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sábado, outubro 13, 2018

A Origem das Espécies: O Clã Bandeira


Dona Rosalina Bandeira – minha avó materna e a única que conheci – nasceu em Coari, no médio Rio Solimões, e era supostamente descendente de índios Apurinãs. 

Vovó Rosa tinha o perfil e a personalidade de uma autêntica guerreira apache: falava firme e não admitia contestações. 

Ela se casou com o seringalista José Bonifácio da Silva, com quem teve sete filhos: Edith (aka “Dica”), Rosalina (aka “Rosa”), Maria, Celeste, Lucas, Algemira (aka “Algima”) e José. 

Quando José Bonifácio também foi abatido pela malária, vovó Rosa abandonou as terras que possuía em Coari, colocou as tralhas (incluindo os moleques) dentro de uma canoa e se mandou para Manaus, conduzindo a embarcação no muque. 

Se não tivesse parado na cidade para comprar mantimentos era bem capaz de Vovó Rosa só acabar desembarcando em Belém. Ou na Europa. A velha era determinada. 

Aquele bando de moleques remelentos dentro de uma canoa, fazendo perguntas impertinentes (“Ainda falta muito?”, “Não vai parar não?”, “A senhora tem certeza de que é por aqui?”), devem ter contribuído para ela desenvolver uma fobia a curumins. 

Assim que pisou em terra firme, vovó Rosa se encarregou de “dar” os filhos para serem criados por famílias em melhor situação financeira do que ela e passou a morar sozinha. 

O caçula José chegou a ser entregue para adoção a um casal de missionários norte-americanos, mas foi resgatado por Edith e Rosalina algumas horas antes de embarcar no navio rumo aos EUA.

Zé Bandeira, como se tornou conhecido, nunca esqueceu esse episódio. Sempre que enchia a cara de truaca e constatava a merda de vida que estava levando, ele ficava revoltado:

– Se não fossem minhas duas irmãs mais velhas, eu hoje seria um fazendeiro no Arkansas, estaria casado com uma gringa de cabelos ruivos e teria um casal de filhos loirinhos e de olhos azuis! A Dica e a Rosa afuleilaram o meu futuro! Hoje eu não sou um cidadão do primeiro mundo por causa delas!

A casa da vovó Rosa ficava no bairro de São Francisco, na beira de um sacovão que a gente chamava de “Cafundó” porque devia ser lá que o Judas perdeu as botas. 

O acesso ao vale do sacovão exigia perícia e coragem para descer por meio de uma precária escada de barro de quase trinta metros, íngreme ao extremo (quase 90º de inclinação) e cavada no próprio morro. 

O sacrifício valia a pena: era lá que estavam as “cacimbas”, todas devidamente identificadas, que os moradores utilizavam nos seus afazeres diários. 

Eu ficava mesmerizado observando aquele quadrilátero de madeira fincado sobre uma espécie de areia peneirada de onde brotava um olho d’água. 

Meus primos não viam graça nenhuma naquilo, obrigados que eram diariamente a descer e subir a escada de barro levando uma lata d’água na cabeça.


Tia Dica e Giovani, na Praça da Matriz

Quituteira de mão cheia e dona de um coração ultra generoso, tia Dica teve um casal de filhos: Giovani e Arinéia. Durante muitos anos, ela foi a governanta oficial da casa da minha irmã Simone. 

Uma das lendas da família diz que tia Dica, para sustentar seu primeiro filho, Giovani, foi trabalhar como diarista na casa do velho Aristeu e criou gosto pelo patrão. Acabou sendo engravidada por ele. 

A mulher do sujeito, uma catimbozeira oriunda de Codó, no Maranhão, não gostou da presepada e fez um feitiço para deixar tia Dica aleijada pelo resto da vida. 

A catimbozeira não devia ser do ramo porque o feitiço acabou atingindo a vovó Rosa, que não tinha nada a ver com o peixe: um belo dia, a vovó acordou e não conseguiu flexionar a perna direita. 

Apesar dos vários exercícios de fisioterapia e dos tratamentos pouco ortodoxos (reza, massagens com banha de cobra, unguentos milagrosos, etc), vovó Rosa ficou com a perna dura pelo resto da vida.


Tia Rosa, cuja formosura enchia os olhos de milhares de admiradores e vivia permanentemente de bom humor, teve quatro filhos: Carlito, Marluce, Vera e Júlio. 

Por ser o primeiro neto, Carlito virou o xodó da vovó Rosa, tendo sido praticamente criado por ela. 

Eu gostava muito de frequentar a casa da tia Rosa, no centro histórico de Manaus, onde era sempre recebido com carinho, pudim de leite e refresco de mangarataia.


Altair, tia Maria, Cília e Sônia, na Praça São Sebastião

Tia Maria, que tinha os traços imponentes de uma rainha africana, teve seis filhos: Auxiliadora (aka “Cília”), Altair, Sônia, Ana, Dagnês e Solange. 

Durante trinta décadas, Altair foi campeão absoluto de dominó nos bairros de Petrópolis, Raiz, São Francisco e adjacências. 

Abusado ao extremo, ele costumava levantar todas as pedras nas mãos, gritava os pontos que estava fazendo e aí deixava uma das pedras cair sobre a mesa. 

Um de seus xerimbabos rapidamente pegava a pedra e colocava na “ponta” onde ele gritara os pontos. 

Se por acaso o xerimbabo errasse o posicionamento da pedra, seria brindado com um bonito tabefe no pé do ouvido. 

Meu primo Altair faleceu de câncer há alguns anos.


Tia Algima, a caçula e a mais bonita de todas, se casou com Adamor, o melhor jogador de dominó que já vi na vida, e teve sete filhos: Marcondes, Nalu, Narley, César, Lincoln, Nara e Adamorzinho. 

Pintor, bombeiro hidráulico e eletricista, Adamor era um verdadeiro homem dos sete instrumentos. 

Foi o único sujeito que conheci capaz de comer duas dúzias de pimenta malagueta com um único pedaço de jaraqui frito. 

E o único a fazer 495 pontos, sentando sozinho todas as pedras do dominó, saindo com as carroças de ás, de duque e de terno (saindo com a carroça de duque, até eu faço...). 

O tio Adamor morreu há alguns anos, de complicações decorrentes da diabetes. 

Meu primo Adarmozinho morreu ainda rapaz, durante um dilúvio que se abateu de madrugada sobre o bairro de Petrópolis. 

Adarmozinho estava ajudando seus vizinhos a fugirem da alagação quando um muro desabou sobre ele.


Tio Zé Bandeira nunca se casou, mas teve um casal de filhos: James e Joana. 

Ao longo de sua existência, foi um fervoroso pregador rastafári e seus olhos permanentemente vermelhos faziam jus ao sobrenome. 

Ele conhecia a Bíblia de trás pra frente e da frente pra trás e era capaz de citar passagens inteiras do Apocalipse sem errar na colocação de uma única vírgula. 

Fosse um pouquinho mais ambicioso, teria ficado rico como pastor de igreja neopentencostal.


Tio Lucas e meu primo Carlito, na Praça da Polícia

Tio Lucas, que na juventude tinha a compleição física de Cassius Clay, se casou com a doce Maria e teve sete filhos: Luiz Carlos, Edmilson, Lucas, Nádia, Tânia, Sandra e Clissia Greice. 

Extremamente educado, cortês, bem-humorado e um tremendo pé de valsa, tio Lucas era um dos maiores abatedores de lebres da cidade (meu primo Edmilson tem dado continuidade à saga...), mas aposentou as armas depois de casado. Não sei bem por que, mas nunca acreditei muito nessa história. 

Tio Lucas trabalhava como motorista da Prefeitura, por onde se aposentou, e teve papel decisivo na minha formação cultural. Explico melhor.

No começo dos anos 70, tio Lucas passou a dirigir a caçamba da Prefeitura responsável pela coleta e destinação final de revistas da Amazonas Distribuidora. 

Naquela época, as revistas recolhidas das bancas tinham o título da capa recortado e o miolo era descartado no lixão da Prefeitura para ser incinerado – porque era mais barato do que pagar o frete de reenvio das revistas encalhadas para as editoras do sul do país. 

A prestação de contas do “encalhe” era feita mediante envio dos títulos recortados. 

Tio Lucas começou a nos presentear semanalmente com dezenas de exemplares de gibis e revistas (Mickey, Tio Patinhas, Pato Donald, Mônica, Batman, Superman, Recreio, Veja, Capricho, Geração Pop, Placar, etc.), recolhidas diligentemente do lixão antes da incineração final.

Comecei a colecionar a revista Placar a partir dos exemplares que ganhava dele – coisa que seria impossível de fazer bancando do próprio bolso. 

Quando tio Lucas estacionava a caçamba em frente de casa e nos entregava de 30 a 40 gibis novinhos em folha de uma vez só, somente faltando o título na primeira capa, aquilo era uma verdadeira festa para os olhos. 

Até hoje não entendo por que, em vez de serem incineradas, as revistas não eram doadas para as escolas públicas da periferia, já que uma revista onde está faltando apenas o título não faz a menor diferença pra quem tem vontade de ler. Coisas do capitalismo selvagem, desconfio.


Nascida no dia 18 de maio de 1932, minha mãe foi criada por uma família de comerciantes libaneses no bairro da Cachoeirinha, onde recebeu uma educação esmerada. 

Ela conheceu meu pai quando estava com 18 anos, se casaram dois anos depois e a Simone nasceu no mesmo dia em que minha mãe completava 21 anos. A Silene nasceu em junho do ano seguinte. Eu demorei um pouco mais e só nasci em maio de 1956. Depois nasceram a Silane (dezembro de 58), a Selane (agosto de 59) e o Simas (outubro de 61). 


Tia Maria Pessoa e minha prima Raquel

Quando eu estava com sete anos de idade, tia Maria, irmã do Pai Simão, resolveu me criar. 

Minhas primas Raquel, depois esposa do advogado Lourenço Braga, ex-reitor da UEA, e Rossicler, depois esposa do centroavante matador Rodrigo Marques e uma das mulheres mais lindas que meus olhos já viram (uma Brigite Bardot nativa), acabaram virando minhas tutoras. Deu no que deu. Não as culpo por isso, claro. 

Morei com a tia Maria Pessoa durante quatro anos (de 1963 a 1966) e desconfio que foram alguns dos anos mais felizes de minha vida.

Não tive um irmão mais velho (apesar de a Simone valer por quinze), daí ter me afeiçoado tanto ao meu primo José Alberto Régis Batista, o Cazuza. 

No final dos anos 60, ele era o “endiabrado demônio louro” do juvenil do Olímpico (radialistas adoram pleonasmos), ao lado de Wandi, Calderaro, Bioca, Mário Bacuri e outros craques. 

Lembro-me dele no quintal da casa batendo sacos de cimento vazios para tirar a “sobra”, sacos esses que ele recolhia peregrinando pelos poucos canteiros de obras existentes na cidade. 

Na sequência, Cazuza preparava uma panela de goma de maisena numa fogueirinha de gravetos e eu ficava hipnotizado observando aquela alquimia poderosa. 

Depois, pacientemente, Cazuza ia lavando os sacos de cimento, secando ao sol, abrindo, dobrando, colando, costurando e transformando aquilo tudo em sacolas de papel, que no dia seguinte seriam vendidas no Mercado Adolpho Lisboa para carregar carne. Uma mão de obra federal! 


Socorro, Rossicler, Cazuza, sua esposa Lia e a filha do casal, Liliam

Também me lembro dele já vendedor da Livraria Colegial, trazendo revistas de HQ em consignação, pra ler em casa, que eu roubava na maior cara dura e depois traficava para as meninas (Simone e Silene), na casa de meus pais, sem saber que aquilo era descontado no salário do meu primo. 

Ele nunca ter me dado umas porradas por isso diz mais do caráter dele do que do meu.

Um comentário:

Unknown disse...

Corrigindo* insinua que minha avó teve filho do sr aristeu.