres-de-obra vindos de Portugal.
Mas coisa de que Manaus pode realmente se orgulhar, como obra nascida do talento e bom-saber do seu povo, é de sua arquitetura popular. Nos bairros pobres, na periferia da cidade que se espalha, nos barracos de beira de igarapé, é que estão as casas autenticamente amazonense, feitas para atender a exigências estéticas intuitivas, mas também para que sirvam da melhor maneira às suas funções de moradia humana, de gente que tem um determinado jeito de viver, ainda que mal versados em matéria teórica de ecologia. 

São casas simples, quase singelas. Na maioria de madeira, chão de itauba ou sucupira. Portas e janelas admiravelmente bem dispostas, muitas preferindo o frontão só de janelas, deixando lugar adequado para a porta lateral, que se abre sem trancas para as vastas varandas, quase todas protegidas por treliças de madeiras, cujos desenhos são invenções caboclas, já faz tempo deixaram de copiar as treliças arábicas tradicionais. Os nossos sobradinhos de madeira são um primor de criação arquitetônica, cujas fachadas resumem verdadeiras lições de teorias de conjugação e equilíbrio de cores. 

É preciso reparar na delicadeza com que descem as linhas das meias ou das duas águas de seus telhados e no esmero da junção das tábuas de suas paredes. Tive recentemente a emoção de ver e rever um filme documentário deste admirável artista amazonense que é Roberto Evangelista sobre a arquitetura popular de Manaus, com o qual ele quis prestar a sua homenagem ao grande Mondrian. É uma pequena obra-prima. (Todos sabemos que são um horror, em matéria de arquitetura, as casas que compõem os “conjuntos” habitacionais de agora).


(Do livro “Manaus, Amor e Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)

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