Outubro
de 1986. Vivendo numa permanente pindaíba financeira que só era amenizada um
pouco no período do carnaval, Mestre Carioca procurou o bicheiro Ivan Chibata
para pedir um emprego de segurança na Banca do Chibata em tempo integral.
Depois de ouvir pacientemente o relato angustiado do sambista, Ivan Chibata
marcou uma entrevista com Mestre Carioca em seu escritório informal, no Bar da
Alzira, numa noite de sábado, dali a duas semanas.
Crioulo
alto e esguio, de cabeça seca do tipo sarará, encoberta permanentemente por um
surrado quepe de diretor de cinema, sempre muito risonho e brincalhão, o
sujeito se chamava Edir Pedro Batista e apareceu na Cachoeirinha, pela primeira
vez, ao lado do advogado Vilson Benayon, presidente do GRES Andanças de Ciganos.
Ele havia sido contratado para ser o novo mestre da bateria. Como havia nascido
no morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, passou a ser chamado de Mestre
Carioca ou, simplesmente, de Carioca.
Mestre
Carioca costumava comandar os ensaios da bateria na quadra dos Ciganos usando
uma folgada calça de linho branco, camisa de seda abotoada nos punhos encimada
por um colete de crochê na cor rubro-negra e sapatos brancos, munido de um
apito e um inseparável pandeiro. Além disso, se gabava de suas habilidades no manejo
da navalha e se dizia um experimentado capoeirista, iniciado nas quebradas dos
morros pelo lendário Mestre Veludo.
Dotado
de um talento sobrenatural para o suingue, Carioca era um exímio instrumentista
de percussão, capaz de fazer seu pandeiro soar como uma autêntica bateria de
escola de samba. Foi ele quem ensinou aos batuqueiros ciganos o bê-á-bá do
surdo de primeira, surdo de segunda, caixinha de guerra, tarol, frigideira,
cuíca, tamborim, repique, cuíca, pandeiro e agogô. Um de seus melhores discípulos
foi Mestre Pajé, que começou a ensaiar com ele quando tinha apenas oito anos.
Carioca
também era um passista de alto coturno, fazendo malabarismos dignos de um
mestre-sala que lhe valeram o título de “Senhor Samba 1982”, conquistado após
uma primorosa exibição no ginásio Renê Monteiro, durante o carnaval daquele
ano. Suas elegantes piruetas lembravam um pouco o estilo do inesquecível
Delegado, o lendário mestre-sala da Mangueira que durante 47 anos seguidos
recebeu nota 10 nas suas apresentações. Depois que entregou o comando da
bateria cigana para Mestre Louro, Carioca passou a fazer parte da Ala Show da
escola, levantando as arquibancadas do sambódromo com suas piruetas
fantásticas.
No
dia combinado para a entrevista, Carioca apareceu no bar vestido como um
autêntico malandro da velha-guarda: chapéu de palha, camisa de seda, paletó de
linho branco e sapato bicolor. Ivan Chibata já estava com a cabeça cheia de
truaca. Sempre sorridente, Carioca ouviu com atenção as ponderações iniciais do
bicheiro:
–
Você já sabe que eu trabalho na contravenção, não é mesmo? E nesse trabalho não
tem vaga para bocoió nem pra vacilão, porque é um jogo pesado, muito pesado.
Pra entrar no movimento o cabra tem de ser sujeito homem...
Carioca
concordou.
–
Vamos ver se você é sujeito homem! – insistiu o bicheiro. – Descalça um pé do
sapato e coloca o pé aqui do meu lado!
Carioca
não estava entendendo nada, mas obedeceu. A penúria financeira tem razões que a
própria razão desconhece.
Ivan
Chibata tirou um revólver 38 da cintura e deu um tiro à queima-roupa no meio do
pé do infeliz. Carioca deu um grito. O pessoal que estava bebendo no boteco
saiu correndo do lugar pensando tratar-se de um assalto. Carioca segurava o
tornozelo com as duas mãos e espinafrava a genitora do bicheiro, enquanto saía
um rio de sangue do seu pé esburacado.
Impassível,
Ivan Chibata chamou um dos seus seguranças e deu o toque:
–
Leva esse crioulo folgado para uma clínica particular, paga as despesas médicas
com dinheiro vivo e explica que ele se acidentou quando brincava com uma arma
de fogo. Se ele não der com a língua nos dentes pra delatar o que realmente
aconteceu, pode colocar ele na folha de pagamento a partir de hoje!
Dito
e feito. Uma hora depois, Carioca estava de volta ao bar ostentando uma vistosa
bota de gesso no pé baleado. No mesmo dia, ele entrou na folha de pagamento da
Banca do Chibata e deu adeus ao tempo das vacas magras. Diz a lenda que até o
dia em que Ivan Chibata foi finalmente derrotado pela cirrose hepática, Carioca
recebeu da contravenção um salário mensal pago religiosamente.
Alguns
anos depois da morte de seu preceptor, Carioca estava participando de uma roda
de pagode em um bar-flutuante, nas imediações da Ponte de Ferro da
Cachoeirinha, provavelmente em mais um “bico” para driblar a paúra financeira.
Já era madrugada, com todo mundo cheio da manguaça, quando começou uma briga
entre os pagodeiros.
No
meio do fuzuê, um sujeito pegou o pandeiro do Carioca e jogou dentro d’água.
Ele mergulhou no rio em busca de sua obra-prima, que supostamente afundara nas
águas escuras. Dizem que ele conseguiu resgatar seu inseparável companheiro do
fundo do rio, mas quando emergiu, saiu debaixo do assoalho do bar-flutuante – e
não conseguiu ter fôlego suficiente para fugir da armadilha. Morreu afogado,
agarrado ao pandeiro velho de guerra.
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