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terça-feira, outubro 23, 2018

A incrível Odisseia do Setembro Negro


Paulo da Gethal, Simão Pessoa, Lúcio Preto e Mário Gordinho

             Em setembro de 1970, ocorreu uma frustrada tentativa de golpe de estado na Jordânia contra o Rei Hussein II, comandada pela então terrorista Organização da Libertação Palestina (OLP). Na ocasião, o rei jordaniano iniciou uma violenta campanha contra militantes políticos palestinos no país, matando centenas de pessoas.

Como resposta à repressão de estado jordaniana, foi criada a organização paramilitar Setembro Negro, comandada por membros da Al-Fatah (Movimento da Libertação da Palestina, organização comandada por Yasser Arafat), contando com o apoio de membros da As-Sa’iqa e da OLP. O terrorista Mohammed Daoud Oudeh foi o mentor intelectual das ações da organização.

Entre seu estabelecimento, em meados de 1971, até o “Massacre de Munique“, como ficou conhecido o incidente nas Olimpíadas de 1972, o Setembro Negro capitaneou diversas ações terroristas como cartas-bomba para autoridades diplomáticas israelenses, sequestro de aviões, tentativas de assassinatos contra oficiais jordanianos e ainda o assassinato do primeiro-ministro jordaniano Wasfi Tel em 1971.

Depois do atentado em Munique, outras ações do Setembro Negro continuaram a ocorrer até seu desmantelamento no final de 1974, por obra e graça do Mossad, o serviço secreto israelense. Parte dessa história foi contada no emblemático filme “Munique”.

Em termos de futebol, estava na hora de a gente também tocar terror. O nosso novo time no 15º Peladão, em 1987, iria se chamar Setembro Negro e, para intimidar os adversários, optamos por um equipamento digno de headbangers ensandecidos ou de policiais do Bope: camisa, calção e meia absolutamente negros, com a inscrição “Setembro Negro” no meio do peito.

A bandeira do time, desenhada pelo arista plástico Jorge Palheta, mostrava uma caveira com um lírio preso na boca, aplicada sobre o fundo negro nas cores prata (o crânio) e amarelo fosforescente (o lírio). Uma espécie de terrorismo lírico. A bandeira foi roubada no primeiro jogo.

Pra completar, montamos uma senhora equipe com vários ex-jogadores profissionais, como havia virado moda na competição. Na defesa, Gato (ex-América), Luiz Alberto (ex-Rodoviária), Petrônio Aguiar (ex-Murrinhas do Egito), Coca (ex-Fast) e Juldecir (ex-São Raimundo). No meio de campo, Lúcio Preto (ex-Náutico), Paulo César (ex-Nacional) e Mário Gordinho (ex-Fast). No ataque, Gilson Cabocão (ex-Murrinhas do Egito), Zeca Boy (ex-Inútil) e Luiz Lobão (ex-Murrinhas do Egito).

Eu era apenas o técnico do time, mas se faltasse alguém eu entrava de ponta-esquerda. O nosso banco também era um celeiro de craques: Paulinho Preto, Arlindo Jorge, Sici Pirangy, Heraldo Cacau, Almir Português, Betinho, Roberto Doido, Lucio Piau, Ratinho, Francisco Neto e Jaques Castro,. 

             Explica-se: como todo mundo era biriteiro, era um parto federal conseguir 11 atletas para os jogos nas manhãs de domingo. Conseguido os onze iniciais, era um novo parto arregimentar outros três ou quatro atletas, porque os biriteiros só aguentavam jogar um tempo e olhe lá. Nessa toada, passaram pelo Setembro Negro mais de 40 atletas, um recorde.



O centroavante matador Arlindo Jorge

               Um dos poucos homeboys a possuir carro na época, Arlindo Jorge era o responsável por catar em casa os cachaceiros retardatários e levar pro campo. Além disso, era ele que bancava a maior parte do canavial que rolava depois das partidas. Só que o atleta-cartola estava ficando mordido: se equipava todo, mas nunca entrava em campo para jogar. Começou a ameaçar abandonar o time e não catar mais porra nenhuma de atleta cachaceiro.

              Um dia, no campo do Penarol, durante um jogo pegado e catimbado contra o Albatroz, que não saía do zero a zero, coloquei ele de centroavante, no lugar do Luiz Lobão, quando faltavam cinco minutos para terminar a partida. Lançaram uma bola na área do Albatroz. No meio da confusão, a bola sobrou pra ele, que encheu o pé. Chutou mais barro do que bola. A pelota saiu rolando preguiçosamente até entrar no gol do Albatroz. Setembro Negro 1 a zero, e Arlindo Jorge herói do jogo. Virou titular absoluto, mas nunca mais conseguiu repetir a façanha.

Para entrosar a equipe, o Setembro Negro fez seu batismo de fogo no campeonato de futebol do Penarol, na época disputado por 24 times distribuídos em quatro chaves de seis. Na primeira fase, derrotamos o Autoviário por 2 a 0, gols de Mário Gordinho e Lucio Piau, o Tijuca por 5 a 1, gols de Zeca Boy (3), Jaques Castro e Ratinho, o Caveira por 3 a 0, gols de Luiz Lobão, Zeca Boy e Heraldo Cacau, o São Francisco por 4 a 2, gols de Zeca Boy (2) e Mário Gordinho (2), e empatamos com o Canarinho em 2 a 2, gols de Mário Gordinho e Gilson Cabocão.

Na segunda fase, ganhamos do Barcelona por 3 a 1, gols de Mário Gordinho, Paulo César e Sici Pirangy, do Estrela Azul por 4 a 0, gols de Zeca Boy (2), Jaques Castro e Heraldo Cacau, e quando íamos decidir o primeiro lugar do grupo com o Ajax, o campeonato foi interrompido por causa de uma briga federal entre o Mangueira, do marrento Donga, e o Tijuca, do Paulinho Caçador, meu ex-companheiro de infortúnio no infanto-juvenil do São Raimundo.

Para manter os atletas em forma, começamos a aceitar convites para jogar contra vários times dos quatro cantos da cidade. Empatamos algumas partidas, ganhamos outras, não perdemos nenhuma, e o time estava ficando cada vez mais engrenado. A fama de time invicto há 25 partidas começou a circular em velocidade supersônica e o que não faltavam eram candidatos dispostos a tirar a prova dos nove.

Foi quando surgiu o convite para enfrentar o Chaparral, da Lagoa Verde, um bairro que eu não conhecia nem de cumprimentar. Estávamos em agosto, mês do cachorro louco. O 5º Peladão iria começar no mês seguinte. Como tantas outras, a partida contra o Chaparral colocava em disputa duas grades de cerveja, no regime bico seco, isto é, o time perdedor não teria direito a participar da esbórnia. Resolvemos encarar aquele novo desafio.

Bonitinho, mas ordinário, o campo de barro batido do Chaparral ficava no final de uma picada aberta no meio da selva, a uns dois quilômetros da pista de rodagem que divide a Lagoa Verde do bairro de São Lázaro, e que vai da Bola da Suframa ao aeroporto de Ponta Pelada. Os torcedores ficavam a meio metro das linhas do campo, fazendo um verdadeiro corredor polonês. No entorno do campo, uma verdadeira floresta virgem. Se bobear, até onça pintada ainda devia existir por lá. 

A escalação do Chaparral era digna de um “quem é quem” da marginalidade barra-pesada da região. Na defesa, Cachorrão, Zé Pinguim, Raimundo Bala, Marcha Lenta e Capa Onça. No meio de campo, Cavalo do Cão e Barba de Bode. No ataque, Couro Curto, Catingoso, Carne Seca e Mete Bronca. O equipamento deles era vermelho hemorragia – provavelmente para esconder o sangue dos adversários. O bafo de cachaça dos atletas era de tirar o fôlego. Não nos intimidamos.

Áureo Petita, Luiz Lobão e Zeca Boy

Com cinco minutos de jogo, Paulo César tocou de primeira, Mário Gordinho amaciou na coxa e bateu de trivela. Um monte de camisas negras comemorando o princípio da desgraça: visitantes 1 a 0. A torcida do Chaparral, em adiantado estado de embriaguez alcoólica, incentivava seus atletas numa gritaria infernal: “Pega, mata, esfola! Porrada nos boiolas!”, “Araruta, araruta, só tem filho da puta!” e outros achincalhes do gênero.

Heraldo Cacau marcou touca na ponta direita, levou um bico na canela que tirou fatia. Alguns minutos depois, o beque Marcha Lenta jogou o nosso Zeca Boy no meio do mato. O juiz ficou com medo de marcar tentativa de homicídio. A torcida do Chaparral foi ao delírio.

Eu estava de ponta esquerda, escondido, rezando pelo anonimato. Qual nada... Mário Gordinho passou a bola entre as pernas de um inimigo, se livrou de uma nova patada de outro e lançou o diabo da bola nas costas do meu algoz. Parti para a linha de fundo, numa correria de fundista queniano. Assim que consegui dominar a bola, senti uma porrada nas minhas costas como se tivesse sido atingido por uma jamanta desgovernada.

Dei por mim com o bandeirinha caído no chão e um cara gritando ao meu lado com o pé torcido. Soube depois que era o lateral-direito Zé Pinguim. Desconfio que ele levou a pior porque chutou de peito de pé pra isolar a bola e acertou a base do meu calcanhar, num “sola” involuntário. Mas ainda assim ele conseguiu me jogar em cima do bandeirinha magricela, que desabou no chão feito um pacote bêbado.

Substituição na quadrilha do Chaparral: sai Zé Pinguim e entra Carcará. Resolvi tentar uma intimidade forçada com o novo atleta, que tinha pinta de cangaceiro:

– Parceiro, me desculpe a pergunta, mas isso é apelido mesmo ou sobrenome de família?...

O beque Raimundo Bala, com sua cara de homicida egresso de penitenciária de segurança máxima, berrou pro novo lateral direito:

– Dá um cacete nesse filho da puta que ele quebrou o pé do Zé Pinguim...

Meia hora do primeiro assalto, tempo demais para o meu gosto. Todo mundo me caçando em campo, querendo vingar o pé quebrado do Zé Pinguim. Zeca Boy lança a redonda na minha jurisdição. Dei um pulo, a patada do Carcará passou por baixo. Raimundo Bala veio na cobertura, era só devolver pro Mário Gordinho...

Não, a besta aqui fechou os olhos e chutou pra frente, e a bola, caprichosamente, foi se alojar no ângulo superior esquerdo do goleiro Cachorrão, beijando o véu da noiva. Na comemoração, quase levo uma tijolada na cabeça. Visitantes 2X0.

Com a fatura praticamente liquidada, o Setembro Negro começa a fazer seu show particular, com toques rápidos e envolventes de pé em pé. Luiz Lobão toca para Paulo César que rola para Mário Gordinho. Mário Gordinho dribla um adversário apenas com um leve toque na bola e toca para Zeca Boy. Zeca Boy, não olha pra mim que estou marcado, faz uma ginga de corpo, não dá pra mim que estou marcado, tenta o passe para Heraldo Cacau na meia direita, ele domina e faz um gesto para eu me enfiar no meio da zaga, não, não, eu estou marcado, ele cruza na minha direção, mas bate mal na bola e a pelota sai pela linha de fundo. Respiro aliviado.

Dez minutos depois, termina o primeiro tempo.

– Se continuar desse jeito, ninguém sai vivo de campo... – comentei, enquanto pegava uma pedra de gelo para passar no meu tornozelo inchado.

Ninguém deu a mínima.


O polivalente Sici Pirangy

Começa o segundo tempo. Com quinze minutos de jogo, o ponta direita Couro Curto, completamente impedido, chuta na cara do goleiro Gato e faz o primeiro tento da equipe adversária. Gato vai reclamar e é expulso. Visitantes 2 a 1. O zagueiro, às vezes ponta direita ou meia-armador Sici Pirangy é deslocado para o nosso gol.

Empolgado pelos gritos de guerra da torcida, o Chaparral ataca em massa e a gente se defende como pode. Barba de Bode é lançado por Mete Bronca, Petrônio Aguiar manda pela lateral. Catingoso faz uma finta em cima de Luiz Alberto, Paulo César mete um carrinho e cede o escanteio.

Bola na área. Sici Pirangy espalma, Mário Gordinho domina na intermediária e sai jogando. Cavalo do Cão lhe atropela, o juiz não marca a falta, a bola sobra pra Catingoso, Luiz Lobão vai na dividida, os dois se chocam, caem no chão, e o juiz marca em cima: pênalti, com a suposta falta a cinco metros da entrada da grande área. A torcida do Chaparral vai à loucura.

A gente peita o juiz e o bandeirinha, catimba, dá um bico na bola pro meio do mato, discute, fala palavrões, ofende a genitora do juiz, agita, faz cara de mau, protesta, Luiz Lobão é expulso. Carne Seca vai lá e mete no canto. Visitantes 2 a 2. Quase choro de alegria.

O nosso time com nove, tentando manter a cabeça no lugar. Mário Gordinho dá dois “rabos de vaca” seguidos no Capa Onça, empurra para Paulo César, lá vem a desgraçada, ele enfia para Zeca Boy, perde essa bola, porra, ele dá um toque de calcanhar para Heraldo Cacau, vira esse troço pra lá, filho da puta, Cacau se livra de um zagueiro e toca na entrada da área para Mário Gordinho, não me procura que estou marcado, Mário Gordinho perde o controle da bola, Raimundo Bala chega rasgando, ufa, a bola sai pela lateral.

Mário Gordinho com o diabo no couro. Ele mete entre as pernas de Carne Seca, dá um balãozinho no Mete Bronca, escapa do sarrafo de Carcará, ganha na velocidade de Raimundo Bala e lança Zeca Boy na meia direita. Falta quase nada para terminar o jogo. Zeca Boy dá um drible curto no Barba de Bode e joga a bola na minha direção.

Estou completamente desmarcado, o juiz não dá impedimento, corro em direção à bola com o cronômetro na cabeça, acaba logo o jogo juiz ladrão, domino a bola, acaba logo o jogo, pelamor de deus, o Cachorrão sai da meta desesperado, já esgotou o tempo, juiz venal, acaba logo essa porra, tentei atrasar para o goleiro e me livrar da encrenca, mas o idiota abre as pernas e deixa a bola passar. A pelota vai morrer lentamente nos fundos da rede. Visitantes 3 a 2.

O que aconteceu depois, não faço a menor idéia. Só sei que acordei em casa com a cabeça enfaixada e um braço no gesso. Nunca mais quis saber de futebol.

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