No tempo da Guerra Fria haviam as fronteiras ideológicas que
atravessavam países e continentes, separando o “mundo livre” do outro e dos
simpatizantes do outro. Foi para defender a fronteira ideológica na América
Latina que a política de contra-insurgência americana patrocinou os nossos
governos militares, treinou os nossos torturadores e zelou pelas nossas
respectivas seguranças nacionais.
Se apoiou tiranos, pelo menos eram “tiranos do nosso lado”,
como os descreveu Jeanne Fitzpatrick, ex-delegada americana na ONU e na época a
Passionaria da direita deles. A não ser que visitasse um país comunista ou
frequentasse algum aparelho clandestino, você nunca cruzava a fronteira ideológica. Sequer
a via. Independente das suas simpatias ou eventuais rebeldias, vivia dentro de
um perímetro comum delimitado e firme.
Quando a Guerra Fria amainou e as fronteiras ideológicas
começaram a desaparecer, nos vimos livres dos generais, mas dentro de outra
macrogeografia, a das fronteiras econômicas. Estas são visíveis demais. Separam
bairros, dividem ruas, são fluidas e ondulantes – e você as cruza todos os
dias. No trajeto entre seu condomínio fechado e seu escritório, ar-condicionado
dentro do seu carro importado, você a cruza mais de uma vez. Passa por
flóridas, suíças, bangladeshes, algumas bolívias, e em cada sinal que para,
está na Somália.
É impossível defender esta fronteira. A grande questão deste
novo século é como defender seu perímetro pessoal da miséria impaciente e
predadora. Os americanos não podem ajudar desta vez. A fronteira maluca
ziguezagueia dentro dos Estados Unidos também. E, afinal, eles não conseguiram
invadir todas as somálias.
No Brasil da criminalidade crescente experimenta-se com uma
versão da teoria da segurança nacional adaptada às fronteiras econômicas.
Enfrenta-se ao mesmo tempo uma bandidagem organizada e a falência de uma
organização policial. Mas no fim é uma guerra de contenção, de proteção de
perímetro. E os excessos cometidos podem ser defendidos como a sra. Fitzpatrick
defendia a política americana: os fins justificam as barbaridades.
As chacinas no campo e na cidade, a liberdade de pequenos
tiranos de uniforme para serem arbitrariamente violentos, até as condições
subumanas de nossas cadeias, tudo é permitido porque não se está apenas
mantendo a ordem, está-se defendendo uma pátria ameaçada, a pátria do
privilégio e da insensibilidade social. Tudo é escaramuça na fronteira.
E quem sabe não seremos um laboratório para o mundo? A mão
da história indica uma sociedade em que a única solução para os excluídos será
mata-los. A não ser, claro, que de uma hora para outra todos os pobres decidam
renunciar à sua condição e tornar-se capitalistas instantâneos, como fizeram os
comunistas, naquela outra guerra.
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