Por Thiago de Mello
Este
abecedário íntimo
só pode ser aberto pelo A de água.
Manaus é uma cidade que nasce e vive da água, por cujos caminhos lhe chegaram
os primeiros habitantes indígenas com as suas igarités e aportaram as
embarcações dos colonizadores europeus. Água dos seus igarapés antigos que
desaparecem. Dos igarapés que ainda cortam, mas não separam, senão unem, as
diferentes partes da cidade. Igarapé de Manaus, igarapé dos Quarenta, igarapé
do São Raimundo, igarapé do Tarumãzinho. Mas sobretudo A das águas desse
poderoso afluente do Amazonas que banha a nossa cidade, à cuja beira ela nasceu
e ao qual já os índios, seus mais antigos navegantes, deram o nome de Rio
Negro.
A
de Repartição das Águas,
nome popular do Serviço de
Água e Esgotos, instalados na cidade em 1907 pelos ingleses da Manaus
Improvement Limited. Serviço público de interesse geral, pelo benefício que
traz à vida de cada cidadão, guarda, porém, na memória de minha adolescência,
um lugar privilegiado. Cresci na convivência de famílias de funcionários das
Águas, a cujo serviço meu pai deu a maior parte de sua vida, primeiro como
almoxarife, depois como tesoureiro, até que se aposentou. Visitava com frequência
a Repartição, e gostava quando os funcionários conversavam comigo, o Manuel
Garcia, irmão maior do meu colega Agobar, o velho Franco de Sá, o Sebastião
Saint-Clair, famoso inventador de histórias, o gordo e baixote diretor, o dr.
Ferreirinha. Gostava, no entanto, muito mais era de acompanhar o trabalho dos
operários, os encanadores da rua, os consertadores de torneiras, com os seus
maçaricos mágicos.
A cidade, justiça seja feita,
era bem servida de água encanada, cuja rede se estendia aos bairros humildes. A
Usina do Bombeamento, lá na ponta do Ismael (as máquinas desativadas pela
moderna Cosama ainda lá se encontram; apelo aos dirigentes da empresa que não
lhe permitam o mesmo vergonhoso destino das peças da Usina de Esgotos; por que
não conservá-las, colocando o digno casarão a serviço da memória da cidade?),
só não dava conta do recado quando as águas do rio baixavam muito, as bombas
gorgolejavam vácuos, a cidade abria o berreiro. Aí por 42 partiu-se uma peça,
válvula de função fundamental no conjunto da engrenagem, cuja reposição
demorada deixou a cidade sem água um bom par de dias, para agonia dos técnicos e
dirigentes que trabalharam dia e noite para reparar o defeito. Guardo a
dedicação e a seriedade daqueles homens suados e sujos de óleo, lidando com a
ferragens, uma tarde que, junto a meu pai, fomos levados pelo diretor à Ponta
do Ismael. Foi essa, aliás, uma das ocasiões em que mais brilhou a
extraordinária imaginação do Saint-Clair, personagem que tem verbete garantido
neste abecedário.
Como a água, a luz de Manaus
teve boa qualidade durante muitos anos, até que o descaso dos concessionários
ingleses foi gerando deficiências técnicas, agravadas com a crise do
fornecimento da lenha para as caldeiras da usina, já que os lenhadores queriam,
que coisa terrível, que os industriais lhe pagassem um preço mais justo. Nos
últimos anos 40, a Manaus noturna chegou a viver quase somente à luz de
candeeiros a querosene e de velas de estearina.
A
de Chico das Águas,
como ficou conhecido e
bem-querido na cidade o português Francisco Pereira Delgado, pai de duas
filhas, uma delas, dona Margarida Delgado, seguramente uma das mulheres mais
bonitas e de fascinante personalidade daqueles anos, das primeiras e possuir e
a dirigir automóvel em Manaus, casada com o comerciante português Nunes Thomaz,
de quem se divorciou para viver uma belíssima história de amor, cujo relato,
com permissão dela, ainda hei de fazer. O Chico das Águas era
torneiro-mecânico, formado em Lisboa, veio para Manaus a chamado da firma
Morton e Teixeira de Souza, em fins do século passado.
Foi ele quem dirigiu a
montagem da rede de tubulação dos serviços de esgotos da cidade, o sistema de
funcionamento de água do chafariz da Praça de São Sebastião, participou dos
serviços de canalização do Teatro Amazonas e da instalação do reservatório de
água do Mocó. Não era engenheiro. Talvez por isso o seu nome pouco seja
relembrado. Mas em algumas dessas tampas redondas de ferro das bocas da antiga
rede de esgoto, como numa que se encontra ainda ali em frente ao Trapiche
Teixeira de Souza, podem ser vistas as suas iniciais, em alto relevo: F.P.D. Os
da época se lembram bem daquele português alto, forte, de olhar firme e que
sempre aparecia trajado no rigor da moda: o Chico das Águas.
A
do seu Alonso,
o escafandrista das Águas. Era
um espanhol sanguíneo e forte, orgulhoso do seu ofício. Vi e nunca mais esqueci
o seu Alonso mergulhar, depois de ajustar na cabeça o redondo capacete metálico
com viseira de vidro, nas águas das proximidades do cais. Permaneceu submerso
um tempão, alimentado pelo oxigênio de uma máquina primitiva, girada por
companheiros no interior de um batelão no qual achei de embarcar no instante da
saída na beira do Almoxarifado. Quando (parece que foi ontem mas já faz é muito
tempo) vi a roupa dos astronautas descendo na lua, imediatamente me lembrei do
seu Alonso subindo do fundo do rio Negro.
A
da arquitetura de Manaus
Guardo até hoje a alegria, à
qual sei dar o devido valor, da descoberta que fiz, nos anos quarenta, da
beleza da arquitetura de Manaus, quero dizer, a nossa legítima arquitetura,
autenticamente amazonense, nascida da sabedoria e da cultura popular. Porque,
como todo mundo sabe, as grandes residências e edifícios públicos erguidos em
Manaus a partir do início do século, tanto os casarões ajanelados com pedra de
cantaria como as casinhas de alvenaria de rés de chão, de portas com bandeiras
envidraçada e colorida, todas eram (ou ainda são, as que não foram derrubadas)
de bom e fino risco europeu.
Os poucos estudiosos da nossa
cidade, inclusive os que aprenderam com amor as suas virtudes antigas,
geralmente se referem, sem disfarçar um certo orgulho, aos estilos das
construções aqui iniciadas nos últimos anos do século XIX e nos começos deste
século (cabe chamar a atenção, de passagem, para o grande número de boas casas
construídas em 1910, justamente o ano em que a produção da nossa borracha
atingiu o mais alto volume).
São gabados o estilo
neo-clássico, o sobradão colonial português, as extravagâncias do art-nouveau,
certas residências que o gosto da época chamava de palacetes, que chegavam a
ser cópias quase fiéis de pequenos “hotéis” franceses ou de “vilas”
italianadas, sem disfarçar a satisfação do registro da origem do material de
construção, quase todo vindo das estranjas: as pedras, os mármores, as telhas,
as vidraças, os azulejos, os gradis, as rosáceas coloridas. É o louvor ao
colonizador, o reconhecimento, entre aparvalhado e submisso, do colonizado.
Para não dar nenhum lugar a
desentendidos e muito menos favorecer campo à polêmica (para a qual ainda não
ganhei e acho que não ganho mais o gosto em que, desafortunadamente, vejo
alguns companheiros perder tempo e quase sempre em torno de questão tão irrelevantes)
– quero ser o primeiro a declarar a delícia com que muita vez me detenho, em
minhas caminhadas pelas ruas antigas de Manaus, para contemplar a beleza de
linhas e a competência do trabalho humano que perduram em tantas das moradas
que os antigos souberam edificar, quase todas elas a cargo de mestres-de-obra
vindos de Portugal.
Mas coisa de que Manaus pode
realmente se orgulhar, como obra nascida do talento e bom-saber do seu povo, é
de sua arquitetura popular. Nos bairros pobres, na periferia da cidade que se
espalha, nos barracos de beira de igarapé, é que estão as casas autenticamente
amazonense, feitas para atender a exigências estéticas intuitivas, mas também
para que sirvam da melhor maneira às suas funções de moradia humana, de gente
que tem um determinado jeito de viver, ainda que mal versados em matéria
teórica de ecologia.
São casas simples, quase singelas. Na maioria de madeira, chão de itauba ou sucupira. Portas e janelas admiravelmente bem dispostas, muitas preferindo o frontão só de janelas, deixando lugar adequado para a porta lateral, que se abre sem trancas para as vastas varandas, quase todas protegidas por treliças de madeiras, cujos desenhos são invenções caboclas, já faz tempo deixaram de copiar as treliças arábicas tradicionais. Os nossos sobradinhos de madeira são um primor de criação arquitetônica, cujas fachadas resumem verdadeiras lições de teorias de conjugação e equilíbrio de cores.
É preciso reparar na delicadeza com que descem as linhas das meias ou das duas águas de seus telhados e no esmero da junção das tábuas de suas paredes. Tive recentemente a emoção de ver e rever um filme documentário deste admirável artista amazonense que é Roberto Evangelista sobre a arquitetura popular de Manaus, com o qual ele quis prestar a sua homenagem ao grande Mondrian. É uma pequena obra-prima. (Todos sabemos que são um horror, em matéria de arquitetura, as casas que compõem os “conjuntos” habitacionais de agora).
São casas simples, quase singelas. Na maioria de madeira, chão de itauba ou sucupira. Portas e janelas admiravelmente bem dispostas, muitas preferindo o frontão só de janelas, deixando lugar adequado para a porta lateral, que se abre sem trancas para as vastas varandas, quase todas protegidas por treliças de madeiras, cujos desenhos são invenções caboclas, já faz tempo deixaram de copiar as treliças arábicas tradicionais. Os nossos sobradinhos de madeira são um primor de criação arquitetônica, cujas fachadas resumem verdadeiras lições de teorias de conjugação e equilíbrio de cores.
É preciso reparar na delicadeza com que descem as linhas das meias ou das duas águas de seus telhados e no esmero da junção das tábuas de suas paredes. Tive recentemente a emoção de ver e rever um filme documentário deste admirável artista amazonense que é Roberto Evangelista sobre a arquitetura popular de Manaus, com o qual ele quis prestar a sua homenagem ao grande Mondrian. É uma pequena obra-prima. (Todos sabemos que são um horror, em matéria de arquitetura, as casas que compõem os “conjuntos” habitacionais de agora).
(Do livro “Manaus, Amor e
Memória”, publicado pela Philobiblion Livros e Artes Ltda., em 1984)
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