Paulo da Gethal, Simão Pessoa, Lúcio Preto e Mário Gordinho
Em setembro de 1970, ocorreu uma frustrada tentativa de golpe de estado na Jordânia contra o Rei Hussein II, comandada pela então terrorista Organização da Libertação Palestina (OLP). Na ocasião, o rei jordaniano iniciou uma violenta campanha contra militantes políticos palestinos no país, matando centenas de pessoas.
Como resposta à repressão de estado jordaniana, foi criada a organização paramilitar
Setembro Negro, comandada por membros da Al-Fatah (Movimento da Libertação da
Palestina, organização comandada por Yasser Arafat), contando com o apoio de
membros da As-Sa’iqa e da OLP. O terrorista Mohammed Daoud Oudeh foi o mentor
intelectual das ações da organização.
Entre
seu estabelecimento, em meados de 1971, até o “Massacre de Munique“, como ficou
conhecido o incidente nas Olimpíadas de 1972, o Setembro Negro capitaneou
diversas ações terroristas como cartas-bomba para autoridades diplomáticas
israelenses, sequestro de aviões, tentativas de assassinatos contra oficiais
jordanianos e ainda o assassinato do primeiro-ministro jordaniano Wasfi Tel em
1971.
Depois
do atentado em Munique, outras ações do Setembro Negro continuaram a ocorrer
até seu desmantelamento no final de 1974, por obra e graça do Mossad, o serviço
secreto israelense. Parte dessa história foi contada no emblemático filme
“Munique”.
Em
termos de futebol, estava na hora de a gente também tocar terror. O nosso novo
time no 15º Peladão, em 1987, iria se chamar Setembro Negro e, para intimidar os
adversários, optamos por um equipamento digno de headbangers ensandecidos ou de
policiais do Bope: camisa, calção e meia absolutamente negros, com a inscrição
“Setembro Negro” no meio do peito.
A
bandeira do time, desenhada pelo arista plástico Jorge Palheta, mostrava uma caveira com um
lírio preso na boca, aplicada sobre o fundo negro nas cores prata (o crânio) e
amarelo fosforescente (o lírio). Uma espécie de terrorismo lírico. A bandeira
foi roubada no primeiro jogo.
Pra
completar, montamos uma senhora equipe com vários ex-jogadores profissionais,
como havia virado moda na competição. Na defesa, Gato (ex-América), Luiz Alberto
(ex-Rodoviária), Petrônio Aguiar (ex-Murrinhas do Egito), Coca (ex-Fast) e Juldecir (ex-São Raimundo). No meio de campo, Lúcio Preto (ex-Náutico), Paulo César (ex-Nacional) e Mário Gordinho (ex-Fast). No ataque, Gilson
Cabocão (ex-Murrinhas do Egito), Zeca Boy (ex-Inútil) e Luiz Lobão (ex-Murrinhas do Egito).
Eu era apenas o técnico do time,
mas se faltasse alguém eu entrava de ponta-esquerda. O nosso banco também era um celeiro de craques: Paulinho Preto, Arlindo Jorge,
Sici Pirangy, Heraldo Cacau, Almir Português, Betinho, Roberto Doido, Lucio Piau, Ratinho, Francisco Neto e Jaques
Castro,.
Explica-se: como todo mundo era biriteiro, era um parto federal conseguir 11 atletas para os jogos nas manhãs de domingo. Conseguido os onze iniciais, era um novo parto arregimentar outros três ou quatro atletas, porque os biriteiros só aguentavam jogar um tempo e olhe lá. Nessa toada, passaram pelo Setembro Negro mais de 40 atletas, um recorde.
Um dos poucos homeboys a possuir carro na época, Arlindo Jorge era o responsável por catar em casa os cachaceiros retardatários e levar pro campo. Além disso, era ele que bancava a maior parte do canavial que rolava depois das partidas. Só que o atleta-cartola estava ficando mordido: se equipava todo, mas nunca entrava em campo para jogar. Começou a ameaçar abandonar o time e “não catar mais porra nenhuma de atleta cachaceiro“.
Um dia, no campo do Penarol, durante um jogo pegado e catimbado contra o Albatroz, que não saía do zero a zero, coloquei ele de centroavante, no lugar do Luiz Lobão, quando faltavam cinco minutos para terminar a partida. Lançaram uma bola na área do Albatroz. No meio da confusão, a bola sobrou pra ele, que encheu o pé. Chutou mais barro do que bola. A pelota saiu rolando preguiçosamente até entrar no gol do Albatroz. Setembro Negro 1 a zero, e Arlindo Jorge herói do jogo. Virou titular absoluto, mas nunca mais conseguiu repetir a façanha.
Explica-se: como todo mundo era biriteiro, era um parto federal conseguir 11 atletas para os jogos nas manhãs de domingo. Conseguido os onze iniciais, era um novo parto arregimentar outros três ou quatro atletas, porque os biriteiros só aguentavam jogar um tempo e olhe lá. Nessa toada, passaram pelo Setembro Negro mais de 40 atletas, um recorde.
O centroavante matador Arlindo Jorge
Um dos poucos homeboys a possuir carro na época, Arlindo Jorge era o responsável por catar em casa os cachaceiros retardatários e levar pro campo. Além disso, era ele que bancava a maior parte do canavial que rolava depois das partidas. Só que o atleta-cartola estava ficando mordido: se equipava todo, mas nunca entrava em campo para jogar. Começou a ameaçar abandonar o time e “não catar mais porra nenhuma de atleta cachaceiro“.
Um dia, no campo do Penarol, durante um jogo pegado e catimbado contra o Albatroz, que não saía do zero a zero, coloquei ele de centroavante, no lugar do Luiz Lobão, quando faltavam cinco minutos para terminar a partida. Lançaram uma bola na área do Albatroz. No meio da confusão, a bola sobrou pra ele, que encheu o pé. Chutou mais barro do que bola. A pelota saiu rolando preguiçosamente até entrar no gol do Albatroz. Setembro Negro 1 a zero, e Arlindo Jorge herói do jogo. Virou titular absoluto, mas nunca mais conseguiu repetir a façanha.
Para
entrosar a equipe, o Setembro Negro fez seu batismo de fogo no campeonato de
futebol do Penarol, na época disputado por 24 times distribuídos em quatro
chaves de seis. Na primeira fase, derrotamos o Autoviário por 2 a 0, gols de
Mário Gordinho e Lucio Piau, o Tijuca por 5 a 1, gols de Zeca Boy (3), Jaques
Castro e Ratinho, o Caveira por 3 a 0, gols de Luiz Lobão, Zeca Boy e Heraldo
Cacau, o São Francisco por 4 a 2, gols de Zeca Boy (2) e Mário Gordinho (2), e
empatamos com o Canarinho em 2 a 2, gols de Mário Gordinho e Gilson Cabocão.
Na
segunda fase, ganhamos do Barcelona por 3 a 1, gols de Mário Gordinho, Paulo
César e Sici Pirangy, do Estrela Azul por 4 a 0, gols de Zeca Boy (2), Jaques
Castro e Heraldo Cacau, e quando íamos decidir o primeiro lugar do grupo com o Ajax, o campeonato foi interrompido por causa de uma briga federal entre
o Mangueira, do marrento Donga, e o Tijuca, do Paulinho Caçador, meu
ex-companheiro de infortúnio no infanto-juvenil do São Raimundo.
Para
manter os atletas em forma, começamos a aceitar convites para jogar contra
vários times dos quatro cantos da cidade. Empatamos algumas partidas, ganhamos
outras, não perdemos nenhuma, e o time estava ficando cada vez mais engrenado.
A fama de time invicto há 25 partidas começou a circular em velocidade
supersônica e o que não faltavam eram candidatos dispostos a tirar a prova dos
nove.
Foi
quando surgiu o convite para enfrentar o Chaparral, da Lagoa Verde, um bairro
que eu não conhecia nem de cumprimentar. Estávamos em agosto, mês do cachorro
louco. O 5º Peladão iria começar no mês seguinte. Como tantas outras, a partida
contra o Chaparral colocava em disputa duas grades de cerveja, no regime bico
seco, isto é, o time perdedor não teria direito a participar da esbórnia.
Resolvemos encarar aquele novo desafio.
Bonitinho,
mas ordinário, o campo de barro batido do Chaparral ficava no final de uma
picada aberta no meio da selva, a uns dois quilômetros da pista de rodagem que divide a
Lagoa Verde do bairro de São Lázaro, e que vai da Bola da Suframa ao aeroporto
de Ponta Pelada. Os torcedores ficavam a meio metro das linhas do campo,
fazendo um verdadeiro corredor polonês. No entorno do campo, uma verdadeira floresta virgem. Se bobear, até onça pintada ainda devia existir por lá.
A
escalação do Chaparral era digna de um “quem é quem” da marginalidade barra-pesada da região. Na defesa, Cachorrão, Zé Pinguim, Raimundo Bala, Marcha Lenta e Capa
Onça. No meio de campo, Cavalo do Cão e Barba de Bode. No ataque, Couro Curto, Catingoso, Carne Seca e Mete
Bronca. O equipamento deles era vermelho hemorragia – provavelmente para
esconder o sangue dos adversários. O bafo de cachaça dos atletas era de tirar o
fôlego. Não nos intimidamos.
Com
cinco minutos de jogo, Paulo César tocou de primeira, Mário Gordinho amaciou na
coxa e bateu de trivela. Um monte de camisas negras comemorando o princípio da
desgraça: visitantes 1 a 0. A torcida do Chaparral, em adiantado estado de
embriaguez alcoólica, incentivava seus atletas numa gritaria infernal: “Pega,
mata, esfola! Porrada nos boiolas!”, “Araruta, araruta, só tem filho da puta!”
e outros achincalhes do gênero.
Heraldo
Cacau marcou touca na ponta direita, levou um bico na canela que tirou fatia.
Alguns minutos depois, o beque Marcha Lenta jogou o nosso Zeca Boy no meio do
mato. O juiz ficou com medo de marcar tentativa de homicídio. A torcida do
Chaparral foi ao delírio.
Eu
estava de ponta esquerda, escondido, rezando pelo anonimato. Qual nada... Mário
Gordinho passou a bola entre as pernas de um inimigo, se livrou de uma nova
patada de outro e lançou o diabo da bola nas costas do meu algoz. Parti para a
linha de fundo, numa correria de fundista queniano. Assim que consegui dominar a bola, senti uma porrada nas minhas costas como
se tivesse sido atingido por uma jamanta desgovernada.
Dei
por mim com o bandeirinha caído no chão e um cara gritando ao meu lado com o pé
torcido. Soube depois que era o lateral-direito Zé Pinguim. Desconfio que ele levou a pior porque chutou de peito de pé pra
isolar a bola e acertou a base do meu calcanhar, num “sola” involuntário. Mas
ainda assim ele conseguiu me jogar em cima do bandeirinha magricela, que
desabou no chão feito um pacote bêbado.
Substituição
na quadrilha do Chaparral: sai Zé Pinguim e entra Carcará. Resolvi tentar uma
intimidade forçada com o novo atleta, que tinha pinta de cangaceiro:
– Parceiro, me desculpe a pergunta, mas isso é apelido mesmo ou sobrenome de
família?...
O
beque Raimundo Bala, com sua cara de homicida egresso de penitenciária de
segurança máxima, berrou pro novo lateral direito:
–
Dá um cacete nesse filho da puta que ele quebrou o pé do Zé Pinguim...
Meia
hora do primeiro assalto, tempo demais para o meu gosto. Todo mundo me caçando
em campo, querendo vingar o pé quebrado do Zé Pinguim. Zeca Boy lança a redonda
na minha jurisdição. Dei um pulo, a patada do Carcará passou por baixo.
Raimundo Bala veio na cobertura, era só devolver pro Mário Gordinho...
Não,
a besta aqui fechou os olhos e chutou pra frente, e a bola, caprichosamente,
foi se alojar no ângulo superior esquerdo do goleiro Cachorrão, beijando o
véu da noiva. Na comemoração, quase levo uma tijolada na cabeça. Visitantes
2X0.
Com
a fatura praticamente liquidada, o Setembro Negro começa a fazer seu show
particular, com toques rápidos e envolventes de pé em pé. Luiz Lobão toca para
Paulo César que rola para Mário Gordinho. Mário Gordinho dribla um adversário
apenas com um leve toque na bola e toca para Zeca Boy. Zeca Boy, não olha pra
mim que estou marcado, faz uma ginga de corpo, não dá pra mim que estou
marcado, tenta o passe para Heraldo Cacau na meia direita, ele domina e faz um
gesto para eu me enfiar no meio da zaga, não, não, eu estou marcado, ele cruza
na minha direção, mas bate mal na bola e a pelota sai pela linha de fundo.
Respiro aliviado.
Dez
minutos depois, termina o primeiro tempo.
–
Se continuar desse jeito, ninguém sai vivo de campo... – comentei, enquanto
pegava uma pedra de gelo para passar no meu tornozelo inchado.
Começa
o segundo tempo. Com quinze minutos de jogo, o ponta direita Couro Curto,
completamente impedido, chuta na cara do goleiro Gato e faz o primeiro tento da
equipe adversária. Gato vai reclamar e é expulso. Visitantes 2 a 1. O zagueiro, às vezes ponta direita ou meia-armador Sici Pirangy é deslocado para o nosso gol.
Empolgado
pelos gritos de guerra da torcida, o Chaparral ataca em massa e a gente se
defende como pode. Barba de Bode é lançado por Mete Bronca, Petrônio Aguiar
manda pela lateral. Catingoso faz uma finta em cima de Luiz Alberto, Paulo César
mete um carrinho e cede o escanteio.
Bola
na área. Sici Pirangy espalma, Mário Gordinho domina na intermediária e sai
jogando. Cavalo do Cão lhe atropela, o juiz não marca a falta, a bola sobra pra
Catingoso, Luiz Lobão vai na dividida, os dois se chocam, caem no chão, e o
juiz marca em cima: pênalti, com a suposta falta a cinco metros da entrada da
grande área. A torcida do Chaparral vai à loucura.
A
gente peita o juiz e o bandeirinha, catimba, dá um bico na bola pro meio do
mato, discute, fala palavrões, ofende a genitora do juiz, agita, faz cara de
mau, protesta, Luiz Lobão é expulso. Carne Seca vai lá e mete no canto.
Visitantes 2 a 2. Quase choro de alegria.
O
nosso time com nove, tentando manter a cabeça no lugar. Mário Gordinho dá dois
“rabos de vaca” seguidos no Capa Onça, empurra para Paulo César, lá vem a
desgraçada, ele enfia para Zeca Boy, perde essa bola, porra, ele dá um toque de
calcanhar para Heraldo Cacau, vira esse troço pra lá, filho da puta, Cacau se
livra de um zagueiro e toca na entrada da área para Mário Gordinho, não me
procura que estou marcado, Mário Gordinho perde o controle da bola, Raimundo
Bala chega rasgando, ufa, a bola sai pela lateral.
Mário
Gordinho com o diabo no couro. Ele mete entre as pernas de Carne Seca, dá um
balãozinho no Mete Bronca, escapa do sarrafo de Carcará, ganha na velocidade de
Raimundo Bala e lança Zeca Boy na meia direita. Falta quase nada para terminar
o jogo. Zeca Boy dá um drible curto no Barba de Bode e joga a bola na minha
direção.
Estou
completamente desmarcado, o juiz não dá impedimento, corro em direção à bola
com o cronômetro na cabeça, acaba logo o jogo juiz ladrão, domino a bola, acaba logo o jogo, pelamor de deus, o Cachorrão sai da meta desesperado, já esgotou o tempo, juiz
venal, acaba logo essa porra, tentei atrasar para o goleiro e me livrar da
encrenca, mas o idiota abre as pernas e deixa a bola passar. A pelota vai
morrer lentamente nos fundos da rede. Visitantes 3 a 2.
O
que aconteceu depois, não faço a menor idéia. Só sei que acordei em casa com a
cabeça enfaixada e um braço no gesso. Nunca mais quis saber de futebol.
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